Impeachment não é direito de arrependimento
A discussão sobre a abertura de impeachment de ministros dos Tribunais de Cúpula pode retornar ao clássico debate do "guardião da Constituição".
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:12
Introdução
Todo aluno do curso de Direito já ouviu falar da polêmica entre Hans Kelsen e Carl Schmitt a respeito do "guardião da Constituição", no final do dia, a celeuma pode ser colocada da seguinte forma: i) a Constituição é a decisão política fundamental e deve ser protegida pela própria política (Schmitt); e ii) a Constituição não é apenas uma decisão política, devendo ser estabelecido um Tribunal Constitucional (Kelsen).
Ao que se sabe, no Ocidente, a vitória da posição de Hans Kelsen foi acachapante. Todos os países, ainda que por vias diversas, possuem Tribunais Constitucionais (o que não significa que, necessariamente, sejam imunes às influências políticas).
Recentemente, ainda que de modo indireto, as ADPFs 1.259 e 1.260 trouxeram à baila esta discussão.
Assim, pretende-se estabelecer neste ensaio: i) regras de cabimento e procedimento do impeachment de ministros do STF; ii) síntese das ADPFs 1.259 e 1.260; iii) implicações práticas das regras previstas na lei de 1079/50; e iv) considerações finais.
1. Regras de cabimento e procedimento do impeachment de ministros do STF
Conforme previsto na legislação de regência, o impeachment de ministro do STF se dá na hipótese de cometimento de uma das condutas previstas nos arts. 39 e 39-A.
Dentre as hipóteses, o item 5 é o de construção mais alargada: "(...) proceder de modo incompatível com a honra dignidade e decôro de suas funções.", visto que tal hipótese pode ser a porta de entrada de qualquer pedido de impedimento.
Uma vez analisada a possível ocorrência de um dos crimes previsto nos arts. 39 ou 39-A da lei de 1.079/50, qualquer cidadão poderá apresentar petição a ser recebida pela Mesa do Senado Federal.
Em tese, há elaboração de parecer, o qual é aprovado por maioria simples (maioria dos presentes) e, sendo caso de acolhimento, inicia-se a fase de defesa do denunciado.
Haverá então novo parecer, o qual também poderá ser aprovado pela maioria simples.
Gravíssimas são as consequências do acolhimento do segundo parecer, visto que suspendem o exercício das funções, autorizam a acusação criminal e reduzem um terço dos vencimentos até a deliberação final (art. 57 lei 1.079/50).
Para que ocorra o impeachment, há necessidade de dois terços dos presentes, sendo então destituído imediatamente do cargo.
2. Síntese das ADPFs 1.259 e 1.260
Em apertada síntese, as ADPFs 1.259 e 1.260 questionam a recepção parcial da lei de 1.079/50 e colocam como alguns de seus problemas principais: i) a exigência de maioria simples em um cenário no qual o Tribunal de Cúpula exerce não raras vezes seu papel contramajoritário; ii) ausência de necessidade de acusação por conta do procurador geral da República; iii) a ocorrência de fricção entre as funções jurisdicional, legislativa e executiva; iv) a discrepância entre o quórum de dois terços da Câmara dos Deputados para a abertura de impeachment em face do presidente da República; v) a não recepção do imediato afastamento antes da decisão final; vi) a redução imediata dos subsídios; e vii) violação das prerrogativas da magistratura.
Oportuno ressaltar, igualmente, que a legislação data de 1950, ao passo que a Constituição de 1946 previa expressamente o quórum de dois terços dos membros do Senado Federal para o julgamento de crimes de responsabilidade de ministros do STF (art. 62, II, §2º, da Constituição de 1946).
As iniciais foram recebidas pelo ministro Gilmar Mendes, cujo voto fez longo proêmio sobre o "constitucionalismo abusivo", especialmente no que toca a tentativa de manietar as Cortes Constitucionais. Passa então ao histórico do instituto e sua apropriação pelo Direito Brasileiro, diferenciando então o impeachment de membro da função executiva daquele referente aos magistrados.
