Impeachment de ministros do STF: O fim do controle republicano?
A criação de uma casta de magistrados praticamente imunes ao processo de impeachment corrói a essência do sistema de freios e contrapesos, pilar fundamental do Estado de Direito.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 13:02
I - Introdução
A presente análise crítica se debruça sobre a medida cautelar deferida na ADPF 1.259/DF, de relatoria do ministro Gilmar Mendes. A decisão, de grande repercussão, promoveu uma reinterpretação de dispositivos da lei 1.079/1950 (lei do impeachment) e de outras normas, alterando significativamente o rito do processo de impeachment de ministros do STF. Este documento visa a combater, de maneira minuciosa e com técnica jurídica, os argumentos centrais expendidos pelo relator, demonstrando as inconsistências e os potenciais riscos de sua tese para o equilíbrio institucional brasileiro.
O cerne da decisão repousa sobre a premissa de que o modelo de impeachment previsto na legislação ordinária, especialmente no que tange ao quórum de admissibilidade e ao afastamento automático do cargo, representaria uma forma de "constitucionalismo abusivo", capaz de subjugar o Poder Judiciário a pressões políticas e de minar a sua independência. Para tanto, o ministro Gilmar Mendes evoca a separação de poderes, as garantias da magistratura e a função contramajoritária da Corte como fundamentos para justificar a necessidade de um filtro processual mais rigoroso.
Contudo, uma análise detida revela que a decisão, a pretexto de proteger a Constituição, pode, paradoxalmente, subvertê-la, criando uma casta de agentes públicos imune ao controle republicano e desequilibrando o sistema de freios e contrapesos em favor do próprio Judiciário.
II - O falso argumento do "constitucionalismo abusivo"
O relator inicia sua fundamentação com uma digressão sobre o fenômeno do "constitucionalismo abusivo", citando exemplos de nações como Hungria e Venezuela, onde reformas institucionais teriam sido utilizadas para minar a independência judicial. A ilação proposta é a de que a aplicação da lei do impeachment em sua literalidade, no Brasil, se assemelharia a tais práticas, configurando uma ameaça à democracia.
Este argumento, embora retoricamente poderoso, carece de aderência à realidade brasileira e se mostra um sofisma. A lei 1.079/1950 não é uma inovação autoritária, mas um diploma legal recepcionado pela Constituição de 1988 e que vigora há mais de sete décadas, tendo sido aplicado em diversas ocasiões, inclusive contra presidentes da República, sem que se cogitasse de ruptura institucional. A comparação com regimes autocráticos é, portanto, despropositada e alarmista, servindo como um artifício para justificar uma intervenção judicial excepcional em matéria de competência do Poder Legislativo.
O verdadeiro constitucionalismo abusivo pode residir, ironicamente, na própria decisão em análise. Ao reescrever a legislação por meio de interpretação conforme, o STF atua como legislador positivo, usurpando a competência do Congresso Nacional e violando a separação de poderes que alega proteger. A alteração de quóruns e procedimentos definidos em lei, com base em conceitos jurídicos abertos e em uma suposta "ameaça" difusa, representa uma perigosa expansão do ativismo judicial, que transforma o guardião da Constituição em seu remodelador
III - A separação de poderes e o sistema de freios e contrapesos: Uma leitura seletiva
A decisão enfatiza, corretamente, que a separação de poderes é uma cláusula pétrea da Constituição (art. 60, § 4º, III). No entanto, a interpretação que se segue é seletiva e unilateral. O sistema de freios e contrapesos não existe apenas para proteger o Judiciário de eventuais excessos dos outros Poderes, mas para garantir um controle recíproco entre todas as esferas de poder. O impeachment é, por excelência, um dos mais importantes freios que o Legislativo possui sobre o Executivo e o Judiciário.
Ao dificultar sobremaneira o processo de impeachment de seus próprios membros, o STF enfraquece esse mecanismo de controle e se coloca em uma posição de supremacia, e não de paridade, em relação aos demais Poderes. A decisão ignora que a Constituição, ao prever o julgamento de ministros do STF pelo Senado Federal por crimes de responsabilidade (art. 52, II), estabeleceu um controle de natureza eminentemente política, e não apenas jurídica. Negar ou dificultar a exequibilidade desse controle é ferir o desenho institucional concebido pelo poder constituinte originário.
Para sintetizar a contraposição entre a lógica da decisão e os princípios constitucionais que ela mesma alega defender, o quadro a seguir resume os pontos centrais do debate:
1) Argumento da decisão
a) A separação de poderes exige a proteção da independência judicial contra o controle político.
b) O quórum de maioria simples para admissibilidade da denúncia torna o STF vulnerável a pressões políticas.
2) Contra-argumento técnico-jurídico
a) A separação de poderes exige um sistema de freios e contrapesos recíproco. O impeachment é um instrumento legítimo de controle político do Legislativo sobre o Judiciário, previsto na Constituição.
b) O quórum é matéria de conformação legislativa. A exigência de 2/3, criada pela decisão, não possui lastro constitucional e representa uma indevida interferência do Judiciário na esfera de competência do Legislativo.
