Tema 1.300 do STF e o resultado parcial
Análise técnico-constitucional dos benefícios por incapacidade após a EC 103/19, com enfoque no Tema 1.300 do STF, nas regras de cálculo da AIP e na proteção da dignidade das pessoas incapacitadas.
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:37
Introdução: Os benefícios previdenciários por incapacidade
O sistema de Seguridade Social brasileiro, delineado pela Constituição da República de 1988 (arts. 194 a 204) e estruturado sobre os princípios da universalidade da cobertura e do atendimento, da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana, tem por finalidade assegurar meios de subsistência ao segurado e a sua família nas situações de risco social, dentre as quais se insere a incapacidade laborativa. Nesse contexto, os benefícios por incapacidade consubstanciam a materialização da proteção previdenciária, sendo juridicamente destinados aos segurados que, em decorrência de doença, agravo ou acidente de qualquer natureza, se encontrem, de forma temporária ou permanente, total ou parcialmente, impossibilitados de exercer sua atividade habitual, nos termos da lei 8.213/1991.
Tradicionalmente, no âmbito do RGPS - Regime Geral de Previdência Social, disciplinado pela lei 8.213/1991, reconheciam-se duas modalidades principais de benefícios por incapacidade: o auxílio-doença e a aposentadoria por invalidez. Com a promulgação da EC 103, de 12/11/19 (denominada reforma da previdência), houve relevante alteração terminológica e estrutural nessas prestações. O auxílio-doença passou a ser designado auxílio por incapacidade temporária, enquanto a aposentadoria por invalidez foi reestruturada sob a nomenclatura de aposentadoria por incapacidade permanente, mantendo-se, porém, a função precípua de proteção ao segurado impossibilitado de desempenhar atividade laborativa.
O principal conteúdo protetivo da aposentadoria por incapacidade permanente consiste na garantia de uma renda mensal, ao segurado que, após regular avaliação médico-pericial, seja considerado incapaz e insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade que lhe assegure a subsistência, nos termos do art. 42 da lei 8.213/1991. A controvérsia jurídico-constitucional que deu ensejo ao julgamento do Tema 1.300 pelo STF reside justamente na metodologia de cálculo da RMI - Renda Mensal Inicial da referida aposentadoria concedida após a EC 103/19, nas hipóteses em que a incapacidade não decorre de acidente de trabalho, doença profissional ou doença do trabalho.
As regras de cálculo dos benefícios por incapacidade: Antes e depois da EC 103/19
A EC 103, de 12/11/19, denominada reforma da previdência, promoveu profunda reestruturação na sistemática de cálculo dos benefícios previdenciários no âmbito do Regime Geral de Previdência Social, com especial repercussão sobre a aposentadoria por incapacidade permanente, cujo critério de apuração da renda mensal foi sensivelmente modificado em relação ao regime anterior..
Regras de cálculo anteriores à EC 103/19
Antes da promulgação da EC 103/19, o cálculo da aposentadoria por invalidez (atual aposentadoria por incapacidade permanente) obedecia ao regramento então vigente da lei 8.213/1991. O SB - salário de benefício era obtido mediante a média aritmética simples dos 80% maiores SC - salários de contribuição de todo o PBC - período básico de cálculo, descartando-se os 20% menores. A RMI - renda mensal inicial, por sua vez, correspondia a 100% do salário de benefício, assegurando, em regra, a integralidade do valor apurado para fins de prestação previdenciária.
Regras de cálculo posteriores à EC 103/19
A EC 103/19 instituiu novas regras de cálculo para os benefícios previdenciários, especialmente no que se refere aos benefícios por incapacidade, previstas em seu art. 26. O SB - salário de benefício passou a corresponder à média aritmética simples de 100% dos salários de contribuição vertidos a partir de julho de 1994. Sobre esse SB incidem coeficientes distintos, a depender da espécie do benefício e da origem da incapacidade, nos seguintes termos: (a) o auxílio por incapacidade temporária, decorrente de incapacidade comum ou acidentária, corresponde a 91% do salário de benefício, nos termos do art. 26, § 1º, da EC nº 103/2019; (b) a aposentadoria por incapacidade permanente decorrente de acidente de trabalho, doença profissional ou do trabalho é fixada em 100% do salário de benefício, conforme art. 26, § 3º, II, da EC nº 103/2019; e (c) a aposentadoria por incapacidade permanente de natureza comum (não acidentária) corresponde a 60% do salário de benefício, com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que exceder 20 anos, no caso de homem, ou 15 anos, no caso de mulher, de acordo com o art. 26, § 2º, III, da EC nº 103/2019.
