O espírito do tempo e a vida das mulheres
A violência contra mulheres no Brasil atinge lares, trabalho e crianças e exige políticas públicas e proteção efetiva imediata.
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Atualizado em 8 de dezembro de 2025 13:38
Há épocas que se expressam por monumentos. Outras por guerras. A nossa se expressa por estatísticas que parecem histórias de um país estrangeiro, embora sejam nossas, íntimas, repetidas em cada rua, cada prédio, cada turno de trabalho. O espírito do tempo, conceito que atravessa a filosofia, a estética e o Direito, revela-se tanto nos grandes acontecimentos quanto nos detalhes que compõem a vida comum. Surge no cotidiano, nos gestos que passam despercebidos, nas ausências que se repetem, nos silêncios que ganham espaço e moldam a experiência social.
O tempo presente fala sobretudo por uma ferida: a violência contra as mulheres. Os números expõem uma realidade que o país evita encarar.
De acordo com o mais recente levantamento do DataSenado, 3,7 milhões de mulheres brasileiras foram vítimas de violência doméstica apenas nos últimos 12 meses1. Esse número, por si só, já desenha um país cansado de ver e cansado de fingir que não vê. Mas o dado que mais marca a respiração é outro: 71% dessas agressões aconteceram diante de testemunhas. E, entre essas, 70% tinham crianças no ambiente. A infância assiste ao que o país não resolve. A violência se expande para além do momento e alcança quem observa. Uma pedagogia cruel, na qual o medo se instala como idioma doméstico.
Em 40% dos episódios com testemunhas, a vítima não recebeu ajuda.
O tempo está ensinando que ver não implica agir.2
O Estado tampouco oferece a segurança que a lei promete. A pesquisa do Instituto Patrícia Galvão (2024) mostra que quase 17 milhões de brasileiras já viveram ou vivem situação de risco de feminicídio.3
Esses episódios compõem a paisagem social, delineando a ética do tempo presente, marcado por uma proteção insuficiente à vida das mulheres.
E a sensação de falta de proteção se confirma na percepção das entrevistadas: 2 em cada 3 mulheres acreditam que nada acontece com quem agride; apenas 20% confiam que esses homens serão presos; 95% dizem que os próprios agressores têm certeza da impunidade; 8 em cada 10 mulheres afirmam que polícia e Justiça não levam a sério as ameaças; 9 em cada 10 acreditam que todo feminicídio poderia ser evitado se houvesse proteção estatal e social efetiva.
O espírito das leis, como escreveu Montesquieu, nasce das práticas de um povo.
E as nossas práticas sugerem que a lei existe, mas sua aplicação não alcança a urgência do risco.
A cidade de São Paulo expressa esse tempo com nitidez.
Entre janeiro e outubro de 2025, registrou 53 feminicídios, o maior número desde 2015. No estado, foram 207 no mesmo período.4
Os casos que ocuparam o noticiário nesses meses revelam uma brutalidade que parece incompatível com qualquer civilização que pretenda se dizer estável. Tainara Souza Santos foi arrastada por um carro dirigido por seu ex-companheiro, consequência de uma disputa marcada por ciúmes. Suas pernas foram amputadas. Em outro episódio, Evelin Saraiva foi alvejada no ambiente de trabalho, enquanto cumpria sua jornada. O agressor disparou duas armas, simultaneamente, diante de clientes, diante da vida comum. A cidade viu e, ainda assim, se pergunta por que os números sobem.
Mas nada disso é descolado das condições sociais que o tempo produz. A violência ganha forma ao longo de décadas, apoiada em estruturas que permanecem intocadas.
O trabalho é um desses espaços onde o espírito do tempo se revela com maior nitidez.
A pesquisa de Claudia Brum Mothé, reunindo dados do Atlas da Violência, do Ministério da Saúde e da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar, demonstra que a violência doméstica não está limitada à esfera privada. Ela invade o ambiente profissional, altera trajetórias, corrói rendimentos, sabota a autonomia, deforma o futuro.5
Entre as mulheres que sofreram violência doméstica:
- apenas 33% estão satisfeitas com seu emprego, contra 43% das que não sofreram;
- 22% relataram interferência direta no trabalho, com quedas de rendimento e faltas;
- quando há faltas, a média anual é de 18 dias, o que resulta em descontos salariais e demissões; 23% recusaram oportunidades de emprego porque o parceiro não permitiu;
- o tempo de permanência no trabalho cai de 74 meses para 58; mulheres vítimas de violência ganham cerca de 10% menos, diferença que, em cidades como Fortaleza, chega a 34%.
O recorte racial aprofunda a desigualdade: mulheres negras vítimas de violência recebem, em média, R$ 7,74 por hora, enquanto mulheres brancas não vitimadas recebem R$ 11,42.
A combinação entre machismo, racismo e estrutura econômica cria um campo onde a autonomia se fragmenta. E quando a autonomia se rompe, o risco aumenta.
