Desafios e implicações da responsabilidade civil no PL 4/25
O PL 4/25 reforma o CC, sob a proposta de modernizá-lo. Entretanto, é necessário analisar se as alterações são convenientes a uma legislação consolidada há mais de 20 anos.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:34
No dia 27/11/25, em sessão no Senado Federal1, houve a defesa efusiva do projeto de reforma do CC, sob o lema de trazer o CC para o século XXI e alcançar um equilíbrio entre livre iniciativa e reparação. Em razão da efervescência do tema, trago neste espaço algumas reflexões originadas de anotações que fiz durante as aulas da cadeira de responsabilidade civil da empresa, da professora Dra. Tula Wesendonk, neste semestre no mestrado em Direito da UFRGS.
A nova redação do art. 927, caput e parágrafo único, do CC passaria a dispor que quem causar dano fica obrigado a repará-lo. Percebe-se que a nova redação retirou a necessidade do ato ilícito, como pressuposto geral, para que haja a reparação como regra. Essa possibilidade foi mantida no inciso I do par. 1º, que remete ao dano causado por ato ilícito conforme o art. 186, parágrafo único.
Esse dispositivo, da parte geral do Código, seria alterado para prever que a quem por ação ou omissão voluntária, negligência, imprudência ou imperícia, violar direito e causar dano a outrem, responde civilmente. Constata-se que houve a alteração, mas manteve-se a mistura de conceitos.
O pressuposto ato ou omissão difere do fator de imputação, que nesse caso seria culpa lata sensu. A nova redação passa a impressão de que é necessário um desses requisitos para que haja dano indenizável. Entretanto, seria necessário o ato/omissão ilícita cumulativamente com um dos fatores que caracterizam a culpa lata sensu, ou seja, ato com negligência, imprudência ou imperícia. Perdeu-se a chance de apartar na legislação a culpa da ilicitude, visto que são elementos distintos que, para serem aferidos, não precisam estar presentes de forma conjunta.
Nos incisos II e III, há a previsão de reparação de danos por ato que causar dano, ao desenvolvedor de atividade de risco especial e ao responsável direto por ato de terceiro, inclusive por tecnologia a ele subordinado. O texto do projeto, neste ponto, não prevê, nessas situações, a necessidade de que o ato ilícito causasse o dano para que fosse necessária a reparação do dano na responsabilidade objetiva.
Assim, de acordo com o projeto, quem causa dano a outro ficaria obrigado a repará-lo. Haveria confusão de que a responsabilidade civil objetiva prescindiria de ato ilícito para o surgimento do dever de indenizar. Judith Martins Costa já destaca essa possível mistura de conceitos, ao afirmar que a responsabilidade objetiva não demanda culpa, mas o ato ilícito é indispensável, por ser um pressuposto de responsabilidade e não fator de imputação2.
A cláusula geral de responsabilidade objetiva foi transportada para o art. 927-B. Há a previsão, além dos casos especificados por lei, de que há responsabilidade civil objetiva quando a atividade implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. O par. 1º prevê a ausência de necessidade de defeito e a necessidade de a atividade ser essencialmente perigosa, que induza, por sua natureza, risco especial e diferenciado aos direitos dos outros, a partir de avaliação estatística, prova técnica e máximas de experiência.
Essas alterações, ao contrário do que alegado, geram maior insegurança jurídica. Como indicado por Maria Celina Bodin de Moraes et al., não há elementos que indiquem no parágrafo 1º o que é "risco especial e diferenciado" e a expressão não é a mesma do inciso II do art. 927, que refere "risco especial"3. Ademais, a indicação de utilização de meios estatísticos pode ocasionar a utilização, pelos julgadores, do nexo causal probabilístico, que é técnica altamente controversa sobre imputação de responsabilidade, em razão da ausência de necessidade da demonstração de que a causa foi a geradora daquele efeito, qual seja, o dano. Bastaria, portanto, somente a indicação de alto grau de probabilidade de que o nexo está presente, para que surja o dever de indenizar4.
