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Quando morar vira hotelar? O direito de propriedade em jogo

Locar por um dia é residir, não hotelar. Artigo defende o direito do proprietário e contesta a visão do STJ que transforma o prazo da locação em critério para sua proibição.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:30

Introdução: Redefinindo os contornos do debate

A crescente utilização de plataformas digitais para locação de imóveis por curtos períodos inaugurou um intenso debate jurídico e social no Brasil. De um lado, proprietários que veem na prática uma forma de exercer seu legítimo direito de propriedade, otimizando o uso de seus bens e gerando renda. De outro, condomínios e moradores que expressam preocupações com a segurança, o sossego e a descaracterização do ambiente residencial. No centro dessa controvérsia, o STJ tem sido chamado a estabelecer os limites dessa nova realidade econômica, mas suas decisões, ao focarem excessivamente no lapso temporal da locação, geram insegurança e, data venia, parecem restringir indevidamente um direito fundamental.

Este artigo se propõe a analisar criticamente a jurisprudência do STJ, defendendo uma tese central clara: o critério para diferenciar o uso residencial de uma atividade comercial não deve ser o tempo de permanência, mas a natureza da ocupação. Uso residencial é uso residencial, não importa o lapso temporal. Residir por um dia, uma semana ou uma década são, em essência, a mesma coisa. A verdadeira descaracterização ocorre quando há o fracionamento de quartos ou a oferta de serviços típicos de hotelaria, transformando a unidade autônoma em um empreendimento comercial. É sob essa ótica que o debate deve ser aprimorado, focando na responsabilização por condutas inadequadas e não na proibição genérica que fere o direito de propriedade.

O direito de propriedade e a locação como exercício legítimo

O direito de propriedade, assegurado pela Constituição Federal, confere ao titular as faculdades de usar, gozar e dispor da coisa. A locação, em qualquer de suas modalidades, é a mais pura expressão do direito de fruir do bem, ou seja, de colher seus frutos civis - os aluguéis. Limitar a capacidade do proprietário de alugar seu imóvel com base exclusivamente no prazo da locação representa uma intervenção desproporcional em sua esfera privada.

A lei do inquilinato (lei 8.245/1991), em seu art. 48, já prevê a locação por temporada, com prazo máximo de 90 dias, reconhecendo a legitimidade de ocupações residenciais transitórias. A lógica por trás da norma é a mesma, independentemente de o prazo ser de 90, 30 ou 2 dias: atender a uma necessidade temporária de moradia. A convenção de condomínio, embora tenha força normativa entre os condôminos, não pode se sobrepor à lei federal para criar restrições não previstas, especialmente quando estas atingem o núcleo do direito de propriedade. Seu papel é regular a convivência e as áreas comuns, não ditar como o proprietário deve usar sua área privativa, desde que respeitada a destinação residencial.

A jurisprudência do STJ: Uma análise crítica dos precedentes iniciais

Os precedentes do STJ, embora busquem um equilíbrio, acabaram por criar uma distinção artificial e problemática. Ao analisar os casos, percebe-se que a Corte validou proibições baseadas no critério temporal, mas os fatos que originaram as decisões revelam que o problema era outro.

No emblemático REsp 1.819.075/RS, a 4ª turma validou a proibição imposta por um condomínio. Contudo, o caso concreto não tratava de uma simples locação de curto prazo. Os proprietários haviam transformado os apartamentos para criar mais quartos, alugando-os de forma fracionada para diferentes pessoas simultaneamente e oferecendo serviços como lavanderia. Isso não é locação residencial; é, de fato, a exploração de um hostel. O erro da tese firmada foi generalizar a proibição para qualquer locação de "curtíssimo prazo", quando a análise deveria se ater à descaracterização do uso pela oferta de serviços e pelo fracionamento do imóvel, que são características de uma atividade comercial.

De forma semelhante, no REsp 1.884.483/PR, a 3ª turma confirmou a legalidade de uma cláusula que proibia locações por prazo inferior a 90 dias. A decisão reforçou o poder da convenção de limitar o direito do proprietário em nome da tranquilidade e segurança coletivas. Novamente, a ênfase no prazo obscurece a questão central. A preocupação com a alta rotatividade é legítima, mas a solução não é proibir a locação, e sim criar mecanismos para gerenciar seus efeitos.

Vale destacar que nesse segundo julgamento surgiram votos divergentes importantes. O ministro Marco Aurélio Bellizze discordou da interpretação de que a simples hospedagem atípica descaracteriza a finalidade residencial. Segundo seu voto, alugar por temporada não descaracteriza por si só o uso residencial, e se a convenção quisesse proibir locações de temporada, deveria fazê-lo de forma expressa. Esse posicionamento minoritário, mas relevante, apontava para a necessidade de maior precisão no debate jurídico.

Desenvolvimentos recentes e divergências: O caminho para a uniformização (2024-2025)

A controvérsia não se encerrou com os precedentes de 2021. Ao contrário, as decisões geraram novas divergências nas instâncias inferiores e motivaram novos questionamentos ao STJ. Em 2024, a 3ª turma afetou o REsp 2.121.055/MG, relatado pela ministra Nancy Andrighi, à 2ª Seção, visando consolidar o entendimento e dar efeito repetitivo ao tema. A ministra relatora assinalou que muitas instâncias locais não estavam aplicando corretamente os precedentes do STJ, exigindo um esclarecimento urgente.