Arrimado nas considerações acima e, após análise dos dispositivos impugnados, entendeu por bem, ad referendum: "(i) suspender, em relação aos membros do Poder Judiciário, a expressão "a todo cidadão" inscrita no art. 41 da Lei 1.079/1950; (ii) conferir, na parte remanescente, interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 41 da Lei 1.079/1950, para estabelecer que somente o Procurador-Geral da República pode formular denúncia em face de membros do Poder Judiciário pela prática de crimes de responsabilidade; (iii) suspender, no que diz respeito aos membros do Poder Judiciário, o termo "simples" constante dos arts. 47 e 54 da Lei 1.079/1950; (iv) dar, na parte restante, interpretação conforme à Constituição Federal aos arts. 47 e 54 da Lei 1.079/1950, para fixar o quórum de 2/3 (dois terços) para aprovação do parecer a que se referem; (v) suspender as alíneas "a" e "c" do art. 57 da Lei 1.079/1950; (vi) suspender a expressão "que voltará ao exercício do cargo, com direito à parte dos vencimentos de que tenha sido privado" presente no art. 70 da Lei 1.079/1950; (vii) excluir qualquer interpretação do art. 39, 4 e 5, da Lei 1.079/1950, que autorize enquadrar o mérito de decisões judiciais como conduta típica para efeito de crime de responsabilidade.".
3. Implicações práticas das regras previstas na lei de 1.079/50 na redação literal
Considerando os elementos acima expostos, nota-se evidente fragilidade no procedimento para impeachment de ministros do STF, porém, mais que isso, a questão se torna, para todos os efeitos, uma espécie de espada de Dâmocles sobre o julgador.
Realmente, a facilidade com a qual se pode, em tese, obter o impedimento de ministro coloca sobre ele a impossibilidade de atuar com desenvoltura seu ofício, posto que se torna então uma questão de "direito de arrependimento" por parte do Senado.
Evidentemente, não foi este o pensamento do legislador e tampouco dos Constituintes de 1946 e 1988, os quais tencionaram claramente a favor do Estado Social e Democrático de Direito, afastando interpretações mais afeitas a aumentos de membros, elaboração de regras amplas para impeachment e muito menos tornar a função jurisdicional refém da política.
Ora, não é magistrado, no sentido mais profundo da palavra, aquele que teme, reverencia ou se mostra subserviente às pressões indevidas, aos "poderes" fáticos e muito menos aquele que pratica permuta de favores políticos.
Nesta senda, o impedimento de um ministro do STF não pode ser levado a cabo tal qual um término de relacionamento, não é uma decisão que pode ser tomada por poucos e muito menos de caráter solitariamente político.
Assim, ao fim e ao cabo, retorna-se à polêmica Kelsen e Schmitt.
De um lado, a fragilidade do procedimento de impeachment torna o Tribunal de Cúpula não apenas refém dos humores das decisões políticas, mas efetivamente uma instância que pode ser substituída periodicamente caso não se "comporte" dentro do esperado.
Frustra-se, então, o aludido papel contramajoritário descrito pelo ministro Barroso, ou seja, da Corte Constitucional como defensora das minorias e local seguro para que os direitos e garantias fundamentais sejam protegidos a despeito do próprio parlamento.
Neste sentido, a decisão do ministro Gilmar Mendes, ainda que ad referendum, protege a verdadeira jurisdição constitucional e, mais que isso, assegura aos ministros a desenvoltura de realmente atuarem como guardiões da lei suprema.
Há um verdadeiro abismo entre a responsabilização por crimes de responsabilidade e uma decisão meramente arbitrária ou voltada à retaliação por conta de decisões que não se adequaram ao esperado pelas funções legislativa ou executiva.
Assim, sob nossa ótica, a manutenção literal da lei de 1.079/50 nos faria retroceder ao guardião político da Constituição, aquele que interpreta e aplica o direito com base em critérios de conveniência e oportunidade.
Considerações finais
Como visto, há fragilidades nas hipóteses de cabimento e no rito de impedimento dos ministros do STF. Tais fragilidades podem colocar em risco não apenas o magistrado, mas o próprio Estado Social e Democrático de Direito.
Com efeito, ao se retirar a independência da função jurisdicional, haverá um decréscimo qualitativo da jurisdição constitucional e a ampliação de influências indevidas dentro da tomada de decisão por parte dos magistrados.
Assim, não se pode ampliar de forma desmensurada a possibilidade de impedimento dos membros do Tribunal de Cúpula, sob pena de transformação de sua natureza técnico-jurídica, ainda que com membros indicados pela função executiva e sabatinados pela legislativa, em um espaço de decisões meramente políticas e deixado à sorte dos governos e/ou parlamentos de turno.
Em resumo, impeachment não é direito de arrependimento.


