É possível regularizar a minha fração ideal? Quando a estremação urbana é uma opção
A análise explora o uso da estremação urbana para regularizar frações ideais em contexto urbano, com base na legislação federal, na prática registral e em experiências estaduais.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:30
A situação é muito comum nas cidades brasileiras: a pessoa comprou "o seu pedaço" de terreno, construiu, paga IPTU, tem contas de água e luz em seu nome, às vezes vive ali há muitos anos, mas quando pede a matrícula no cartório descobre que o imóvel está apenas em fração ideal dentro de uma matrícula maior, muitas vezes com vários coproprietários.
Surge então a dúvida prática: é possível transformar essa fração ideal em uma matrícula individualizada que reflita a realidade do imóvel? Em muitos casos, a resposta passa por um instituto ainda pouco conhecido no meio urbano, mas já bastante trabalhado no meio rural: a estremação.
Este artigo explica, em linguagem acessível, o que é a estremação urbana, como ela se relaciona com o direito de propriedade e com o direito à cidade e em quais situações ela pode ser um caminho para regularizar frações ideais em contextos urbanos.
1. De onde vem a estremação: a experiência rural
A estremação surgiu na prática registral, principalmente, como resposta a um problema típico do meio rural. Grandes glebas eram registradas em condomínio, com vários proprietários detentores de frações ideais de um mesmo imóvel. Na realidade, porém, cada condômino ocupava há anos uma parte determinada, com cerca, produção, benfeitorias e até tributação individualizada.
Para lidar com esse cenário, alguns estados passaram a admitir, por provimentos de Corregedoria, a chamada estremação: por meio de uma escritura pública, o condômino localiza a sua parcela dentro da área maior, apresenta planta, memorial descritivo, comprova ocupação consolidada, obtém anuência de confrontantes e, com isso, consegue abrir uma matrícula própria para a sua porção.
No Paraná, essa disciplina foi construída inicialmente em provimento específico e depois incorporada ao Código de Normas do Foro Extrajudicial. Com isso, a estremação rural deixou de ser um experimento pontual e passou a integrar de forma estável a política registral do estado.
O resultado é claro: a via extrajudicial, quando bem regulada, ajuda a resolver conflitos entre fração ideal no papel e propriedade exercida na prática, com ganho de segurança jurídica e eficiência.
2. O espelho urbano: condomínios pro diviso nas cidades
Nas áreas urbanas, o roteiro é parecido, embora muitas vezes mais complexo do ponto de vista social. Em inúmeros municípios é possível encontrar situações em que:
- uma matrícula antiga abrange um terreno urbano maior, com descrição global;
- várias pessoas aparecem no registro como titulares de frações ideais;
- ao longo dos anos, cada uma passou a ocupar e negociar "o seu pedaço" localizado, com muros, casas, garagens, numeração predial e histórico de pagamento de IPTU; e
- as transmissões foram sendo feitas por recibos, contratos particulares, cessões de direitos e instrumentos que nem sempre ingressaram de forma adequada no registro.
Na prática, trata-se de um condomínio urbano em frações ideais, mas com uso claramente individualizado. Cada família sabe onde é o seu lote "de fato", investiu naquele espaço, criou vínculos de bairro, organizou sua vida em torno daquele imóvel. O registro, entretanto, continua a enxergar apenas uma fração ideal abstrata.
Essa dissociação entre o que o morador vive e o que o registro mostra gera diversas consequências:
- dificuldade para vender ou doar o imóvel com segurança;
- impossibilidade de oferecer o bem em garantia para financiamento;
- insegurança para organizar a sucessão hereditária; e
- obstáculos em licenciamentos, regularizações construtivas e negociações com o poder público.
Em outras palavras, a pessoa exerce a propriedade, cumpre a função social, mas não consegue acessar plenamente as ferramentas que um imóvel formalizado deveria oferecer.
3. Direito de propriedade, Constituição Federal e direito à cidade
A Constituição Federal de 1988 assegura, no art. 5º, inciso XXII, o direito de propriedade como direito fundamental e, no inciso XXIII, estabelece que a propriedade atenderá a sua função social. No campo da política urbana, os arts. 182 e 183 projetam a cidade como objeto de atuação específica do Poder Público, vinculando o uso da propriedade urbana ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e ao bem-estar de seus habitantes.
O Estatuto da Cidade (lei 10.257/01) concretiza essas diretrizes ao tratar do chamado direito à cidade, entendido como o direito coletivo a cidades sustentáveis, com acesso à moradia, à infraestrutura, ao transporte, ao trabalho e à segurança jurídica na ocupação do território.