Já o par. 2º prevê que a existência ou não de classificação do risco da atividade por poder público ou agência reguladora será considerada a fim de ponderação e fixação do valor da indenização. De acordo com Rafael Peteffi da Silva, essa previsão esquece, por completo, o princípio da reparação integral, ao permitir que o julgador utilize como medida de quantificação do dano o risco. Assim, seria possível reduzir uma indenização a valor menor que o dano, em razão da grandeza do risco. Isso poderia ocasionar a existência de indenizações que não alcançam a reparação, bem como a condenação a valor superior ao dano, com base no risco, o que geraria imprevisibilidade na solução de múltiplas demandas5.
O art. 931 do PL têm mudanças significativas. No texto atual, pode ser entendido como uma cláusula geral de responsabilidade objetiva da empresa por fato de produtos, que independe da existência de relação de consumo. De acordo com Tula Wesendonk, o art. 931 tem como objetivo proteger qualquer destinatário do produto posto em circulação, sem que seja necessário a demonstração de defeito, tal como no CDC. Indica a professora, ainda, que essa é a grande diferenciação dos sistemas e exatamente essa inexistência de necessidade de defeito no caso do regime civil6.
A alteração do PL 4/25 faz exatamente o que tanto a doutrina alega, de forma imprecisa, que é a inutilidade do dispositivo pela previsão ser similar à do CDC. Há a previsão de que somente o fabricante responderia com base no dispositivo, bem como o parágrafo único conceituaria, tal como no CDC, o conceito de defeito, sem o qual não haveria responsabilidade.
É similar porque o CDC prevê a responsabilidade que se expande, de forma primária, além do fabricante, mas também para o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador, e secundária a do comerciante. Já no projeto, a responsabilidade seria exclusiva do fabricante. Já o conceito de defeito, apesar da redação parecida, não considera para a avaliação de defeito o momento de sua apresentação e o uso e riscos que se esperam. Essa alteração é extremamente negativa ao sistema de responsabilidade civil, pois enfraquece o objetivo principal do instituto, que é a reparação integral.
Em relação à responsabilidade civil por fato de terceiros, três alterações chamam a atenção. A primeira seria a inclusão, na responsabilidade do empregador por ato do empregado, da exigência de que o empregado esteja sob as ordens do empregador. Inclui-se um elemento subjetivo a ser demonstrado.
Essa regra de responsabilização evoluiu da culpa presumida, no CC de 1916, para a responsabilidade civil objetiva no atual Código. Isso enfraquece de sobremaneira a vítima do dano, pois abre possibilidades de alegações que limitem a responsabilidade, tal qual a de que haveria necessidade de ordem direta para a responsabilização do empregador, a facilitação de argumentos de que o empregado agiu sem que houvesse um comando do empregador e de quem seria o ônus de provar que a ordem efetivamente existiu.
A segunda seria a previsão do inciso VIII do art. 931, que prevê a responsabilidade por fato de terceiro que desenvolver e coordenar atividade ilícita ou irregular, em ambiente físico, virtual ou com uso de tecnologia, por qualquer dano sofrido em razão dessas atividades. Apesar do avanço, a exigência de desenvolvimento e coordenação ocasiona grande incerteza em quem realmente recairia a responsabilidade, visto que só desenvolver ou coordenar, pelo texto, não seria suficiente para a imputação da responsabilidade, demandando, portanto, a adição dessas duas atividades.
Ademais, a questão da atividade ilícita ou irregular gera também incertezas. É necessário ter como pano de fundo que o ato que gerará o dano, em regra, será ilícito. Todavia, a atividade ilícita pode gerar atos lícitos, como por exemplo, um cidadão, sem incidência de relação de consumo, que vende produtos obtidos por descaminho: exerce uma atividade ilícita, mas caso a venda se perfectibilize e o produto esteja perfeito e em condições, não haverá ato ilícito, já que é permitida a compra e venda.
Já em relação às atividades irregulares, há a questão de qual seria o conceito de irregular. À primeira vista, considera-se como a atividade que não cumpra requisitos administrativos, apesar de serem permitidas pelo ordenamento jurídico. Outrossim, aconteceria como em relação às ilícitas, qual seja, não necessariamente haverá conduta ilícita que é fato gerador de danos juridicamente relevantes. Uma padaria que vende pães, sem o alvará da prefeitura, não obrigatoriamente comete ato ilícito que gera dano indenizável, apesar de ser uma atividade irregular.
