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A muralha do ITBI: Por que o IBS e a CBS não podem incidir sobre a venda de imóveis

O artigo aborda o equívoco - e consequente inconstitucionalidade - da LC 214/25, ao tributar pelo IBS/CBS a venda de imóveis.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Atualizado às 08:43

A avalanche normativa da reforma tributária (EC 132/23) trouxe consigo uma questão capital que assombra o setor imobiliário: pode a venda de um imóvel, a mais clássica das operações de investimento e formação de patrimônio, ser tributada como um simples ato de consumo pelo novo IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços?

A resposta, sob a ótica rigorosa do Direito Constitucional Tributário, é um sonoro não. A tentativa de submeter a alienação imobiliária à nova tributação sobre o consumo não é apenas uma distorção econômica, mas uma perigosa transgressão das fronteiras de competência desenhadas pela CF/88. Este artigo se propõe a fechar todos os pontos do debate, demonstrando a manifesta inconstitucionalidade dessa pretensão.

1. O DNA do sistema tributário: A tipicidade constitucional das materialidades

Nosso sistema tributário, mesmo após a reforma, não é um campo aberto. Ele se organiza em "gavetas" conceituais, onde cada tributo possui uma materialidade econômica específica, uma razão de ser. A Constituição delimitou com clareza as competências para tributar: a renda, o patrimônio, a transmissão de bens e, agora de forma unificada, o consumo.

Essa separação é a essência da tipicidade constitucional tributária, uma limitação material ao poder de tributar. A transmissão de um imóvel já tem seu tributo próprio e exclusivo: o ITBI, de competência municipal. Sua hipótese de incidência é a transferência de domínio, um ato de circulação de riqueza patrimonial. O IBS e a CBS, por sua vez, nasceram com outra missão: tributar o consumo final, o ato de adquirir um bem ou serviço que se exaure, econômica ou juridicamente, na esfera do adquirente.

Tentar fazer com que o IBS/CBS incidam sobre a venda de um imóvel é como tentar cobrar IPTU sobre o salário. É uma confusão de materialidades que o sistema não autoriza.

2. A natureza da operação imobiliária: Produção de bem de capital, não venda de bem de consumo

O erro fundamental da tese da incidência reside em uma premissa equivocada: a de que a construtora "vende um bem" como qualquer outra indústria. Na realidade, a atividade de incorporação e construção é um processo complexo de organização de fatores de produção (terreno, mão de obra, insumos, capital) para criar um bem de capital: o imóvel.

Do ponto de vista econômico e jurídico, o imóvel não é um bem de consumo fungível. Ele:

  • Não se exaure com a aquisição: Pelo contrário, integra o patrimônio do adquirente por décadas.
  • Constitui investimento: É a principal forma de poupança das famílias e um ativo imobilizado para empresas.
  • Gera renda: Seja pelo uso próprio (que tem um valor econômico implícito), seja pela locação ou exploração comercial.

Tributar a aquisição de um ativo durável e gerador de riqueza como se fosse um produto de prateleira é ignorar a distinção ontológica entre consumo e investimento.

3. A falácia da neutralidade e o "remédio" inadequado da não-cumulatividade

Os defensores da incidência ampla se apegam a dois mantras: o princípio da neutralidade e a não-cumulatividade plena. Ambos, quando aplicados ao setor imobiliário, revelam-se insuficientes para legitimar a tributação.

Primeiro, o princípio da neutralidade, agora positivado como norma cogente (art. 2º da LC 214/25), exige que o tributo não distorça as decisões econômicas. Ora, tributar a aquisição de um imóvel (investimento) da mesma forma que se tributa um bem de consumo passageiro é a própria definição de distorção. Penaliza-se a poupança e a formação de capital fixo, desequilibrando a balança em favor do consumo imediato.

Segundo, o argumento de que a não-cumulatividade (o crédito sobre os insumos) resolveria o problema é uma perigosa simplificação. A não-cumulatividade é uma técnica de apuração, não um elemento do fato gerador. Sua função é evitar a tributação em cascata dentro da cadeia produtiva, mas ela não tem o poder de alterar a natureza jurídica de uma operação.

Se a venda de um imóvel não é, em sua essência, consumo, a aplicação da técnica de creditamento não a transforma em tal. A não-cumulatividade é o remédio para a doença da tributação em cascata, não para o erro de diagnóstico do fato gerador.

Ademais, a neutralidade é uma miragem na prática. O longo ciclo de produção imobiliária (anos) gera uma assimetria temporal brutal: os créditos são acumulados ao longo do desenvolvimento, enquanto o débito é concentrado na venda. A notória demora do Fisco em restituir créditos acumulados transforma o que seria um direito em um custo de carregamento financeiro real, que onera o capital de giro e, inevitavelmente, é repassado ao preço final, violando a neutralidade na prática.

4. Um cavalo de troia na competência municipal: O "ITBI Federal" disfarçado

A consequência mais grave dessa tese é a criação de um "ITBI Federal" disfarçado. Ao fazer o IBS/CBS incidir sobre o valor total da venda do imóvel, o que se está tributando, na prática, é a própria transmissão da propriedade.

Isso representa uma usurpação da competência municipal e uma violação direta ao art. 110 do CTN, que veda à lei tributária a alteração de conceitos de Direito Privado. "Compra e venda de imóvel" é um instituto com definição e alcance consolidados no Direito Civil, e sua redefinição para fins de alargamento de competência tributária é uma "alquimia hermenêutica" que o ordenamento jurídico não permite.

5. As lições do Direito Comparado: Como os IVAs modernos tratam o setor imobiliário

A tese da incidência ampla coloca o Brasil na contramão das melhores práticas internacionais. Nos sistemas de IVA mais maduros do mundo, como na União Europeia, a regra geral é a isenção da venda de imóveis residenciais. Por quê? Porque esses sistemas reconhecem que tributar a aquisição de moradia como consumo é socialmente regressivo e economicamente ineficiente.

Quando há tributação, ela se dá por meio de regimes especiais, com alíquotas reduzidas ou sobre bases de cálculo específicas (como a primeira venda), mas nunca tratando o imóvel como um bem de consumo ordinário. Ignorar décadas de experiência internacional é insistir em um erro que outros países já corrigiram.

Conclusão: O Judiciário como guardião das fronteiras constitucionais

Ainda que a não-cumulatividade plena seja um avanço, ela não é um cheque em branco para que a União e os entes subnacionais avancem sobre materialidades que não lhes pertencem. A venda de um imóvel é um ato de transmissão patrimonial, cuja tributação já está constitucionalmente atribuída ao ITBI.

Tentar submetê-la ao IBS/CBS é violar a repartição de competências, ofender o princípio da neutralidade, ignorar a vedação do art. 110 do CTN e desprezar as melhores práticas internacionais.

Caberá ao Poder Judiciário, como guardião da CF/88, reafirmar essas fronteiras e impedir que a ânsia arrecadatória desfigure a lógica e a racionalidade do novo sistema tributário. A segurança dos investimentos, o acesso à moradia e a própria integridade da repartição de competências federativas dependem disso.

Alessandro Ragazzi

VIP Alessandro Ragazzi

Advogado, formado pela PUC/SP, especialista em Direto Tributário pela PUC/COGEAE. Sócio da RAGAZZI ADVOGADOS ASSOCIADOS, com ênfase em Direito Tributário e Holdings Patrimoniais.

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