Saque do FGTS em casos de autismo: Limites, fundamentos legais e consolidação
Saque do FGTS por autismo: entenda como a lei e a Justiça têm garantido o direito das famílias ao uso do fundo para custear terapias essenciais.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:28
O saque do FGTS por motivo de doença grave é um dos mecanismos de proteção social previstos na legislação brasileira. Criado originalmente para assegurar segurança econômica ao trabalhador em situações de vulnerabilidade, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ao longo dos anos, passou a cumprir papel cada vez mais relevante na promoção do direito à saúde, especialmente em casos de enfermidades graves ou de tratamentos de alto custo.
No contexto do TEA - Transtorno do Espectro Autista, essa função social do FGTS ganha contornos ainda mais expressivos. O autismo, embora não seja considerado uma doença e não esteja listado expressamente entre as doenças graves nas normas administrativas da Caixa Econômica Federal, exige cuidados permanentes, multiprofissionais e, na maior parte dos casos, financeiramente incompatíveis com a realidade das famílias brasileiras. Diante disso, a discussão jurídica sobre a possibilidade de saque do FGTS para custear o tratamento de dependentes com TEA tem se ampliado, e a jurisprudência vem desempenhando papel decisivo na construção desse direito.
1. A função social do FGTS e sua evolução interpretativa
A lei 8.036/1990, ao prever as hipóteses de saque do FGTS, parte de uma visão protetiva do trabalhador e de sua família, permitindo a utilização dos recursos em situações que comprometam sua subsistência ou saúde. O art. 20 do diploma legal elenca hipóteses de levantamento dos depósitos, entre as quais a ocorrência de doenças graves. O Decreto 99.684/1990, por sua vez, regulamenta casos tradicionais como neoplasia maligna, HIV, cardiopatia grave, entre outros quadros clínicos severos.
Essas hipóteses, no entanto, foram elaboradas a partir de uma concepção restrita do que se considera "doença grave", fundada em patologias de evolução rápida ou que implicam risco iminente de morte. Com o tempo, a jurisprudência começou a reconhecer que o rol não poderia ser interpretado de forma estanque, sob pena de esvaziar a própria finalidade protetiva do FGTS. Assim, passou-se a admitir que doenças e condições não previstas expressamente também poderiam ensejar o saque, desde que demonstrada a gravidade do quadro e a imprescindibilidade do tratamento.
Esse movimento interpretativo abriu espaço para a inclusão de condições crônicas e permanentes - como o TEA - que, embora não se enquadrem no conceito clássico de "doença grave", exigem cuidados contínuos, complexos e de alto custo.
2. O autismo como deficiência para todos os efeitos legais
O ponto de inflexão normativa sobre o tema está na lei 12.764/12, a conhecida lei Berenice Piana. Em seu art. 1º, §2º, o legislador determinou que a pessoa com Transtorno do Espectro Autista é considerada pessoa com deficiência para todos os efeitos legais. Essa expressão ampla e categórica tem implicações diretas na interpretação das regras de saque do FGTS.
A partir dela, o TEA deixa de ser analisado apenas como condição médica ou psiquiátrica e passa a integrar o regime jurídico específico de proteção às pessoas com deficiência, que confere prioridade absoluta a políticas de inclusão, acesso à saúde, educação, assistência social e ao pleno desenvolvimento humano.
Esse regime é amplamente reforçado pela lei brasileira de inclusão (lei 13.146/15), que estabelece princípios como dignidade da pessoa humana, não discriminação, acessibilidade, participação comunitária e igualdade de oportunidades. Ao impor ao Estado, à sociedade e à família o dever de assegurar condições adequadas de desenvolvimento e saúde, a LBI opera como vetor interpretativo para todas as normas relacionadas à deficiência - incluindo, portanto, aquelas relativas ao FGTS.
3. A posição administrativa da Caixa Econômica Federal
Embora o arcabouço legislativo seja amplo e protetivo, a Caixa Econômica Federal adota postura restritiva na via administrativa. Nos últimos anos, a instituição passou a reconhecer o direito ao saque do FGTS nos casos de autismoapenas quando classificado como grau severo (nível 3), conforme laudo médico fundamentado. Esse reconhecimento administrativo, porém, não se estendeu aos graus leve e moderado (níveis 1 e 2).
O formulário padrão para solicitação de saque por doença grave, disponibilizado pela Caixa, passou a incluir o TEA nível 3 entre as hipóteses que podem justificar o levantamento. Ainda assim, a análise é rigorosa e exige:
- laudo detalhado contendo CID e grau do autismo;
- descrição das limitações funcionais e da necessidade de acompanhamento permanente;
- indicação das terapias recomendadas;
- justificativa médica que demonstre a indispensabilidade do tratamento.
Na prática, mesmo famílias com crianças em TEA severo têm enfrentado negativas, ora por "insuficiência documental", ora porque o laudo não se amolda à interpretação interna adotada pelas agências.
Essa limitação administrativa, todavia, não encontra respaldo legal. O FGTS é regido por lei federal, e nenhuma portaria ou normativo interno da Caixa pode restringir direitos de maneira mais severa do que a legislação estabelece. É justamente nesse ponto que a judicialização tem sido fundamental.
