Decisão que reacende a esperança no superendividamento
Decisão de reconsideração reconhece que mínimo existencial não pode ser fixo e garante o tratamento do superendividamento, reforçando a dignidade e a função social da lei.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Atualizado às 08:57
Recebi sexta-feira, dia 5 de dezembro, enviada por uma advogada, a notícia de uma reconsideração judicial proferida por uma vara cível do Rio de Janeiro. E essa notícia carrega um simbolismo poderoso: quando a lei 14.181/21 é estudada e refletida em profundidade, a magistratura dá o recado correto. O recado é inequívoco - a dignidade da pessoa humana não se limita a um decreto de R$ 600,00.
A reconsideração afastou a aplicação automática do valor fixado pelo decreto presidencial. A prática, adotada de forma reiterada no TJ/RJ, compromete o núcleo da lei, pois reduz o conceito constitucional de mínimo existencial a uma cifra abstrata. O juízo reconheceu que o mínimo existencial é um conceito jurídico indeterminado, que exige avaliação concreta da situação financeira, familiar e social do consumidor.
Essa compreensão decorre diretamente do art. 54-A, § 1º, do CDC, que define o superendividamento como a impossibilidade de pagar dívidas sem comprometer o mínimo existencial. A definição impede, por coerência e por fundamento constitucional, a adoção de valores rígidos. E impede por motivos estruturais:
- A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição) não se compatibiliza com parâmetros aritméticos;
- O princípio da proporcionalidade veda proteção insuficiente (Untermassverbot), proibindo leituras que esvaziem a eficácia da norma;
- A teleologia do CDC exige máxima efetividade às normas protetivas, sobretudo em temas sensíveis como o superendividamento.
Na decisão reconsiderada, a magistrada afirma expressamente que o valor de R$ 600,00 não é critério absoluto, mas apenas referência mínima. Mesmo quando a renda remanescente supera esse patamar, ela pode ser insuficiente para assegurar alimentação, moradia, saúde, transporte e demais condições básicas de sobrevivência. Quando isso ocorre, a violação ao mínimo existencial está configurada, e o tratamento judicial deve ser assegurado.
A atuação técnica da advogada que despachou pessoalmente no gabinete foi determinante. Ela demonstrou a inconstitucionalidade do decreto, explicou que o tema está submetido ao STF e evidenciou que modelos estrangeiros de tratamento do superendividamento nunca adotam valores fixos para definir subsistência digna. Somente após esse diálogo, o juízo reevaluou sua posição e determinou o prosseguimento do rito do art. 104-A do CDC.
Esse caso tem relevância sistêmica. A Lei do Superendividamento inaugurou uma nova cultura jurídica no Brasil. Não se trata de uma mera reforma contratual, mas de uma política pública de proteção humana que exige interpretação constitucionalizada. O superendividamento não é um problema individual: é fenômeno social que amplia a população de rua, incrementa criminalidade, agrava quadros de depressão e suicídio, destrói famílias e compromete o futuro de crianças e adolescentes.
Subordinar o tratamento desse fenômeno a um valor numérico fixo é ignorar a realidade do país e as finalidades da lei. Por isso, a reconsideração recebida hoje reafirma que, quando o Poder Judiciário é provocado com profundidade técnica e rigor argumentativo, a resposta vem - e vem alinhada à Constituição.
Essa decisão não é um ponto isolado. É um sinal claro de maturidade institucional e de evolução jurisprudencial. Demonstra que é possível construir, consistentemente, um sistema de crédito responsável, humano e comprometido com a reintegração social do consumidor superendividado.
Uma semente foi plantada.
E, quando a semente é boa e o solo é fértil, ela germina.
Vamos em frente.