O ambiente de trabalho também expressa a violência simbólica que antecede a física. A cartilha do TRT da 13ª região descreve práticas ainda frequentes:
mansplaining: a explicação desnecessária que infantiliza;
manterrupting: a interrupção recorrente que desautoriza;
bropriating: a apropriação da ideia da mulher pelo colega que recebe o crédito;
gaslighting: a manipulação psicológica que faz a mulher duvidar da própria sanidade.6
Essas práticas integram estruturas internalizadas. São pequenos golpes diários que moldam um ambiente favorável ao agravamento da violência. A agressão física costuma amadurecer nesse solo de desautorização contínua. O Instituto Patrícia Galvão reforça esse desenho estrutural: 21% das mulheres brasileiras já foram ameaçadas de morte por parceiros. Entre mulheres negras, esse percentual sobe para 26%.
A ameaça integra o cotidiano afetivo de milhões de mulheres e se manifesta como presença constante na vida social. Metade das ameaçadas teme morrer.
E, ainda assim, muitas não denunciam: por medo, por dependência econômica, por descrença institucional.
O que mantém uma mulher numa relação violenta?
As respostas aparecem claramente: dependência financeira; medo da retaliação; ausência de apoio psicológico; ausência de políticas públicas que sustentem a transição para a autonomia.
Quando perguntadas sobre o que seria necessário para romper o ciclo, as entrevistadas apontam:
- assistência social;
- apoio psicológico;
- renda;
- segurança estatal.
Essas demandas têm caráter prático e surgem de condições materiais que alcançam o campo das relações de trabalho.
E há, ainda, a transmissão geracional da violência.
Sete em cada dez agressões com testemunhas incluem crianças.
O tempo ensina pela repetição, e o país repete ruídos que deveriam provocar interrupção imediata.
A violência alcança quem sofre e também quem presencia.
A criança que cresce assistindo à humilhação aprende que aquele modelo é possível, às vezes inevitável. O ciclo se completa quando essa criança, anos depois, repete ou tolera aquilo que presenciou. O espírito do tempo se reproduz como se fosse destino, sustentado por escolhas sociais que moldam a experiência coletiva.
Mas há uma nota importante, e talvez a mais decisiva para a crônica que se quer pública: 9 em cada 10 mulheres acreditam que todo feminicídio pode ser evitado.
Essa percepção surge de uma leitura realista das ausências que estruturam o cenário atual. Falta proteção que funcione. Falta polícia que atue com seriedade diante da ameaça. Falta Justiça que compreenda o risco imediato. Falta rede de apoio que não abandone a mulher no momento decisivo. Falta autonomia econômica.
Falta educação para meninos e homens. Falta tempo para que elas vivam sem medo do próximo minuto.
E, ainda assim, há uma crença persistente de que campanhas importam: 81% defendem campanhas para estimular denúncias; 62% acreditam em campanhas escolares sobre igualdade; 66% defendem campanhas amplas de conscientização; 8 em cada 10 veem nas redes sociais uma ferramenta importante para mobilização.
O que o país chama de problema privado tem, na percepção das mulheres, uma solução pública e coletiva.
O espírito do tempo se expressa por meio daquilo que o país tolera.
E tolerar a morte de mulheres é forma de declarar quem pode viver.
O tempo se apresenta como trama: pode ser refeito, reescrito, remendado, como tecido que rasga e encontra outra costura. Este tempo mostra que a violência ultrapassa o momento do ataque e se espalha pelos corredores do trabalho, pelos lares, pelas escolas e pelas instituições que deveriam atuar como abrigo. E, no entanto, há uma convicção que insiste: todo feminicídio pode ser evitado.
O espírito do tempo é feito de escolhas.
E este país já adiou escolhas demais.
Enquanto não se proteger quem sustenta a vida social, a economia, o cuidado, a produção, a criação, o país seguirá olhando para o espelho sem reconhecer o próprio rosto. O tempo continuará sendo cronista da violência. E a violência continuará sendo cronista de um país que falha com suas mulheres.
Mas o tempo pode mudar. E mudar não exige milagres: exige ação.
O amanhecer de um país não depende de grandes gestos heroicos.
Depende de políticas públicas sustentáveis, de instituições responsáveis, de vizinhos atentos, de empregadores comprometidos, de escolas que eduquem para a igualdade, de homens que rejeitem a herança da violência, de um Estado que leve a sério o risco antes que ele vire morte.
O espírito do tempo pode ser reinventado quando a sociedade decide que nenhuma mulher será deixada para trás.
E é disso que se trata: de escolher um tempo onde a vida das mulheres não seja negociável.
___________
1 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/11/24/datasenado-violencia-de-genero-atinge-3-7-milhoes-de-brasileiras Acesso em 04 dez. 2025
2 https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2025/11/70-das-acoes-de-violencia-contra-a-mulher-tem-testemunhas-aponta-datasenado Acesso em 04 dez. 2025
3 https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/dados-e-fontes/pesquisas/?ian=2024 Acesso em 04 dez. 2025
4 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/casos-de-feminicidio-crescem-no-estado-de-sao-paulo-capital-puxa-alta/ Acesso em 04 dez. 2025
5 https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/165831/2019_mothe_claudia_violencia_mulher.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso 04 dez. 2025
6 https://www.trt13.jus.br/transparencia/informacoes-diversas/cartilha Acesso 04 dez. 2025
Isabel Cristina de Medeiros Tormes
Formada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Isabel Cristina de Medeiros Tormes é advogada com atuação exclusiva na área trabalhista há quase três décadas. Especialista em Direito da Moda (Fashion-Law), é presidente da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo (AATSP) e sócia do Rodrigues Jr. Advogados.


