A linguagem ordinária e o impasse do dolo eventual
Neste artigo, mostro como a linguagem ordinária e a filosofia de Wittgenstein desmontam o dolo eventual e sustentam a Teoria Significativa da Imputação com critérios externos verificáveis.
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:40
Durante séculos, a teoria penal tem recorrido a categorias forjadas por uma dogmática que, ao afastar-se da linguagem ordinária, perde a capacidade de descrever com fidelidade os comportamentos humanos. O caso do dolo eventual é, talvez, o exemplo mais evidente dessa distorção conceitual. Criado para preencher uma suposta lacuna entre dolo direto e imprudência consciente, ele acabou por se transformar numa ficção jurídica sustentada por presunções subjetivas e critérios opacos, incapazes de produzir decisões penais fundadas em segurança e legitimidade.
A doutrina tradicional insiste em estabelecer a fronteira entre dolo e imprudência por meio de elementos como a previsão e a aceitação do resultado. Essa divisão, porém, é apenas aparente. Como demonstramos, o núcleo da imputação penal, seja dolosa ou imprudente, não reside na previsão, mas na decisão.
A previsão pode estar presente tanto na ação dolosa quanto na imprudente. O que distingue uma da outra é a natureza da disposição do agente: em um caso, há a intenção de lesar o bem jurídico; no outro, há descuido, indiferença ou mesmo negação do risco. Reduzir o dolo à previsão de um resultado possível ou provável é dissolver o conceito em um jogo de suposições que não se sustentam diante da análise criteriosa dos fatos.
A Teoria Significativa da Imputação, ancorada na filosofia da linguagem de Wittgenstein, recusa o caminho das presunções. Em vez disso, propõe que se observe a ação como um todo significativo, inserida em um contexto social compreensível, onde os critérios de identificação dos estados mentais não são inferências arbitrárias, mas manifestações externas verificáveis. Como nos ensina o filósofo vienense, "um processo interno exige critérios externos". É por meio desses critérios que identificamos condutas, intenções, imprudências, e é neles que se fundamenta a certeza penal, em oposição à crença subjetiva.
Wittgenstein nos advertiu contra a ilusão de que os conceitos jurídicos pudessem repousar sobre estruturas mentais privadas. Para ele, a linguagem funciona em jogos públicos, onde o sentido das palavras se manifesta no uso, e não em um suposto conteúdo psíquico acessível apenas por introspecção. Aplicada ao Direito Penal, essa concepção exige que os juízos de imputação se baseiem em critérios compartilháveis, observáveis e justificados por condutas que tenham sentido dentro de uma forma de vida. Por isso, a linguagem ordinária, aquela que usamos para descrever as ações das pessoas em contextos cotidianos, é a fonte mais segura para fundar a imputação penal.
No entanto, a doutrina penal dominante insiste em operar com categorias dogmáticas que se afastam radicalmente desse padrão. O dolo eventual é um bom exemplo: ele não corresponde a nenhuma forma ordinária de descrição da ação humana. Ninguém, fora da técnica jurídica, diz que alguém "quis ou assumiu o risco" de matar ao dirigir alcoolizado em alta velocidade.
O que se afirma, em geral, é que essa pessoa "foi irresponsável", "agiu com imprudência", "não teve cuidado". O vocabulário da vida comum, portanto, já oferece os recursos necessários para classificar esse tipo de conduta como imprudente, sem necessidade de recorrer a construções híbridas que apenas mascaram a ausência de critérios seguros.
Além disso, a manutenção do dolo eventual no CP brasileiro gera uma assimetria grave: condutas notoriamente imprudentes passam a ser tratadas como dolosas, ao mesmo tempo em que delitos dolosos evidentes, por falta de provas de intenção, são qualificados como imprudência leve. Essa instabilidade compromete o princípio da legalidade penal e fere a proporcionalidade. A teoria significativa, ao identificar os caracteres significativos da ação, entre eles, a decisão, a vontade, a previsão, a aceitação e a indiferença, permite reconstruir a imputação penal com base em critérios coerentes e verificáveis.
A dificuldade de distinguir dolo eventual e imprudência consciente não reside na conduta, mas nos conceitos. A doutrina insiste em comparar um elemento real (a imprudência) com um elemento fictício (o dolo eventual). Essa comparação é, por definição, ilusória. Não há como estabelecer uma fronteira nítida entre algo concreto e algo inventado. A proposta da teoria significativa é justamente superar essa contradição, oferecendo critérios que partem da realidade da linguagem e da ação humana.
Por isso, insistimos: não há nada oculto. Os comportamentos humanos revelam, por meio da gramática da ação, os elementos necessários para uma imputação justa. A vontade, a previsão, a aceitação do risco, a indiferença, tudo isso se manifesta externamente e pode ser identificado por meio de critérios linguísticos e comportamentais. Cabe ao jurista abandonar os artifícios dogmáticos e reconstruir a teoria da imputação a partir dessa base: uma filosofia da linguagem comprometida com a clareza, a justiça e a democracia.
___________
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