A disciplina prevista no art. 26, § 2º, III, da EC 103/19, ao estabelecer coeficiente inicial de apenas 60% do salário de benefício para a aposentadoria por incapacidade permanente de origem comum, constitui o núcleo da controvérsia submetida ao Tema 1.300. Tal regra é impugnada por acarretar, em regra, valor de benefício sensivelmente inferior ao previsto na sistemática anterior e ao devido na aposentadoria por incapacidade permanente de natureza acidentária, revelando-se, ainda, em não raras hipóteses, inferior ao próprio auxílio por incapacidade temporária, cujo percentual corresponde a 91% do salário de benefício.
O princípio do tempus regit actum e o distinguishing no Tema 1.300
O princípio do tempus regit actum (o tempo rege o ato) é um pilar do Direito Previdenciário, determinando que a lei aplicável à concessão de um benefício é aquela vigente na data em que o segurado preenche todos os requisitos necessários (DIB - Data de Início do Benefício).
No âmbito infralegal, a Instrução Normativa PRES/INSS 128/22, em seu O art. 233, § 2º, estabelece regra de transição específica para as hipóteses de concessão de aposentadoria por incapacidade permanente precedida de auxílio por incapacidade temporária (antigo auxílio-doença) deferido em momento anterior à entrada em vigor da EC 103/19. Nesses casos, a apuração da renda do benefício de Aposentadoria deve observar a legislação pretérita, mais benéfica ao segurado, em respeito às garantias constitucionais do direito adquirido e do ato jurídico perfeito, nos termos do art. 5º, XXXVI, da Constituição da República:
Art. 233. A RMI do benefício será calculada aplicando-se sobre o salário de benefício os seguintes percentuais:
I - auxílio incapacidade temporária:
a) 91% (noventa e um por cento) do salário de benefício; e
b) para fato gerador a partir de 1º de março de 2015, o valor apurado na forma da alínea "a" não poderá ultrapassar a média aritmética simples dos 12 (doze) últimos salários de contribuição existentes a partir de julho de 1994, ou, se não alcançado o número de 12 (doze), a média aritmética simples dos salários de contribuição existentes, assegurado o valor do salário mínimo;
II - aposentadoria por incapacidade permanente:
a) para fato gerador até 13 de novembro de 2019, data da publicação da Emenda Constitucional nº 103: 100% (cem por cento) do salário de benefício;
b) para fato gerador a partir de 14 de novembro de 2019: 60% (sessenta por cento) do salário de benefício, com acréscimo de 2% (dois por cento) para cada ano de contribuição que exceder 15 (quinze) anos de contribuição, no caso da mulher, e 20 (vinte) anos de contribuição, no caso do homem, ressalvado o disposto no § 8º; e
c) para fato gerador a partir de 14 de novembro de 2019, quando decorrer de acidente do trabalho, de doença profissional e de doença do trabalho: 100% (cem por cento) do salário de benefício.
Não obstante, o Tema 1.300 do STF não se confunde com a clássica discussão acerca da aplicação da lei no tempo (tempus regit actum). O caso submetido a julgamento (RE 1.469.150) impõe um distinguishing essencial: a controvérsia não versa sobre direito intertemporal, mas, sim, sobre o controle de constitucionalidade da própria norma instituidora da sistemática de cálculo da aposentadoria por incapacidade permanente.
O distinguishing reside no fato de que, ainda que a regra do art. 26, § 2º, III, da EC 103/19 seja corretamente aplicada sob a perspectiva do princípio tempus regit actum - isto é, incidindo apenas sobre benefícios cuja DIB - Data de Início do Benefício seja posterior à entrada em vigor da referida EC -, o objeto central da controvérsia consiste em saber se essa disciplina normativa, em si mesma considerada, é compatível com a Constituição da República e com os tratados internacionais de direitos humanos dotados de status constitucional. Desse modo, a discussão ultrapassa a problemática da mera aplicação temporal da lei e situa-se no âmbito do controle de validade constitucional da norma.
