O futuro perverso do terceiro setor no horizonte da reforma tributária
Uma análise do sistema tributário atual sobre o setor, e as alterações da LC 214/25 e do PLP 108/24.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:18
As associações civis e organizações do terceiro setor exercem papel estrutural na economia e na organização social brasileira. Atuam como verdadeiras coalizões cooperativas, fornecendo bens e serviços classificados pela teoria econômica como bens públicos ou quasi-públicos (bens de uso excludente imperfeito, parcialmente rivais e marcados por relevantes efeitos positivos à sociedade). Educação comunitária, saúde preventiva, cultura, esporte, lazer, inclusão social, proteção ambiental e desenvolvimento local são exemplos paradigmáticos.
Essa atuação facilita o acesso popular a muitos direitos fundamentais - reduzindo os custos de transação à luz do teorema de Coase) -, mitiga falhas de mercado e supre deficiências históricas do Estado. Sob a ótica da análise econômica do Direito e da teoria dos jogos, tais entidades contribuem para evitar o chamado "dilema do prisioneiro social", no qual os agentes privilegiam seus interesses ao bem social por desconfiança generalizada nos demais. Isso, porque estruturam mecanismos de cooperação repetida, governança horizontal e reputação institucional.
O regime histórico de desoneração das associações sem fins lucrativos foi concebido como instrumento de eficiência econômica e justiça distributiva. Sua espinha dorsal é composta pelas imunidades previstas no art. 150, VI, "c", e art. 195, §6º, da CF/88, aplicável aos impostos incidentes sobre patrimônio, renda e serviços e às contribuições sociais exigidas das instituições de educação e assistência social sem fins lucrativos (saúde inclusa), desde que atendidos os requisitos do art. 14 do CTN.
Esses requisitos evitam usos oportunistas dos incentivos fiscais, funcionando como mecanismos de screening ex ante e de controle ex post, exigindo: não distribuição de qualquer parcela do patrimônio ou das rendas; aplicação integral dos recursos na consecução dos objetivos institucionais; e manutenção de escrituração contábil regular e idônea.
Em matéria de IRPJ e da CSLL, a lei 9.532/1997 aprofunda esse modelo ao disciplinar as condições para fruição da imunidade ou isenção do IRPJ e da CSLL. O §2º de seu art. 12 exige, dentre outros pontos, que a entidade não remunere dirigentes estatutários (ressalvadas exceções legais), não distribua resultados direta ou indiretamente a pessoas ou entidades não imunes/isentas, aplique seus recursos no território nacional e mantenha escrituração contábil regular que evidencie a origem e a destinação das receitas.
A IN RFB 2.121/22, por sua vez, reforça tais condicionantes no que toca a PIS e Cofins ao detalhar, no art. 8º, a cobrança da primeira contribuição à alíquota de 1% sobre a folha de pagamentos e, no art. 23, isentar do segundo tributo as receitas "próprias" - doações, contribuições e mensalidades legais ou estatutárias, contraprestacionais ou não - e "derivadas" - demais receitas oriundas de bens ou serviços fornecidos como contraprestação.
No âmbito das contribuições previdenciárias, a LC 187/21, em seu art. 3º, estabelece critérios adicionais para a fruição da imunidade prevista no art. 195, §7º, da CF para entidades de educação, assistência social e saúde, condicionando-a, entre outros fatores, ao efetivo cumprimento de metas por atividade, à transparência na gestão e à comprovação periódica do cumprimento da função social, materializada pelo CEBAS.
Esse desenho normativo produziu, por décadas, um equilíbrio virtuoso: entidades legítimas eram desoneradas, oportunistas eram filtrados e a cooperação institucional se mantinha estável em razão da repetição dos jogos e do reforço reputacional.
A reforma tributária introduzida pela EC 132/23 e LC 214/25 inaugura um novo regime de tributação sobre o consumo com um IVA amplo (IBS/CBS) sobre operações com bens e serviços. No caso das associações sem fins lucrativos embora o novo sistema se paute na simplificação e neutralidade econômica, não há qualquer tratamento privilegiado (com exceção daquelas mantidas como imunes), rompendo totalmente com o arranjo atual. Todas as receitas, sejam "próprias" ou "derivadas", serão tributadas à maior alíquota, independentemente de seu caráter filantrópico e posição fundamental na acessibilidade a diversos direitos fundamentais ao ser humano.