A questão central a ser dirimida pela 2ª Seção é fundamental para o debate: a convenção precisa prever expressamente a proibição da locação de curto prazo (sendo permitido o aluguel curto se ela for omissa), ou ao contrário, a vedação já decorre implicitamente da cláusula de uso residencial (sendo necessária previsão expressa para autorizar a locação curta)? Em outras palavras, o debate se centra em qual princípio deve prevalecer: "tudo que não está proibido, está permitido" ou seu inverso, no contexto das locações de curtíssimo prazo em condomínios.

Essa divergência de interpretação é crucial. Se prevalecer o primeiro princípio - favorável ao proprietário - a locação de curto prazo seria permitida enquanto não houvesse vedação expressa na convenção. Se prevalecer o segundo - favorável ao condomínio - a simples menção a "uso residencial" seria suficiente para impedir a prática. A resposta a essa pergunta redefinirá o equilíbrio entre liberdade de propriedade e interesse coletivo.

No mesmo período, o REsp 1.954.824/MG foi apreciado pela 4ª turma em 2024, revelando a divisão de entendimentos entre os ministros. O relator, ministro João Otávio de Noronha, votou que somente com alteração convencional (por maioria de 2/3) poder-se-ia proibir a locação por temporada, presumindo permitida se a convenção for silente. Sua posição reforça a premissa de que o direito de propriedade deve prevalecer na ausência de restrição expressa.

Por outro lado, o ministro Marco Buzzi divergiu, entendendo que mesmo sem cláusula específica, a proibição se justificaria diante de provas de que a atividade perturba concretamente o condomínio. Esse voto é particularmente relevante para a discussão proposta neste artigo, pois introduz um elemento crucial: a responsabilização por condutas inadequadas. Buzzi não defende uma proibição genérica e automática, mas uma análise concreta dos efeitos da atividade. Se há perturbação comprovada - barulho excessivo, fluxo descontrolado de estranhos, falta de segurança - o condomínio pode agir. Caso contrário, a locação deve ser permitida. Essa abordagem se aproxima muito mais da tese defendida neste artigo: não é o tempo de permanência que importa, mas a conduta do proprietário e de seus inquilinos.

A divergência entre Noronha e Buzzi ilustra o ponto central do debate. Enquanto Noronha privilegia a segurança jurídica do proprietário (permitido se não proibido), Buzzi privilegia a proteção concreta do condomínio (proibido se prejudicial). Ambos os enfoques têm mérito, mas nenhum deles adota a solução mais equilibrada: permitir a locação, mas responsabilizar o proprietário por condutas inadequadas de seus inquilinos.

A solução correta: Distinção pela natureza do serviço e responsabilização

A linha divisória entre o uso residencial e a atividade comercial não está no calendário, mas na oferta de serviços. Se o proprietário aluga sua unidade inteira, para uma única pessoa ou núcleo familiar, sem oferecer serviços de hotelaria (como recepção, café da manhã, limpeza diária inclusa na diária, etc.), ele está realizando uma locação residencial, amparada pela lei do inquilinato, seja por um dia ou por um ano. A relação é puramente locatícia.

Por outro lado, se o proprietário fraciona o imóvel, alugando quartos separadamente para estranhos, ou se agrega à estadia um rol de serviços que mimetizam a experiência de um hotel, ele cruza a fronteira e passa a exercer uma atividade comercial de hospedagem. É essa atividade, e não a locação de curto prazo em si, que pode ser considerada incompatível com a destinação exclusivamente residencial de um condomínio.

Ademais, a preocupação com o comportamento dos hóspedes é válida, mas a solução é desproporcional. Em vez de proibir a locação, a convenção deveria estabelecer regras claras e sancionar o proprietário por condutas inadequadas de seus inquilinos ou hóspedes, aceitos muitas vezes sem critério. O proprietário deve ser o garantidor da boa convivência, sob pena de multas e outras sanções previstas no CC e na própria convenção. A responsabilidade é a chave, não a proibição.

Conclusão: Um chamado ao aprimoramento do debate

A atual orientação do STJ, ao permitir que convenções condominiais proíbam locações com base unicamente em seu prazo, representa uma restrição excessiva ao direito de propriedade. A solução para os conflitos gerados pela economia compartilhada não está em proibições genéricas, mas em uma regulamentação inteligente e focada na real natureza do problema.

Os desenvolvimentos recentes, especialmente o voto do ministro Marco Buzzi no REsp 1.954.824/MG, demonstram que há espaço para uma interpretação mais nuançada. A exigência de comprovação concreta de perturbação, em vez de presunção automática baseada no prazo, é um passo na direção correta. Contudo, a solução ideal vai além: permitir a locação, mas responsabilizar o proprietário por condutas inadequadas de seus inquilinos.

É fundamental que o debate seja aprimorado. Os advogados devem continuar a apresentar distinguishing (distinções) em seus casos, demonstrando que uma locação de curta duração, sem serviços hoteleiros, não se confunde com a exploração comercial vedada nos precedentes da Corte. O Poder Judiciário, por sua vez, tem a oportunidade de refinar sua jurisprudência, deslocando o foco do critério temporal para o critério da oferta de serviços, que efetivamente define a natureza da atividade.

Ao condomínio, cabe o papel de mediar e regular a convivência, punindo excessos e garantindo que o proprietário se responsabilize por quem coloca dentro de sua unidade, e não o de proibir uma modalidade de locação que é, em sua essência, um exercício legítimo do direito de usar, gozar e fruir de sua propriedade.

Rafael Paiva Nunes

VIP Rafael Paiva Nunes

Sócio da Paiva Nunes Direito Imobiliário, advogado no Brasil e em Portugal, atua em Direito Imobiliário, é dirigente no IBRADIM e ANACON. Especialista e Obras Retomadas e Multipropriedade/time-share.

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