Perspectiva de gênero nos inventários judiciais
A aplicação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero nos inventários judiciais. Resolução 492/23 CNJ.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Atualizado às 15:16
Com efeito, a realidade do cotidiano das varas de sucessões revela que os homens da família brasileira tentam, quase sempre, prejudicar as mulheres quando da discussão sobre a partilha de bens no inventário judicial.
A relação patriarcal e a misoginia, infelizmente estão presentes nos inventários judiciais e se caracterizam como elementos próprios da estrutura de violência contra as mulheres.
Em razão dessa situação, o CNJ instituiu o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, fixado através da resolução 492/23. Trata-se de uma orientação para que os juízes possam identificar e corrigir as assimetrias de poder que estruturam a sociedade e que podem impactar o desfecho de qualquer processo judicial. O objetivo é garantir que as decisões judiciais promovam a igualdade material e não perpetuem injustiças baseadas em gênero.
Verifica-se na prática do dia a dia dos inventários judiciais, que dentro do contexto familiar, os homens (herdeiros) se utilizam da prática da violência de gênero contra as mulheres para obtenção de vantagem patrimonial na partilha.
Infelizmente em nossa sociedade, em especial no interior do Brasil, os papéis estereotipados são perpetuados e os atores sociais entendem como natural que a mulher tenha algum tipo de prejuízo no inventário judicial.
Desse modo, é importante que o juiz do inventário judicial tenha a sensibilidade e aplique as lentes de gênero na interpretação do Direito Sucessório.
Revela notar que o juiz possui o Poder de admissibilidade e valoração das provas produzidas no processo de inventário judicial (CPC, 139, 370 e 371). Tal afirmação está alicerçada no poder geral de cautela inerente à função jurisdicional.
O Tribunal da Cidadania nos ensina que o modelo patriarcal e as determinações sociais formadas pelo contexto social e econômico, nos mais variados campos de expressão de poder (poder familiar), tendem a prejudicar a mulher que é vulnerável nas relações familiares, em especial, nas questões econômicas.
Nesse sentido:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. LESÃO CORPORAL. LEI N. 11 .340/2006. DESNECESSIDADE DE AFERIÇÃO ACERCA DA MOTIVAÇÃO DA OFENSA. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER PRATICADA EM ÂMBITO DOMÉSTICO E FAMILIAR. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO . 1. A Lei Maria da Penha tutela a violência de gênero, assim entendido como uma construção social em que os papéis de gênero são tomados como um sistema de relações sociais estabelecidas entre homens e mulheres, estruturadas com base no modelo patriarcal e determinadas não pelo sexo biológico, mas pelo contexto social, político, econômico, nos mais variados campos de expressão de poder. 2. Dentro dessa perspectiva, consoante bem pontuado no "Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero"- grupo de trabalho instituído pela Portaria CNJ n . 27, de 2 de fevereiro de 2021, "o conceito de gênero diz respeito a um conjunto de ideias socialmente construídas, atribuídas a determinado grupo. Essas ideias são cristalizadas no que se convencionou chamar 'estereótipos de gênero'". 3. A lei não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida . 4. É dizer, para a incidência da Lei Maria da Penha, basta a comprovação de que a violência contra a mulher tenha sido exercida no âmbito da unidade doméstica, da família ou de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida. 5. No caso dos autos, a acusada haveria praticado lesão corporal contra sua mãe, no ambiente doméstico. A decisão está em conformidade com a jurisprudência consolidada desta Corte Superior, que entende que "o objeto de tutela da Lei 11.340/2006 é a mulher em situação de vulnerabilidade não só em relação ao cônjuge ou companheiro, mas também qualquer outro familiar ou pessoa que conviva com a vítima, independentemente do gênero do agressor" (HC n. 277.561/AL, Rel . Ministro Jorge Mussi, 5ª T., DJe 13/11/2014). 6. Agravo regimental não provido .(STJ - AgRg no REsp: 2058209 SP 2023/0075743-6, Relator.: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 12/12/2023, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/12/2023)
Verifica-se, portanto, que a violência de gênero é uma realidade em sociedades patriarcais, como a brasileira. Muitas vezes, a violência e a ameaça empregada no âmbito doméstico impedem a mulher, em especial, a viúva ou a filha decorrente de outro relacionamento, de conseguir a plenitude de seus Direitos Sucessórios, perante o Poder Judiciário.