O julgamento do Tema 1.300 do STF em 3/12/25
O julgamento do RE 1.469.150, submetido ao rito da repercussão geral sob o Tema 1.300, realizou-se em 3/12/25, no plenário do STF. A questão nuclear submetida à Corte consistiu em aferir a constitucionalidade do art. 26, § 2º, III, da EC 103/19.
O ministro relator, Luís Roberto Barroso, votou pela constitucionalidade da regra do art. 26, § 2º, III, da EC 103/19 para os casos em que a incapacidade for constatada após a reforma, com o argumento da prevalência do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.
A divergência foi inaugurada pelo ministro Flávio Dino, que votou pelo não provimento do recurso, declarando a inconstitucionalidade da regra impugnada, por entender que ela viola a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, bem como os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Assentou ser desarrazoada a assimetria que conduz a que uma incapacidade permanente de origem não ocupacional dê ensejo a benefício calculado a partir de 60% da média contributiva, em patamar inferior ao benefício devido na hipótese de incapacidade temporária (91%), reputando ainda discriminatória a distinção de critérios de cálculo fundada exclusivamente na origem da enfermidade. Fixou, por fim, a tese de que deve ser aplicada a regra de 100% da média contributiva a todas as hipóteses de aposentadoria por incapacidade permanente.
O ministro Edson Fachin, na qualidade de presidente, acompanha a divergência inaugurada pelo ministro Flávio Dino e igualmente nega provimento ao recurso, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma impugnada. Aderiu integralmente ao voto vogal, salientando que o dispositivo em exame viola a Convenção Internacional, o princípio da proibição do retrocesso social, a isonomia em sua dupla dimensão (notadamente na comparação com o benefício por incapacidade temporária e com a aposentadoria por incapacidade de natureza acidentária), bem como os postulados da razoabilidade e os objetivos constitucionais da seguridade social.
Por sua vez, o ministro Cristiano Zanin votou pelo provimento do recurso, reputando constitucional a disciplina impugnada, e acompanhou integralmente o voto do relator. Sustentou que a EC não afrontou preceitos constitucionais, uma vez que os regimes previdenciários devem ser orientados pelo equilíbrio financeiro e atuarial, conforme exigem os arts. 201 e 40 da CF/88 Assentou, ademais, que as situações de incapacidade temporária e de incapacidade permanente são juridicamente distintas, de modo que o legislador possui margem de conformação para estabelecer tratamentos diferenciados entre essas hipóteses.
O ministro André Mendonça, por sua vez, também votou pelo provimento do recurso, reconhecendo a constitucionalidade da disciplina questionada. Defendeu que o tratamento normativo conferido pelo Congresso Nacional observa a diferenciação entre pessoas com deficiência e aquelas que se tornam incapazes em razão de infortúnio superveniente, em conformidade com os cálculos e parâmetros de equilíbrio atuarial que regem o sistema previdenciário.
O ministro Nunes Marques votou pelo provimento do recurso, concluindo pela constitucionalidade da norma impugnada. Fundamentou que a distinção estabelecida pelo legislador não se revela desarrazoada, uma vez que o risco não laboral (de origem não ocupacional) não pode ser integralmente transferido ao coletivo de contribuintes sem comprometimento do equilíbrio atuarial do sistema. Ressaltou, ainda, a necessidade de se respeitar a margem de conformação do legislador reformador na definição da política previdenciária.
O ministro Alexandre de Moraes, em alteração à posição anteriormente adotada - na qual acompanhava o voto do relator -, passou a integrar integralmente a corrente divergente, votando pela inconstitucionalidade da norma. Fundamentou que a diferenciação estabelecida pelo dispositivo é irrazoável e desprovida de critério objetivo ou de justificativa atuarial idônea, configurando tratamento desigual incompatível com os princípios da isonomia, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana.
O ministro Dias Toffoli negou provimento ao recurso, reconhecendo a inconstitucionalidade da norma impugnada, ao acompanhar a divergência inaugurada pelo ministro Flávio Dino.
