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Aumento do grau de risco desconsiderando a realidade

Este artigo examina as necessidades de atualização do SESMT - Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho à luz das modernas tecnologias e métodos de produção.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:18

A proteção da saúde dos trabalhadores

Proteger e melhorar a saúde dos trabalhadores são tarefas fundamentais. A saúde não deve ser objeto de negociação. Trata-se de um bem maior que precisa ser preservada com continuidade e empenho. A Constituição de 1988 definiu a saúde como direito fundamental e criou o SUS, demonstrando a importância desse tema.1

No campo do trabalho, o Brasil possui NRs de prevenção de acidentes e doenças profissionais definidas com base técnica discutida e aprovada pela CTPP - Comissão Tripartite Paritária Permanente2 que tem por responsabilidade discutir, revisar e elaborar propostas das referidas Normas. Uma delas é a NR-4 que se refere ao SESMT - Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho.3

O SESMT reúne um conjunto de profissionais especializados para promover a saúde e proteger a integridade física e mental dos empregados dentro das empresas. A sua base legal está ancorada no art. 162 da CLT e na referida NR-4. E a sua composição, assim como o número de profissionais, dependem do grau de risco e do número de empregados em cada empresa. Empresas de baixo risco e poucos empregados não são obrigadas a manter um SESMT próprio, podendo usar serviços compartilhados com outras empresas ou utilizar serviços externos.4

Em geral, fazem parte do SESMT médicos, engenheiros, enfermeiros, auxiliares técnicos de enfermagem do trabalho e os técnicos de segurança - todos especializados em trabalho5. Uma empresa que adiciona atividades de alto risco na sua operação, passa a ter maior exigência do número de profissionais do SESMT para proteger os seus empregados. Trata-se de uma decisão que requer fundamentação empírica rigorosa.

Consulta pública sobre a NR-4

Em 2023, o MTE - Ministério do Trabalho e Emprego decidiu revisar o GR - Grau de Risco da NR-4 que varia de 1 a 4. Com base nisso, será dimensionado um novo SESMT e também as CIPAs - Comissões Internas de Prevenção de Acidentes6. Para tanto, o Ministério do Trabalho e Emprego abriu uma consulta pública que se encerrará em março de 2026 om o propósito de ouvir as partes interessadas e afetadas pela NR-4 com um grau de risco mais alto.

A revisão do grau de risco constante do Anexo I da NR-4 é uma atividade complexa do ponto de vista técnico. Por isso, requer um bom conhecimento das atividades específicas das empresas. Consequentemente, uma consulta pública nesse campo exige um forte respaldo técnico e científico de quem opina.

A ampliação do SESMT, portanto, merece estudos detalhados, incluindo-se uma avaliação da disponibilidade de pessoal para eventuais novas tarefas. É isso que vai indicar a sua viabilidade técnica e econômica.  

Até então, entretanto, os critérios utilizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego para elevar o grau de risco e abrir a consulta pública são, no mínimo, questionáveis. O seu impacto está sendo subestimado. A mera elevação do grau de risco afetará cerca de 1/3 das empresas cobertas pela CNAE - Classificação Nacional de Atividades Econômicas. Cerca de 60% das atividades econômicas do Brasil serão classificadas nos dois graus de risco mais elevados. Isso envolve uma grande complexidade técnica e expressivo impacto econômico.

Heterogeneidade do universo de empresas

A heterogeneidade do universo dessas empresas é imensa. É difícil definir um único grau de risco para uma realidade tão complexa. Isso contraria a tendência moderna dos serviços de prevenção de acidentes e doenças profissionais que recomenda para levar em conta as características especificas das empresas e dos estabelecimentos e não apenas dos grandes agregados de empresas. Ao ignorar esses detalhes, corre-se o risco de desprezar a realidade. Consideremos duas empresas pertencentes ao mesmo setor com igual grau de risco. Em uma delas, 80% dos empregados atuam em áreas administrativas e apenas 20% na produção industrial. Em outra, a distribuição é equilibrada, com 50% dos empregados em cada área. É evidente ser incorreto considerar todos os empregados das duas empresas como expostos ao mesmo grau de risco. Essa estratégia não se sustenta.

Contradições internas

Além disso, a metodologia adotada pelo Ministério do Trabalho e Emprego exibe contradições internas preocupantes. Por exemplo, são citados os acidentes de trajeto, que apesar de promessa em contrário, acabam entrando na determinação final do grau de risco das empresas. Esse tipo de desencontro mais desorienta do que orienta os profissionais as saúde e segurança do trabalho.

Ademais, a proposta do Ministério do Trabalho e Emprego se baseia em dados muito antigos (e superados) do CNAE. Empresas incluídas na mesma classe do CNAE apresentam atualmente situações de risco diferentes em função da incorporação de novas tecnologias e novas formas de produzir bens e serviços. Por exemplo, na agricultura, a subclasse 0139-3/99 reúne 55 atividades econômicas distintas, que vão do cultivo de seringueiras para a produção de látex à produção de mudas de erva-mate. Cada uma dessas atividades envolve graus de risco diferentes e faz uso de tecnologias específicas da agricultura moderna. Apesar disso, todas foram enquadradas no mesmo grau de risco 3.

Na indústria, a subclasse 2599-3/99 ilustra bem a inadequação do CNAE. Essa subclasse agrupa 55 atividades econômicas relacionadas à produção de artefatos de metal como, por exemplo, a produção de cofres, hélices para embarcações e selos de segurança metálicos. Essas atividades têm perfis de risco bastante diferentes e jamais poderiam ser sujeitas, no conjunto, a uma elevação de risco 3 para risco 4.