Nesse contexto, o direito de propriedade não se esgota no título registral abstrato. Ele envolve também:
- o direito de ter a situação jurídica reconhecida no registro de imóveis, de modo coerente com a realidade fática;
- o direito de utilizar o imóvel como base de organização da vida familiar e econômica;
- o direito de transmitir esse patrimônio com segurança para herdeiros ou terceiros; e
- o direito de acessar crédito, investir e empreender a partir do bem.
Do ponto de vista do direito à cidade, a falta de matrícula individualizada em situações consolidadas significa que muitos moradores permanecem em uma espécie de "meio caminho" entre formalidade e informalidade. Estão dentro da cidade, pagam tributos, mas não têm a mesma segurança jurídica que outros proprietários.
A estremação urbana surge como um possível ponto de encontro entre essas duas dimensões constitucionais: a proteção do direito de propriedade e a realização da função social da cidade. Ela busca adequar a publicidade registral à realidade da propriedade exercida, sem perder de vista os limites urbanísticos, ambientais e de parcelamento do solo.
4. O que a lei federal já permite
Importante deixar claro: a discussão sobre estremação urbana não parte do zero. A legislação federal já oferece base para pensar na especialização de frações ideais em unidades localizadas, inclusive em área urbana.
Dois dispositivos são centrais:
O art. 45 da lei 13.465/17, ao tratar da regularização fundiária, admite a especialização, em matrículas individualizadas, de unidades correspondentes a frações ideais em condomínio geral, com participação do Município na indicação das unidades e na consolidação das situações de fato.
O art. 571 do CPC prevê que a demarcação e a divisão podem ser realizadas por escritura pública quando todos os interessados forem maiores, capazes e concordes, dispensando a via judicial em contextos de consenso.
Além disso, a lei 6.766/1979 define as regras para o parcelamento do solo urbano e precisa ser respeitada em qualquer regulamentação infralegal. Isso não impede, porém, que se trate de maneira diferenciada um condomínio já existente, com ocupação consolidada, em comparação com uma gleba ainda não parcelada que vá ser transformada em loteamento ou desmembramento.
Em síntese, a legislação federal não veda a estremação urbana. Ela permite a especialização de frações ideais e admite a via extrajudicial para demarcações e divisões amigáveis. O que falta, na maioria dos casos, é a regulamentação detalhada no nível dos Códigos de Normas das Corregedorias.
5. O que outros estados já fizeram: Minas Gerais e Santa Catarina
Alguns estados avançaram mais na regulamentação do tema e podem servir de referência importante.
Em Minas Gerais, o provimento conjunto 93/20 codificou as normas relativas aos serviços notariais e de registro e incluiu regras específicas sobre estremação em condomínios pro diviso. A regulamentação mineira abrange tanto imóveis rurais quanto urbanos e condiciona o procedimento à ocupação consolidada, à anuência dos confrontantes, à apresentação de planta e memorial descritivo e ao respeito à metragem mínima e aos parâmetros urbanísticos.
Em Santa Catarina, o provimento 63/20 acrescentou ao Código de Normas o Capítulo IX-A, dedicado à estremação de imóveis em condomínio de fato, com dispositivos que permitem:
- descrever na escritura apenas a parcela localizada que será estremada;
- admitir, em hipóteses bem definidas, a dispensa de retificação prévia da área total da gleba e de apuração exata da área remanescente; e
- aplicar o procedimento tanto a imóveis rurais quanto a imóveis urbanos em condomínio de fato.
Esses modelos mostram que é possível tratar a estremação como instrumento legítimo de proteção ao direito de propriedade, alinhado à legislação federal, sem abrir espaço para loteamentos clandestinos ou para burla às exigências urbanísticas.
6. O problema da retificação da gleba inteira
Um dos pontos mais sensíveis na prática é a exigência de retificar toda a gleba como condição para regularizar uma única fração ideal. Em determinados contextos rurais, com poucos condôminos, essa exigência pode ser razoável. No meio urbano, porém, ela tende a se tornar um obstáculo quase intransponível.
Não é raro que uma matrícula urbana em condomínio tenha dezenas de condôminos, com sucessões incompletas, coproprietários inlocalizáveis e histórico de negociações informais ao longo de décadas. O custo jurídico e técnico de uma retificação global, em um único movimento, é muitas vezes incompatível com a realidade econômica de quem busca apenas regularizar a própria casa.
Se a regularização da parcela ocupada depender necessariamente de uma retificação de toda a matrícula, a consequência prática é a perpetuação da informalidade. O proprietário continua pagando tributos, continua ocupando o imóvel de forma consolidada, mas não consegue obter uma matrícula que corresponda à sua realidade.
