Crédito rural e recuperação judicial: O (des)equilíbrio entre reorganização e risco da exclusão financeira
O presente artigo analisa o conflito entre a busca de crédito novo pelo produtor rural e o risco de exclusão financeira.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Atualizado em 9 de dezembro de 2025 14:25
O recente anúncio da principal instituição bancária no setor do agronegócio de que produtores rurais que ingressarem com pedido de recuperação judicial terão dificuldades na concessão de novos créditos, ou até mesmo serão excluídos do acesso a novas linhas de crédito rural, trouxe inúmeras insegurança ao setor, que atualmente passa por alto nível de endividamento. Segundo a reportagem veiculada, a instituição afirmou que os produtores rurais não terão "crédito hoje, amanhã nem nunca mais", bem como a recuperação judicial seria "uma armadilha para o produtor".1
O referido anúncio, além de acender alerta no setor do agronegócio, também suscita debate sobre a função da recuperação judicial, o equilíbio entre o risco bancário e a preservação da atividade empresarial, além das implicações econômicas e jurídicas para o produtor rural.
Dessa forma, a ameaça de exclusão do crédito rural a quem recorre ao instituto da recuperação judicial levanta questões centrais: pode a entidade bancária impor essa limitação? Quais os efeitos práticos e jurídicos para o produtor rural?
A lei 11.101/05 conhecida como LREF - Lei de Recuperação de Empresas e Falências, com as alterações trazidas pela lei 14.112/20, garante expressamente o direito do produtor rural de requerer recuperação judicial - entendimento este já consolidado pelo STJ no Tema 1.1452, desde que comprove o exercício da atividade empresarial há mais de 02 (dois) anos. O art. 48, § 3º da LREF3 autoriza a comprovação desse prazo por meio do LCDPR - Livro Caixa Digital do Produtor Rural ou documentos contábeis equivalentes.
É notório que a LREF em seu art. 47, disciplina o princípio da preservação da empresa, prevendo que a recuperação judicial tem por objeto viabilizar a superação da crise econômico-financeira, mantendo a atividade empresarial, sua função social e o estímulo à atividade econômica.4
Logo, para que haja a preservação da atividade empresarial5, e em se tratando de produtor rural, necessário é que haja dinheiro novo para que ele possa fazer o custeio da safra, visto que é necessário a aquisição de produtos, fertilizantes, sementes, entre outros produtos necessários para o sucesso da safra seguinte.
Nesse sentido, o professor Manoel Justino Bezerra Filho, ensina que a "necessidade capital se acentua ainda mais quando a empresa entra em recuperação judical". Por fim, o ilustre professor completa "Nesse momento em que se mais necessita de aportes financeiros, o que corre sempre é que os financiadores acabam se retraindo, criando dificuldades intransponíveis para o fornecimento de crédito."6
O crédito rural no Brasil é essencial à atividade produtiva, funcionando como instrumento de custeio e investimento. E nesse sentido, os bancos públicos detêm posição dominante nesse segmento, especialmente nas linhas subvencionadas pelo Tesouro Nacional. O principal banco no seguimento é responsável por volta de 60% do crédito rural no país e "era visto com um parceiro de longo prazo."1
A notícia de que a referida instituição, que excluirá da concessão de crédito novo quem ingressa com pedido de recuperação judicial, representa uma mudança de paradigma, pois impõe ao produtor rural um dilema: ou tenta reorganizar-se judicialmente, ou preserva o acesso ao financiamento necessário para a safra. Tal postura, embora fundada em critérios internos de risco, contrasta com a função social da recuperação judicial, cujo objetivo é preservar a atividade produtiva e o emprego (art. 47 da LREF5).
Dessa forma, a exclusão de novo crédito ao produtor rural em recuperação judicial, pode inviabilizar o próprio objetivo da recuperação, criando um ciclo que levará à falência - o produtor rural busca se reerguer, mas perde o crédito essencial para continuar produzindo.