4. O papel da jurisprudência: rol exemplificativo e construção do direito
A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais tem sido decisiva na consolidação do direito de famílias de pessoas autistas ao saque do FGTS. Diversas decisões recentes afirmam expressamente que:
- O rol de doenças graves é exemplificativo, não taxativo.
- O autismo, como deficiência, pode ensejar o saque independentemente do grau clínico.c.
- O critério central é a necessidade de custear tratamento essencial ao desenvolvimento da criança.
No âmbito dos TRF's, há julgados autorizando o saque integral para custear terapias multidisciplinares, reconhecendo que o tratamento de TEA demanda esforços significativos do núcleo familiar e que sua interrupção pode causar prejuízos irreversíveis ao desenvolvimento da criança.
Encontram-se decisões autorizando o saque em casos de autismo moderado, afastando especificamente a limitação administrativa da Caixa que condiciona o direito apenas ao grau severo. O fundamento utilizado é que a legislação não faz distinção entre tipos de deficiência, tampouco entre graus de comprometimento, e que a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse da criança devem prevalecer.
Outros precedentes seguem a mesma linha, reconhecendo que o TEA, por sua natureza crônica e pela demanda por acompanhamento contínuo, se enquadra no conceito ampliado de "doença grave" para fins de saque do FGTS, especialmente quando comprovado que o tratamento é indispensável e financeiramente oneroso.
O entendimento é reforçado pela função social do FGTS, frequentemente mencionada pelos julgadores, que apontam que o Fundo não é uma poupança destinada apenas a eventos futuros, mas instrumento de proteção social imediata. Negar o saque para custear tratamento essencial inviabilizaria o próprio objetivo para o qual o FGTS foi criado.
5. Documentos e requisitos: como comprovar o direito
Embora as exigências variem entre a via administrativa e a judicial, de modo geral é necessário apresentar:
- Documento de identificação;
- Comprovante de dependência (certidão de nascimento, declaração de IR ou documento equivalente);
- Laudo médico detalhado, emitido de preferência por profissional especialista, contendo CID, grau do TEA, descrição das limitações funcionais e terapias indicadas;
- Orçamentos ou comprovantes de gastos com terapias;
- Relatórios escolares ou multiprofissionais que evidenciem a necessidade de intervenção contínua.
Na via judicial, é recomendável demonstrar:
- a indispensabilidade das terapias especializadas;
- o elevado custo mensal do tratamento;
- a insuficiência do SUS ou do plano de saúde em suprir integralmente as terapias necessárias;
- o risco de regressão ou prejuízo ao desenvolvimento caso o tratamento seja interrompido.
Esse conjunto de documentos permite que o juiz compreenda a gravidade da situação e que o saque do FGTS não se trata de mera conveniência, mas de medida essencial à saúde do dependente.
6. Controvérsias importantes: grau do TEA, cobertura de planos e papel do SUS
Duas controvérsias emergem com frequência.
6.1. A relevância (ou não) do grau do autismo
A Caixa Federal limita o direito ao TEA severo, mas a jurisprudência tem reconhecido que:
- a lei não faz distinção entre níveis de suporte;
- muitos casos de autismo moderado exigem terapias tão intensas quanto os casos severos;
- o impacto financeiro sobre as famílias é significativo em qualquer grau do espectro.
Assim, o grau clínico não tem sido utilizado como critério impeditivo pelos tribunais.
6.2. A relação entre FGTS, SUS e plano de saúde
Alguns juízes analisam se o tratamento está sendo parcialmente custeado por planos de saúde, mas a maioria entende que isso não impede o saque. O FGTS pertence ao trabalhador, e sua utilização para complementar ou viabilizar terapias não oferecidas (ou oferecidas de forma insuficiente) pelo plano ou pelo SUS é legítima e compatível com sua função social.
7. Conclusão
A consolidação jurisprudencial e o fortalecimento da legislação de proteção à pessoa com deficiência formam um cenário robusto para o reconhecimento do direito ao saque do FGTS em casos de autismo. Embora a Caixa Econômica Federal mantenha interpretação restritiva na via administrativa, limitando o acesso aos casos de TEA severo, os tribunais têm reconhecido a natureza exemplificativa do rol de doenças graves e a necessidade de adaptar a interpretação legal às demandas reais das famílias.
Em um contexto em que o tratamento do autismo é intenso, contínuo e oneroso, impedir que o trabalhador utilize um recurso próprio para garantir o desenvolvimento de seu dependente viola a essência do FGTS e despreza a prioridade absoluta assegurada às pessoas com deficiência.
A atuação jurídica especializada torna-se, portanto, indispensável para orientar as famílias, reunir documentação adequada e, quando necessário, buscar o reconhecimento judicial do direito, por meio de advogado especializado, garantindo que o FGTS cumpra sua finalidade: proteger o trabalhador e sua família em situações de especial vulnerabilidade e assegurar, com dignidade, o acesso à saúde e ao desenvolvimento humano.