Ainda que as imunidades e isenções concedidas a título de outros impostos, tais como, ICMS e ISS, e ao IRPJ e à CSLL permaneçam intactas, elas não dialogam com o IVA. Teremos o cenário estranho em que operações de entidades com pouca ou nenhuma capacidade contributiva, dada sua não lucratividade, são desoneradas para fins dos tributos substituídos e serão oneradas pelos novos. O resultado é a elevação abrupta do custo operacional dessas entidades e redução dos payoffs econômicos aos interessados em auxiliá-las ou constituí-las.
O PLP 108/25, atualmente em tramitação, tenta mitigar os efeitos mais severos da LC 214 ao prever, via inclusão de um inciso XII em seu art. 6º, a não incidência do IBS e da CBS sobre as receitas oriundas de "contribuições associativas estatutárias, de natureza não contraprestacional, destinadas à manutenção das associações civis sem fins econômicos".
Apesar de representar avanço pontual, o texto incorre em fragilidade decisiva: não define o que se entende por "contraprestação". Essa lacuna transfere à administração tributária amplo poder classificatório, permitindo que qualquer vantagem oferecida aos associados - deduções de tributos em benefício do doador, cursos, oficinas, acesso a instalações, eventos, programas de capacitação ou mesmo benefícios institucionais - seja interpretada como prestação tributável.
Importante notar que, mesmo se aprovado, o PLP não reconstitui o regime tradicional de imunidades e isenções, apenas preserva um núcleo mínimo e incerto de receitas. Na prática, a tributação das associações permanece estruturalmente mais elevada do que no sistema anterior, comprometendo sua sustentabilidade econômica.
A partir da teoria dos jogos, o novo desenho normativo cria um paradoxo de incentivos. Entidades legítimas, que historicamente atuam conforme regras de compliance, governança e transparência, veem-se desincentivadas pelo aumento de custos e pela insegurança jurídica. Em contrapartida, surgem incentivos claros para entidades para-legítimas estruturarem artificialmente suas operações para escapar da incidência do IVA.
O solo se torna fértil então para estratégias de arbitragem regulatória em que contribuintes mal-intencionados rebatizam mensalidades de "quotas estatutárias"; requalificam serviços para "benefícios institucionais"; transformam vendas de produtos em "apoios culturais"; ou convertem eventos pagos em "contribuições para manutenção de projetos".
Esse ambiente favorece seleção adversa e moral hazard, conduzindo a um equilíbrio de Nash perverso e de baixa qualidade com entidades cooperativas perdendo espaço, oportunistas se multiplicando, o Estado respondendo com maior fiscalização e litigiosidade, e a sociedade perdendo eficiência na provisão de bens públicos e quasi-públicos.
Um ponto extremamente sensível nesse contexto todo é o tratamento conferido aos patrocínios. Na ausência de regras mais vantajosas, esses valores recebidos para viabilizar eventos educacionais, culturais, esportivos ou assistenciais tendem a ser considerados como remuneração por serviços de publicidade para fins de IVA. Todavia, os patrocínios recebidos para estes eventos atualmente não são tributados, nem sequer pelo ISS, mesmo quando há contrapartida ao patrocinador (exposição e menção da marca na divulgação do evento, ingressos etc).
Apesar da sensação de continuidade, o salto é expressivo: sai-se de uma carga zero de tributação para uma potencial de 28,5%. Sob a ótica econômica, isso desorganiza completamente o modelo de financiamento de eventos sociais, nos quais o patrocínio subsidia ingressos e viabiliza a participação do público-alvo e setores sociais. A tributação desses saldos desencadeia um ciclo vicioso: menor atratividade para patrocinadores, eventos menores, público reduzido e, em última instância, inviabilidade total.
A LC 214/25, ao desconsiderar as especificidades econômicas e institucionais do terceiro setor, desalinha incentivos, fragiliza a cooperação social e compromete a provisão privada de bens públicos e quasi-públicos. O PLP 108/25, embora represente melhora marginal, não elimina a insegurança jurídica nem recompõe o equilíbrio virtuoso do regime anterior.
Em matéria tributária e de Brasil, incentivos comportamentais e econômicos sempre importam, e a reforma tributária os desalinhou.
Quando o Estado tributa quem coopera e cria brechas para quem apenas imita a cooperação, destrói capital social, humano e institucional.