O efeito concreto de eventual banimento é devastador: sem crédito de custeio, o produtor rural em recuperação judicial não conseguirá financiar a próxima safra, comprometendo empregos, contratos e a continuidade de toda a cadeia produtiva. É legítimo que a entidade bancária administre riscos, mas é preciso que o setor financeiro e o Poder Público encontrem equilíbrio entre prudência e apoio à continuidade da atividade rural, sob pena de transformar um instrumento de soerguimento em sentença de inviabilidade econômica, o que certamente levará a falência.7
Cumpre destacar que sob o ponto de vista jurídico, não há vedação legal à concessão de crédito a devedores em recuperação judicial. Ao contrário, o art. 69-A da lei 11.101/05 introduziu o chamado financiamento do devedor durante a recuperação judicial (DIP Financing), com privilégios de restituição, visando justamente estimular a continuidade das operações.8
Ao negar crédito de forma genérica e irrestrita aos produtores em recuperação judicial, a entidade financeira contraria o espírito da legislação e cria barreira à efetividade do instituto recuperacional.7 Tal postura pode ser vista como abusiva se aplicada de modo indiscriminado, sobretudo, considerando a natureza pública e a função social do crédito rural, bem como acarreta efeitos diretos e indiretos.
Entre os diversos efeitos, destaca-se especialmente, o desincentivo à recuperação judicial, visto que os produtores em crise poderão evitar o pedido judicial por medo de perder acesso ao crédito, agravando o endividamento e comprometendo a sustentabilidade da atividade, podendo ocorrer por esse alastramento a falência. Outro efeito sistêmico se dá em razão da exclusão de produtores em recuperação judicial, visto que a negativa de novo crédito reduz a liquidez no setor, gerando reflexos na produção, emprego e arrecadação, prejudicando-se assim toda a cadei produtiva no Brasil.
Logo, a entidade bancária na busca de conter crescimento da inadimplência no crédito rural, que teria aumentado significativamente, apresenta "soluções" baseadas apenas em restrição de crédito, deixando de enfrentar o cerne da crise de liquidez rural, que demanda reestruturação produtiva e jurídica.9
Por outro lado, do ponto de vista bancário e regulatório, é compreensível que uma instituição busque políticas de risco mais rígidas se enfrenta em sua carteira elevado índice de inadimplência. Nesse sentido, as informações recentemente veiculadas apontam que a inadimplência do crédito rural no Brasil tem aumentado consideravelmente,10 bem como os produtores em recuperação judiciais possuem dívidas significativas.11
A se contrapor à referida postura das instituições financeiras, foi publicada a MP 1.314/2512, de 5 de setembro de 2025, que teve como objetivo reduzir o envididamento rural, por intermédio do fomento à disponibilização de linhas de crédito destinadas à liquidação ou à amortização de dívidas de produtores rurais, sendo assim, criadas duas linhas de crédito rural.
A primeira linha de crédito é a injeção de dinheiro público para a reestruturação do setor do agronegócio. Em complemento foi publicada, em 17 de setembro de 2025, a MP 1.316/2513, que concedeu crédito extraordinário no valor de R$ 12.000.000.000,00 (doze bilhões de reais). Os valores serão transmitidos pelo Tesouro Nacional às instituições financeiras, sob a organização do BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
Os beneficiados desse crédito são justamente os produtores rurais e cooperativas de produção agropecuária que tenham tido perda em duas ou mais safras no período de 1º de julho de 2020 a 30 de junho de 2025, em decorrência de eventos climáticos adversos.
A segunda linha de formento ao crédito são os incentivos fiscais que o Estado concede às intistuições financeiras que disponibilizarem linhas de crédito com seus recursos livres.