A experiência de Santa Catarina indica uma alternativa: regularizar o que é possível, isto é, permitir que a parcela já consolidada seja descrita com exatidão em planta e memorial, com anuência de confrontantes e manifestação do município, e que, com base nisso, seja aberta matrícula própria. A matrícula de origem permanece, por ora, com a descrição global, que pode ser corrigida gradualmente em atos posteriores.
Do ponto de vista do direito de propriedade e do direito à cidade, essa solução privilegia o titular que cumpre a função social e quer regularizar, sem exigir que a sua intenção fique condicionada à solução perfeita de toda a cadeia condominial.
7. Onde entra a estremação urbana em relação à REURB e ao parcelamento do solo
É fundamental situar a estremação urbana entre os demais instrumentos de regularização, para evitar confusões e falsas expectativas.
A REURB, regulada pela lei 13.465/17, foi pensada para núcleos urbanos informais, ocupações irregulares em larga escala, favelas, loteamentos clandestinos e situações que demandam uma intervenção urbanística e social mais ampla. Envolve projeto urbanístico, diagnóstico social, definição de ZEIS e forte atuação do Município.
A lei 6.766/1979, por sua vez, trata do parcelamento do solo urbano e estabelece as exigências para criação de novos lotes, com aprovação prévia e registro de loteamento ou desmembramento.
A estremação urbana se movimenta em um campo diferente. Seu foco está em contextos em que:
- já existe um condomínio formalmente inscrito em frações ideais;
- a ocupação localizada das parcelas é antiga e consolidada; e
- não se trata de abrir um loteamento novo, mas de reconhecer, registralmente, a unidade que o condômino já exerce de fato.
Dentro desse recorte, a estremação urbana pode ser desenhada como instrumento complementar, nunca como substituto da REURB ou do parcelamento formal. Ela atende a um tipo específico de problema registral e, por isso, precisa ser cercada de salvaguardas que impeçam seu uso como "atalho" para loteamentos clandestinos recentes ou para parcelamentos informais.
8. E, afinal, é possível regularizar a minha fração ideal?
A resposta honesta é: em muitos casos, sim, existe um caminho jurídico, mas ele depende de análise técnica cuidadosa. A estremação urbana não é uma solução automática nem serve para qualquer situação em fração ideal.
Em linhas gerais, quem tem imóvel urbano em fração ideal deveria, com apoio técnico, verificar:
- se há efetiva ocupação localizada e consolidada da parcela;
- se essa ocupação respeita parâmetros básicos de segurança, salubridade e uso do solo;
- se é viável elaborar planta e memorial descritivo com profissional habilitado;
- se há possibilidade de obter anuência de confrontantes e manifestação do Município; e
- se a matrícula de origem permite identificar com alguma segurança o condomínio em que se insere a parcela.
Em estados que já regulamentaram a estremação urbana, como Santa Catarina, há procedimentos específicos justamente para essa situação. Em outros, como Minas Gerais, a disciplina alcança tanto imóveis rurais quanto urbanos. No Paraná e em outros estados, o debate sobre aperfeiçoamento normativo caminha na direção de reconhecer, com mais clareza, a possibilidade de utilização da estremação em contexto urbano, com os devidos filtros técnicos.
Para o proprietário que se encontra nesse cenário, o primeiro passo é buscar orientação especializada. Em vez de permanecer indefinidamente com o imóvel apenas em fração ideal, vale investigar se, no caso concreto, é possível utilizar a lógica da estremação para compatibilizar o registro com a realidade.
9. Considerações finais
A questão da fração ideal em área urbana não é apenas um detalhe técnico de cartório. Ela toca o núcleo do direito de propriedade e do direito à cidade em sua dimensão mais concreta. Quem vive, constrói, investe, paga tributos e organiza a vida em torno de um imóvel precisa de instrumentos jurídicos que reconheçam e protejam essa realidade.
A estremação urbana, quando bem desenhada e corretamente aplicada, pode ser um desses instrumentos. Ela permite que a propriedade exercida de fato se traduza em propriedade registrada, reforça a segurança jurídica das negociações, amplia o acesso a crédito e facilita o planejamento sucessório.
Ao mesmo tempo, a construção de caminhos normativos para a estremação urbana exige responsabilidade. É preciso manter a coerência com a legislação federal, respeitar o papel dos municípios na política urbana, preservar os controles de parcelamento do solo e garantir que o instituto seja utilizado para regularizar o que está consolidado, não para legitimar novas irregularidades.
Entre o imóvel que existe apenas como fração ideal no papel e a casa que sustenta a vida de uma família há um espaço importante de atuação jurídica. É justamente nesse espaço que a estremação urbana pode se afirmar como um próximo passo possível para tornar o direito de propriedade mais efetivo e o direito à cidade mais real.