Em relação ao princípio da reparação integral, de acordo com o projeto, seria alterado de forma substancial. De acordo com Paulo de Tarso Sanseverino, esse princípio, plasmado no art. 944 do CC, é pacificamente aceito pela doutrina e jurisprudência desde o CC de 1916. No mesmo sentido, afirma que a positivação no CC de 2002 deixa clara a prevalência do dano sobre a culpabilidade na fixação de indenização oriunda de ato ilícito7.
A reparação integral, como princípio geral, não é absoluta, permitindo-se exceções previstas pelo legislador. A cláusula geral de redução da indenização, prevista no par. único do art. 944 do CC/02, é o principal mitigador da reparação integral. Há, nela, a previsão de restrição da indenização nas situações de danos graves causados por uma conduta ou omissão imputada com culpa leve.
É possível afirmar que o parágrafo único do art. 944 do CC/02 é uma cláusula geral, visto que a hipótese legal foi formulada em termos de grande generalidade, abrangendo um amplo domínio de casos que serão definidos pelos operadores do direito. Os operadores do Direito, principalmente a jurisprudência, com o auxílio sempre presente da doutrina, irão definir, em cada caso concreto, quando estarão caracterizados os elementos para a redução da indenização.
Uma questão controvertida é a aplicação dessa cláusula geral de redução na responsabilidade civil objetiva. É possível afirmar que a ausência de culpa não impede que, na extensão do dano, seja reduzida de acordo com a culpa. O fator de imputação culpa não é exigido para que surja o dever de reparar, mas pode ser utilizado para modular o valor da indenização.
Por outro lado, a principal alegação para a não aplicação seria a de que haveria reintrodução da discussão da culpa em situações de responsabilidade objetiva. De acordo com Paulo de Tarso Sanseverino, a solução seria substituir a expressão gravidade de culpa pela relevância da causa. Assim, quando o fato causador do dano, na responsabilidade objetiva, for desproporcional aos danos, poderá haver a aplicação da cláusula de restrição da reparação integral, porque alteraria o exame da culpa para o nexo causal8.
O texto da reforma do CC parece ir de encontro ao exposto pelo Ministro Sanseverino ao estipular que há possibilidade de aplicação da redução da indenização ao ser feita a análise entre a conduta de quem comete o ato ilícito e a extensão do dano. Há ainda a previsão da aplicação a fim de proteger o mínimo existencial do ofensor ou seus dependentes. Essa previsão parece alterar o foco da indenização do dano para o próprio ofensor, o que gera incertezas sobre sua aplicação, visto que há grande zona cinzenta entre o que seria privação do necessário à sobrevivência, o que demanda análise concreta do ofensor e não da vítima do dano.
O par. 2º do art. 944 do projeto é, sem dúvida, a alteração que gera maiores incertezas. Esse dispositivo prevê que, nos danos patrimoniais, há alternativa, de escolha do lesado, de que a indenização seja um montante razoável correspondente à violação de um direito ou, quando necessário, a remoção dos lucros ou vantagens auferidas pelo lesante em conexão com a prática do ilícito.
Na justificativa do projeto de reforma, há a explicação de que a inovação legislativa visa inserir na responsabilidade civil remédios restitutórios, tendo em vista combater, principalmente, as consequências de atos enquadrados na teoria do lucro da intervenção. Alega-se, nesse documento, que a repressão a lucros obtidos por atos ilícitos civis não se adequa ao enriquecimento injustificado, mas à responsabilidade civil, ativando remédios como o "reasonable fee" (preço de mercado pelo uso não autorizado) ou disgorgement (desapropriação total de ganhos), qualificados pelo lucro sem exigir dolo grave, variando pela intensidade da conduta do infrator9.