Estima-se que o fomento estabelecido pelas referidas medidas provisórias beneficiam mais de 100 mil agricultores familiares, médios e grandes produtores, e alcança a 96% dos pequenos e médios produtores inadimplentes ou com dívidas prorrogadas.14
Dessa forma, as referidas medidas provisórias abrem uma janela normativa pontual para reorganização do endividamento rural e para readequação de carteiras de crédito rural pelas instituições financeiras, buscando combater a escassez de crédito aos produtores rurais.
Assim, em que pese a publicação das referidas medidas provisórias, se as entidades bancárias buscam mitigar risco e o custo sistêmico de suas operações, essa mitigação não deve transformar-se em penalização automática ou discriminação de quem legalmente recorreu à recuperação judicial ou em curto prazo, precisará recorrer ao referido instituto.
Portanto, a comunicação da entidade bancária funciona como alerta intenso para o setor: o ingresso em recuperação judicial tem consequências não apenas jurídicas, mas de mercado, que devem ser consideradas com antecedência. Embora o procedimento recuperacional seja legítimo e previsto para o produtor rural, a realidade financeira e institucional pode impor restrições práticas - a quem for agir, cabe preparo técnico-jurídico e estratégico.
Logo, banir o crédito para os produtores rurais em recuperação judicial representa mais do que uma medida de gestão de risco: é um sinal de tensão entre o mercado financeiro e o sistema de insolvência brasileiro. E em que pese a publicação das Medidas Provisórias, que buscam reduzir a escassez do crédito ao produtor rural, negar crédito a quem busca reorganização lícita e judicialmente amparada é caminhar na contramão da preservação da atividade produtiva - fundamento maior da lei de recuperação de empresas.
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1 InfoMoney. Banco do Brasil ameaça banir crédito a produtor rural que pedir recuperação judicial. Publicado em 25/10/2025. Disponível em: https://www.infomoney.com.br
2 O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema 1.145, fixou entendimento vinculante: "Ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos é facultado requerer a recuperação judicial, desde que esteja inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido recuperacional, independentemente do tempo de seu registro."
STJ. Tema Repetitivo nº 1.145, julgado em 22/6/2022.
3 Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente:
[...]
§ 2º No caso de exercício de atividade rural por pessoa jurídica, admite-se a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo por meio da Escrituração Contábil Fiscal (ECF), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir a ECF, entregue tempestivamente.
§ 3º Para a comprovação do prazo estabelecido no caput deste artigo, o cálculo do período de exercício de atividade rural por pessoa física é feito com base no Livro Caixa Digital do Produtor Rural (LCDPR), ou por meio de obrigação legal de registros contábeis que venha a substituir o LCDPR, e pela Declaração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física (DIRPF) e balanço patrimonial, todos entregues tempestivamente.
§ 4º Para efeito do disposto no § 3º deste artigo, no que diz respeito ao período em que não for exigível a entrega do LCDPR, admitir-se-á a entrega do livro-caixa utilizado para a elaboração da DIRPF.
§ 5º Para os fins de atendimento ao disposto nos §§ 2º e 3º deste artigo, as informações contábeis relativas a receitas, a bens, a despesas, a custos e a dívidas deverão estar organizadas de acordo com a legislação e com o padrão contábil da legislação correlata vigente, bem como guardar obediência ao regime de competência e de elaboração de balanço patrimonial por contador habilitado.
4 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação em empresa e falência. 6. ed. São Paulo, Saraiva Jur, 2025. p. 215-216. "Sua preservação é pretendida pela LREF como um modo de se conciliar os diversos interesses afetados com o seu desenvolvimento. Como fonte geradora de bem-estar, a função social da atividade empresarial é justamente se desenvolver e circular riquezas, de modo a permitir a distribuição de dividendos a sócios, mas também de promover a oferta de bens e serviços aos consumidores, aumentar a concorrência entre os agentes econômicos, gerar a oferta de postos de trabalhos e desenvolvimento econômico nacional."