IV - As garantias da magistratura não são um escudo para a irresponsabilidade
As garantias da magistratura - vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (art. 95, CF) - são, de fato, pilares da independência judicial. Contudo, a decisão as interpreta de forma absoluta, transformando-as em privilégios que isentam os ministros de qualquer forma de responsabilização efetiva. Tais garantias foram concebidas para proteger a função jurisdicional, e não para blindar o agente público de responder por seus atos quando estes configuram crimes de responsabilidade.
A vitaliciedade, por exemplo, não significa imunidade perpétua. A própria Constituição excepciona a perda do cargo mediante sentença judicial transitada em julgado ou, no caso dos ministros do STF, por meio do processo de impeachment. A decisão do ministro Gilmar Mendes, ao criar barreiras processuais intransponíveis, torna a exceção constitucional praticamente inócua, esvaziando o conteúdo normativo do art. 52, II, da CF.
O afastamento automático do cargo e a redução de vencimentos, previstos na lei 1.079/1950, são medidas cautelares que visam a resguardar a dignidade do cargo e a evitar que o acusado utilize sua posição para interferir no processo. Tais medidas não violam a presunção de inocência nem as garantias da magistratura, pois são temporárias e reversíveis em caso de absolvição. A decisão de afastá-las por considerá-las "desproporcionais" é uma avaliação subjetiva que ignora a finalidade e a natureza do processo de impeachment.
V - Incostitucionalidade da fixação de quórum por decisão judicial
Talvez o ponto mais frágil e juridicamente insustentável da decisão seja a fixação de um quórum de 2/3 dos membros do Senado para a admissibilidade e o recebimento da denúncia de impeachment. A Constituição Federal é silente quanto a este quórum, delegando à legislação ordinária a sua definição. A lei 1.079/1950, por sua vez, estabeleceu a maioria simples.
Ao declarar a não recepção dos artigos que preveem a maioria simples e, ato contínuo, "estabelecer" um novo quórum por analogia ao da condenação, o relator atua como legislador positivo, em clara violação ao princípio da separação de poderes. O controle de constitucionalidade permite ao Judiciário afastar a aplicação de uma norma inconstitucional, mas não lhe confere o poder de criar uma nova norma em substituição.
"A fiscalização da constitucionalidade das leis consiste em um juízo de compatibilidade vertical, que não pode, sob pena de grave distorção, converter-se em um poder de criação normativa pelo órgão jurisdicional. Ao fixar um novo quórum, o STF não apenas interpreta, mas inova na ordem jurídica, o que é prerrogativa exclusiva do Poder Legislativo."
Essa postura representa um ativismo judicial que exorbita os limites da jurisdição constitucional e cria um perigoso precedente. Se o STF pode alterar o quórum de um processo de impeachment, o que o impede de, no futuro, alterar outras regras processuais ou mesmo o mérito de decisões políticas do Congresso Nacional?
VI - A restrição da legitimidade para a denúncia: Um retrocesso democrático
A decisão acata o pedido para conferir interpretação conforme ao art. 41 da lei do impeachment, restringindo ao PGR - Procurador-Geral da República a legitimidade para oferecer denúncia por crime de responsabilidade contra ministros do STF. Atualmente, a lei permite que qualquer cidadão o faça, em um claro exercício de controle social e cidadania.
Essa restrição representa um grave retrocesso democrático. Ela retira do cidadão um importante instrumento de fiscalização dos poderes constituídos e o monopoliza nas mãos de uma única autoridade, o PGR, que é nomeado pelo presidente da República e aprovado pelo Senado. Tal medida cria um filtro político que pode ser utilizado para proteger ministros alinhados ao governo de plantão, em detrimento do interesse público.
A natureza do crime de responsabilidade é política, e o processo de impeachment é um julgamento político. Faz todo o sentido, portanto, que a sua deflagração possa ser provocada pelo povo, titular do poder, por meio de seus cidadãos. Limitar essa prerrogativa ao PGR é burocratizar e partidarizar o controle, enfraquecendo a República.
Conclusão
A questão que intitula este artigo - se a decisão na ADPF 1.259 representa o fim do controle republicano sobre os ministros do STF - não é um mero artifício retórico. A análise técnica de seus fundamentos revela que estamos, de fato, diante de um passo perigoso nessa direção. Ao blindar seus próprios membros contra um dos mais essenciais instrumentos de responsabilização previstos na Constituição, o STF não apenas se autoprotege, mas redefine sua posição no arranjo institucional, posicionando-se acima dos demais Poderes e, em última instância, acima do próprio povo.
A decisão, sob o pretexto de garantir a independência judicial, confunde esta prerrogativa com soberania. Independência não pode ser sinônimo de irresponsabilidade. Em uma República, nenhum agente público é absoluto. A criação de uma casta de magistrados praticamente imunes ao processo de impeachment corrói a essência do sistema de freios e contrapesos, pilar fundamental do Estado de Direito.
Portanto, a reversão desta medida cautelar pelo Plenário do STF é mais do que uma necessidade jurídica; é uma condição para a sobrevivência do equilíbrio democrático. Restaurar a plena eficácia do controle político sobre os membros da mais alta Corte do país não é um ataque à sua independência, mas a reafirmação de que, na República brasileira, ninguém está acima da Constituição e das leis que dela emanam.