Além disso, afirma que esse caso se diferencia do enriquecimento injustificado, que pressupõe transferências voluntárias sem ilicitude, enquanto a responsabilidade civil exige antijuridicidade unilateral para remover benefícios indevidos além da mera reparação. A teoria atributiva justifica só o fee objetivo, não o disgorgement, e a reparação integral, funcionalizada bilateralmente, inclui restituição de lucros ou economias ilícitas para restitutio in integrum relacional.
Apesar da intenção de positivar a teoria da intervenção do lucro, dentro da parte dedicada à responsabilidade civil do CC, mais especificamente no artigo que prevê a reparação integral e suas exceções, o texto gera consequências negativas. Melhor seria se houvesse um artigo específico só para tratar da teoria do lucro da intervenção, com os consequentes incisos e parágrafos regrando toda a sistemática. A oportunidade de um projeto legislativo que altera o CC é uma grande oportunidade para isso, bem como proporcionaria melhor estudo do assunto pela doutrina.
Com o previsto atualmente no projeto, há clara possibilidade de nova mitigação ao princípio da reparação integral, em qualquer caso de indenização por danos patrimoniais, sem nenhum balizador ou limitação para que isso aconteça. Assim, há possibilidade de que um valor dissociado do dano seja estipulado como indenização, a partir da substituição da indenização, com base na reparação integral, por um montante razoável correspondente à violação de um direito. Um exemplo utilizado por Maria Celina Bodin de Moraes et al. é que o magistrado pode arbitrar qualquer valor, inclusive com caráter eminentemente punitivista, e sem atendimento a nenhum critério legal ou econômico típico dos danos patrimoniais, bastando entender ser razoável para o caso concreto10.
Conclui-se, então, que a proposta de reforma do CC, apesar de buscar atualizações, evidencia que a simples alteração do texto normativo não é suficiente para mitigar as incertezas interpretativas já presentes no sistema jurídico brasileiro. O aumento da insegurança jurídica decorre, principalmente, da utilização de conceitos vagos e que muitas vezes estão em dissonância com o conteúdo doutrinário e jurisprudencial que vem sendo construído em razão da estabilidade normativa esperada das codificações.
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1 https://www12.senado.leg.br/noticias/videos/2025/11/ao-vivo-comissao-debate-a-responsabilidade-civil-no-codigo-civil-27-11-25
2 MARTINS-COSTA, Judith. A linguagem da responsabilidade civil. In: BIANCHI, José Flávio; MENDONÇA PINHEIRO, Rodrigo Gomes de; ARRUDA ALVIM, Teresa (Coord.). Jurisdição e Direito Privado: Estudos em homenagem aos 20 anos da Ministra Nancy Andrighi no STJ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 389-418.
3 MARTINS, Fábio Floriano Melo; SAMPAIO, Gisela; SILVA, Rafael Peteffi; WESENDONCK, Tula; MORAES, Maria Celina Bodin de. Responsabilidade Civil. In: REVISTA DO IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2024, p. 49-56.
4 RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 8, n. 26, p. 175-204, jul./set. 2016.
5 SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade objetiva no projeto de reforma do Código Civil (parte 1). ConJur. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mai-30/responsabilidade-objetiva-no-projeto-de-reforma-do-codigo-civil-parte-1.
6 WESENDONCK, Tula. Aplicabilidade do art. 931 do CC nos 18 anos do Código Civil. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Ferreira da (Org.). A evolução do direito empresarial e obrigacional: 18 anos do Código Civil. Bom Retiro: Quartier Latin, 2021.
7 SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da Reparação Integral. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2010
8 Op. cit.
9 BRASIL. Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Parecer nº 1 - Subcomissão de Responsabilidade Civil e Enriquecimento sem Causa da CJCODCIVIL. Brasília, 15 dez. 2023. https://legis.senado.leg.br/atividade/comissoes/comissao/2630/documentos/7935
10 MARTINS, Fábio Floriano Melo; SAMPAIO, Gisela; SILVA, Rafael Peteffi; WESENDONCK, Tula; MORAES, Maria Celina Bodin de. Responsabilidade Civil. In: REVISTA DO IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Vol. 38.1, Ano 27, São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2024, p. 49-56.