5 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
6 "É unânime o entendimento de que não existe recuperação judicial possível, sem o chamado "dinheiro novo". Qualquer empresa em atividade normal necessita de crédito para poder implementar seus projetos, o que faz normalmente valendo-se de seus contatos no campo financeiro, assumindo empréstimos em banco e colhendo dinheiro de investidores em geral. Essa necessidade de capital mais se acentua quando a empresa entra em recuperação judicial, já palmilhando um campo de crise confessada pelo próprio pedido de recuperação. Nesse momento em que se mais necessita de aportes financeiros, o que corre sempre é que os financiadores acabam se retraindo, criando dificuldades intransponíveis para o fornecimento de crédito." BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência: Lei 11.101/2005 - comentada artigo por artigo. 17. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025. p. 310.
7 Broadcast. Advogados criticam declaração do BB sobre vetar crédito a produtores em recuperação judicial. Publicado em 28/10/2025. Disponível em https://www.broadcast.com.br/
8 DINIZ, Gustavo Saad. Curso de direito comercial. - 2. ed. - Barueri: Atlas, 2022. E-book. p. 712. "A previsão do financiamento pode ser anterior ou pode constar no plano de recuperação. Na primeira hipótese, o art. 69-A da LREF permite ao juiz autorizar o financiamento, depois de ouvido o Comitê de Credores como pressuposto de participação e concordância dos credores com a irrigação da empresa com financiamento que terá um privilégio superior a todos os demais. Na segunda hipótese, o financiamento com esse perfil passa a figurar como parte do plano, transferindo aos credores a deliberação e eventual aceitação, conforme arts. 45 e 66-A da LREF.
Portanto, a alteração feita na reforma da LREEF está na permissão da autorização prévia, por decisão judicial, para que o financiamento seja contratado. Os demais dispositivos foram postos para que o contrato e a decisão sejam protegidos e atribuam maior segurança ao financiador DIP, seja para mudança da decisão em grau de recurso, seja para a rejeição do plano de recuperação. Assim: (a) eventual reforma da decisão judicial sobre o contrato de financiamento não altera a sua natureza extraconcursal, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado (art. 69-B da LREF; (b) a garantia concedida ao financiador DIP poderá ser subordinada, de modo que o juiz pode autorizar que seja estabelecida sobre bem que já garantido para outro credor, desde que se limite ao eventual excesso resultante da alienação do ativo objeto da garantia original, exceção feita à alienação fiduciária (art. 69-C da LREF); (c) em caso de convolação da recuperação em falência, as garantias do contrato de financiamento DIP são conservadas até o limite dos valores liberados para o devedor, mas o contrato tem seus efeitos extintos, com resolução pela superveniência da falência (art. 69-D da LREF)."
9 Globo Rural. Avanço de recuperações judiciais no campo põe BB em estado de alerta. Publicado em 2/12/2025. Disponível em https://globorural.globo.com/.
10 StartRico. Crise No Crédito Rural Do Banco Do Brasil E Oportunidades Para Bancos Privados. Publicado em 28/10/2025. Disponível em https://startrico.com.br/
11 Gazeta do Povo. Inadimplência no agronegócio bate recorde e chega a 8,1%, segundo Serasa. Publicado em 12/11/2025. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/
12 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/Mpv/mpv1314.htm
13 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/Mpv/mpv1316.htm
14 Casa Civil - Agricultura. Medida Provisória do Governo Federal garante R$ 12 bilhões em crédito extraordinário para produtores rurais. Publicado em 17/9/2025. Disponível em https://www.gov.br/casacivil/pt-br/assuntos/noticias/2025/setembro/medida-provisoria-do-governo-federal-garante-r-12-bilhoes-em-credito-extraordinario-para-produtores-rurais.
Eliézer Francisco Buzatto
Sócio do escritório Oliveira e Olivi Advogados Associados. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (2017) e em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2022). Atualmente cursa MBA em Gestão Empresarial na Fundação Getúlio Vargas e MBA em IA e Precedentes do STF/STJ na Universidade do Oeste de Santa Catarina, além de ser membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial (IBRADEM).