Na prática, tais situações prejudiciais às mulheres em condição de vulnerabilidade, ocorrem no Direito Sucessório, por exemplo, na discussão sobre as cotas sociais e os pedidos de dividendos das empresas que o autor da herança era sócio; Nas ações de petição de herança, quando a mulher é impedida, mediante ameaça, agressão, ou intimidação, de ajuizar a respectiva ação, dentro do prazo legal; No incidente de remoção de inventariante; No pedido de reconhecimento do Direito real de habitação, quando a mulher é pressionada por outro herdeiro a abandonar tal direito; No pedido de reconhecimento de esforço comum na formação do patrimônio do casal, quando a mulher em vulnerabilidade econômica é constrangida a ter que provar que contribuiu na formação do patrimônio do casal; Na cessão onerosa de direitos hereditários, quando a mulher é constrangida por outro herdeiro, a celebrar a cessão em condições prejudiciais.
Vale lembrar que a vulnerabilidade da mulher apresenta variações que não podem ser resumidas, tão somente, à objetividade da ciência exata. As interações sociais humanas são muito complexas e o Direito deve acompanhar essa evolução. Portanto, o operador do direito deve presumir a vulnerabilidade e a hipossuficiência da mulher, em situação de violência física, psicológica, psíquica, emocional e financeira.
Importante destacar que essa violência contra a mulher não é apenas a violência física (doméstica) entre marido e mulher. Tal violência, é também a violência psicológica, a intimidação social, a violência psíquica/emocional e a violência financeira, que pode ser exercida por outros homens da família, tais como, irmãos, tios, primos e o próprio genitor, quando da disputa pelos bens do espólio no inventário judicial.
Ou seja, toda e qualquer prática de violência cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade/afeto, deve ser apreciada e levada em consideração pelo juízo sucessório quando do julgamento da partilha no inventário judicial.
Cumpre, outrossim, destacar que essa situação fática justifica e exige a aplicação de mecanismos de proteção processual que garantam a ocorrência do julgamento da partilha dos bens do espólio, sob essa perspectiva de proteção de gênero.
A título de sugestão aos colegas militantes dessa área, oriento os advogados que peticionem informando os fatos ao juiz condutor do feito e solicitem, em apartado ao inventário, a produção de provas testemunhais, mediante incidente, permitindo a possibilidade de aplicação da resolução 492/23 do CNJ.
Revela necessário que o juiz permita a instauração do incidente em apartado ao inventário judicial para a possibilidade de julgamento com perspectiva de gênero, fixado através da resolução 492/23, permitindo que a mulher (herdeira ou meeira) em condição de vulnerabilidade, em razão da violência empregada pelos demais herdeiros, tenha a oportunidade processual de provar os fatos e impedir qualquer tentativa de prejudicar o acesso à legítima ou a meação. Tal conduta processual visa garantir a plenitude do direito fundamental de herança previsto na CF/88 no art. 5º, inciso XXX.
Destarte, o juiz do inventário, que deve ser também um gestor das emoções humanas, possui papel fundamental na condução do processo, garantindo e permitindo o acesso das herdeiras e meeiras a plenitude das possibilidades de produção de provas. O juiz do inventário judicial deve empregar o correto e justo juízo de admissibilidade e valoração das provas, visando a efetividade da Justiça, o reconhecimento da verdade real dos acontecimentos e a garantia do respeito ao protocolo de julgamento da perspectiva de gênero. Portanto, as decisões proferidas no âmbito do inventário judicial devem ser proferidas em conformidade com as diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, considerando a vulnerabilidade da mulher dentro do contexto supracitado.


