Responsabilidade civil do Estado no caso do jovem morto pela leoa
O artigo analisa a possível responsabilidade civil do Estado pela morte do jovem que invadiu o recinto da leoa, diante da falha no acolhimento psiquiátrico que havia sido determinado judicialmente.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:36
Recentemente, ganhou repercussão nacional o trágico caso Gerson de Melo Machado, 19 anos, conhecido por "vaqueirinho", que, após pular um muro de seis metros e invadir a área de animais selvagens em um zoológico de João Pessoa, acabou sendo atacado e morto por uma leoa, trazendo profunda comoção à sociedade. Mas não estamos diante apenas de um episódio trágico e midiático.
O caso revela, sob perspectiva jurídico-institucional, um ponto de ruptura entre o dever estatal de proteção e a eficácia das políticas públicas de saúde mental. A revelação feita pela juíza Conceição Marsicano - de que havia ordem judicial expressa determinando o acolhimento especializado do jovem - desloca substancialmente o foco da discussão: não mais se trata de mero atendimento espontâneo mal executado, mas de possível omissão administrativa qualificada, também denominada omissão específica.
Trata-se de situação em que o Estado não apenas poderia, mas deveria ter agido, sob pena de violar direito fundamental à saúde e à dignidade humana, além de comprometer a coerência da própria função jurisdicional.
1. O marco constitucional e a distinção entre omissão genérica e omissão específica
O art. 37, § 6º, da Constituição Federal estabelece a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados por seus agentes. Contudo, nos casos de omissão, o STF e o STJ consolidaram entendimento segundo o qual se aplica a responsabilidade subjetiva - exigindo demonstração de negligência, imprudência ou imperícia.
A distinção clássica é reiterada na jurisprudência:
Omissão genérica: Falha estatal em deveres gerais de segurança, fiscalização ou vigilância (responsabilidade subjetiva).
Omissão específica: Descumprimento de dever jurídico concreto de proteção, seja por previsão legal, seja por ordem judicial, seja por situação clara de risco individualizado (responsabilidade subjetiva, porém com presunção de culpa e maior facilidade probatória para a vítima).
Destarte, o caso em análise se aproxima, com precisão, desta última categoria.
Com efeito, quando há ordem judicial determinando o acolhimento de pessoa vulnerável, o dever estatal não é abstrato, mas direto, individualizado e revestido de urgência. Sua inobservância caracteriza negligência institucional e afasta qualquer dúvida quanto à existência de um dever jurídico específico de agir.
2. A segurança do zoológico e a causalidade imediata
Sob o ponto de vista estrutural, o zoológico adotava medidas compatíveis com a segurança do público, incluindo barreiras físicas, sinalização e áreas restritas. O jovem, ao escalar voluntariamente um muro elevado para acessar um local proibido, praticou conduta absolutamente anormal e imprevisível.
Analisando pela ótica de nosso sistema de responsabilidade civil, a conduta voluntária e imprudente do jovem insere-se na categoria de culpa exclusiva da vítima, uma das principais excludentes do nexo de causalidade na responsabilidade civil do Estado, exonerando o dever legal de indenizar.
Assim, do ponto de vista da segurança física do zoológico, não se identifica falha objetiva: as barreiras existiam, o recinto era protegido e a conduta de ultrapassá-las foi deliberada. Logo, o mesmo cumpriu com seu dever de cuidado e segurança.
Mas o caso não se esgota aí.
3. O elemento superveniente: A falha no acolhimento psiquiátrico e a desobediência estatal à ordem judicial
O ponto de inflexão do caso surge com a informação regulamentarmente decisiva: Gerson apresentava quadro psiquiátrico documentado, estava recolhido no presídio do Róger sem avaliação psicossocial adequada e havia sido expressamente encaminhado pela autoridade judicial para acolhimento imediato em unidade de saúde mental (CAPS AD), com comunicação formal ao Executivo.
Entretanto: O acolhimento não foi realizado; a ordem judicial não foi cumprida; a rede de saúde mental não promoveu o atendimento determinado e altamente necessário.
Com efeito, esse descumprimento não é falha comum: é violação direta à autoridade judicial e à política de proteção ao indivíduo vulnerável. Aqui reside o núcleo da responsabilidade estatal.
Não se trata de omissão difusa ou estrutural, mas de descumprimento específico, concreto e individualizado, apto a configurar negligência e omissão administrativa.
4. O nexo causal ampliado e a cadeia de eventos previsíveis
Ainda que a causa imediata da morte tenha sido a invasão do recinto do animal, a doutrina e a jurisprudência admitem a teoria do nexo causal ampliado ou indireto quando a omissão do Estado quando: refere-se a dever jurídico específico de proteção; contribui para a permanência ou agravamento do risco; torna o evento final previsível dentro do desenvolvimento natural da situação negligenciada.
Para que possamos entender melhor, equipara-se a determinadas situações como: suicídio em hospitais; evasão de pacientes psiquiátricos; libertação irregular de detentos com diagnóstico de transtornos mentais; falha no acompanhamento de pessoas em extrema vulnerabilidade que, abandonadas, praticam atos autolesivos; falha no acompanhamento de pessoas em extrema vulnerabilidade que, abandonadas, praticam atos autolesivos, etc
A pergunta central, portanto, não é se o zoológico falhou, mas:
Se o Estado tivesse executado o acolhimento psiquiátrico determinado, o evento teria ocorrido?
Se a resposta for negativa, está estabelecido o nexo causal indireto, mas juridicamente suficiente, entre a omissão estatal e o resultado morte.
5. Culpa concorrente e redução da indenização
Outro aspecto a ser abordado neste artigo, é a possibilidade - e até provável - que eventual demanda judicial reconheça culpa concorrente (art. 945 do CC). Isso porque o comportamento de adentrar recinto de animal selvagem não é juridicamente irrelevante.
O reconhecimento de culpa concorrente, porém, não afasta a responsabilidade estatal, apenas permite eventual redução proporcional da indenização.
A conduta imprudente da vítima e a omissão estatal específica não são excludentes; são complementares na formação do dano.
6. Reflexões finais: O caso como espelho das fragilidades da política de saúde mental
A morte do jovem dentro do zoológico, decorrente de uma invasão deliberada, por si só, dificilmente geraria responsabilidade civil do Estado em razão da segurança do local. O nexo causal é rompido pela conduta voluntária da vítima.
Entretanto, a situação ganha contornos completamente diferentes quando expõe a fragilidade estrutural da rede pública de saúde mental, especialmente no que se refere ao atendimento de pessoas em sofrimento psíquico intenso que transitam entre o sistema penal e o sistema de saúde.
A falha no cumprimento da ordem judicial não é mero detalhe administrativo - é ruptura do dever constitucional de proteção (art. 196 da CF) e da centralidade da dignidade humana (art. 1º, III).
Mais que analisar a conduta no zoológico, o caso impõe reflexão sobre: a efetividade das decisões judiciais; a integração (ainda insuficiente) entre sistema penitenciário e saúde pública; a necessidade de protocolos claros e obrigatórios para acolhimento de pessoas em sofrimento psíquico.
Por derradeiro, a responsabilização civil do Estado, caso confirmada a omissão específica, é apenas um dos desdobramentos possíveis. O verdadeiro desafio é evitar que situações semelhantes se repitam - e que vidas vulneráveis deixem de ser protegidas por quem tem o dever jurídico de fazê-lo.