Por sua vez, a ministra Cármen Lúcia igualmente negou provimento ao recurso, aderindo à corrente divergente. Destacou que a disciplina questionada viola a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o princípio da dignidade da pessoa humana (na perspectiva de que a proteção social deve atender às necessidades de cada indivíduo), o princípio da igualdade - notadamente a igualdade na lei - e o princípio da solidariedade, culminando em desproporção desarrazoada e destituída de fundamento legítimo.
O resultado parcial proclamado ao término da sessão foi de 5 votos a 4 pela inconstitucionalidade da regra impugnada, sinalizando a tendência de prevalência da tese divergente.
O julgamento foi suspenso para a colheita dos votos dos ministros Gilmar Mendes e Luís Fux, que se encontravam ausentes.
O voto divergente do ministro Flávio Dino e os impactos de sua prevalência
O voto divergente do ministro Flávio Dino, que se consolidou como fundamento da maioria parcial formada no julgamento, apresenta fundamentação densa, de nítido viés humanitário, alicerçada em princípios constitucionais estruturantes e em normas internacionais de proteção aos direitos humanos.
Fundamentação do voto divergente
O ministro Flávio Dino afirmou a inconstitucionalidade da regra com base, dentre outros, no seguinte fundamento central, extraído de seu voto: violação à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, dotada de status constitucional. Assentou que a Convenção, incorporada ao ordenamento jurídico interno com força de emenda constitucional (decreto 6.949/09), impõe ao Estado o dever de assegurar proteção reforçada e isonomia às pessoas com deficiência. Estabeleceu, nesse contexto, uma relação de simetria entre a situação da pessoa em condição de incapacidade permanente e a da pessoa com deficiência, sustentando que ambas enfrentam impedimentos de longo prazo que limitam sua participação social e laboral. Concluiu que a regra de cálculo impugnada, ao reduzir o valor do benefício, assume caráter discriminatório e viola o dever estatal de garantir a plena e efetiva participação dessas pessoas na vida em sociedade.
O ministro ainda assinalou a violação aos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana. A diferenciação de cálculo fundada exclusivamente na origem da incapacidade (acidentária em contraposição à comum) foi tida por desarrazoada e discriminatória. Destacou a gravidade da assimetria normativa, na medida em que uma incapacidade permanente de origem comum pode ensejar benefício calculado a partir de 60% do salário de benefício, em patamar inferior tanto ao devido na incapacidade temporária (91% do SB) quanto à aposentadoria por incapacidade permanente de natureza acidentária (100% do SB). Para o ministro, a finalidade do benefício, em quaisquer desses casos, é idêntica - assegurar a subsistência diante da perda definitiva da capacidade laborativa -, inexistindo justificativa atuarial ou social legítima para tamanha disparidade.
Sob outro ângulo, invocou a proibição de retrocesso social, ao sustentar que a nova sistemática de cálculo, ao reduzir de forma drástica o valor da prestação, configura grave retrocesso no nível de proteção previdenciária, afetando o núcleo essencial do direito fundamental à previdência social e à tutela contra os riscos decorrentes da incapacidade.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/constituicao.htm(http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/constituicao.htm ). Acesso em: 03 dez. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/leis/l8213cons.htm(http://www.planalto.gov.br/ccivil03/leis/l8213cons.htm ). Acesso em: 03 dez. 2025.
3 BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm(http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm ). Acesso em: 03 dez. 2025.
4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1.469.150 (Tema 1300). Voto Divergente do Ministro Flávio Dino. Disponível em: https://digital.stf.jus.br/decisoes-monocraticas/api/public/votos/401163/conteudo.pdf(https://digital.stf.jus.br/decisoes-monocraticas/api/public/votos/401163/conteudo.pdf ). Acesso em: 03 dez. 2025.
5 BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil03/ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm(http://www.planalto.gov.br/ccivil03/ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm ). Acesso em: 03 dez. 2025.
6 BRASIL. Instrução Normativa PRES/INSS nº 128, de 28 de março de 2022. Disciplina as regras e procedimentos. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446(https://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-normativa-pres/inss-n-128-de-28-de-marco-de-2022-389275446 ). Acesso em: 03 dez. 2025.