No setor de serviços, os bancos múltiplos foram enquadrados na subclasse 6422-1/00. Nessa mesma categoria estão os bancos digitais, bancos com a maior parte de empregados em agencias físicas e outros com a maioria trabalhando em escritórios administrativos. Apesar dessa enorme diversidade, foram todos classificados com grau de risco 4. Enquanto isso, agencias e escritórios de cooperativas de crédito e fintechs que realizam as mesmas atividades permaneceram com o grau de risco 1.     

Em suma, o uso do antigo CNAE traz muitas complicações. A versão 1.0 veio a público em 1990; a 2.0, modificada, foi lançada em 2007. Nessa transição todos os códigos foram mudados, o que dificulta ou torna impossível comparações e seguimento das mesmas atividades pelo próprio CNAE.

A partir de 2007, foram realizadas várias revisões periódicas nas quais algumas subclasses foram excluídas e outras incorporadas. Há atividades que deixaram de existir e outras que foram adicionadas nos CNAEs subsequentes. Em outros casos, as subclasses foram reagrupadas de modo diferente.

Por tudo isso, o uso do antigo CNAE é bastante problemático para se elevar o grau de risco das empresas e exigir uma ampliação do SESMT. Empresas com baixo risco de acidentes e doenças profissionais correrão o risco de serem tratadas como se fossem de alta acidentalidade e morbidade. Corre-se o risco, portanto, de aumentar o SESMT de certas atividades que deveriam ficar como estão, ou até baixar, e outras que deveriam ter um SESMT realmente aumentado.

O envelhecimento dos critérios do SESMT

O dimensionamento do SESMT foi realizado pela primeira vez em 1970. A decisão de contratar os atuais profissionais de saúde e segurança (médicos, engenheiros, enfermeiros, etc. - todos especializados em trabalho) foi tomada em 1977.  Naquela concepção, a eficiência do SESMT dependia basicamente desses recursos humanos. Atualmente, a saúde e segurança no trabalho depende muito de tecnologias avançadas e automatizadas e de novos EPIs e EPCs - equipamentos de proteção individual e coletiva.

Para fazer a prevenção nos novos ambientes de trabalho, surgiu a necessidade de outros profissionais como, por exemplo, ergonomistas, psicólogos, gestores de risco e especialistas em saúde e bem-estar corporativos7. Não se trata, portanto, de simplesmente aumentar o número de profissionais do SESMT e sim de recompor o quadro de especialidades dos mesmos. Em certos casos, e em função das mudanças nos processos produtivos, seria recomendável até eliminar certos profissionais do SESMT. Por exemplo, há empresas no campo da tecnologia da informação ou empresas dedicadas exclusivamente à administração que operam predominante ou exclusivamente por meio do teletrabalho - não há empregados nos ambientes físicos dessas empresas. Não faz sentido, portanto, manter auxiliares de enfermagem, técnicos e engenheiros de segurança do trabalho lotados em prédios praticamente vazios.

Nas empresas em que o risco predominante é ergonômico ou psicossocial, a configuração do SESMT terá de ser diferente das empresas em que prevalecem riscos de acidentes físicos ou de exposição a agentes químicos. Ou seja, cada ambiente requer profissionais específicos para cuidar de saúde e segurança do trabalho. A equipe convencional pode não ser adequada para ambientes diferentes.

Portanto, a fórmula clássica de médicos, engenheiros, enfermeiros e outros como acima indicados, tornou-se obsoleta como nos casos indicados. Por isso, é imprescindível saber quais os tipos de profissionais que mais agregam conhecimento para a redução de acidentes e doenças profissionais dos trabalhadores em situações reais e específicas. Isso a consulta pública não permitirá determinar.

Conclusão

Por mais bem intencionado que o Ministério do Trabalho e Emprego esteja para promover a reorganização das equipes profissionais que respondem pelo SESMT e pelas CIPAs, a mera discussão de um novo quantitativo para riscos arbitrariamente elevados não se sustenta. O assunto requer uma análise aprofundada dos novos sistemas produtivos e das mudanças profissionais que hoje marcam a situação real dos riscos acidentários das empresas, à luz de classificações atualizadas e de tecnologias contemporâneas.

A mera discussão em consulta pública de algo que não se conhece redundará em perda de tempo e de recursos das empresas e do próprio Erário. O assunto requer análises aprofundadas e detalhadas para, com segurança, chegar-se ao objetivo comum que seja útil para os empregados, empresas e governo que é o de aumentar as proteções para garantir boa saúde e segurança adequada dos brasileiros. A decisão de elevar o risco sem os devidos cuidados parece ter sido precipitada e inadequada. O próprio Relatório sobre os Impactos da Regulamentação das Medidas de Saúde e Segurança do Trabalho, publicado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (AIR da NR-4)8, levou em conta as mudanças tecnológicas e nos modos de produção como base para as decisões sobre risco, destacando a importância das campanhas educativas de saúde e segurança do trabalho e divulgação de boas práticas nesse campo antes de modificações sobre riscos.9

Recomendação

Em face do exposto e com vistas a garantir a melhor proteção possível aos empregados das empresas, é recomendável suspender a alteração do grau de risco aqui comentada. Em vista do exposto, recomenda-se reorientar o debate em duas frentes: (1) sugere-se ao Ministério do Trabalho e Emprego suspender por ora a consulta pública e retomar a análise levando em consideração o resultado da AIR da NR-4 acima indicada; e (2) ampliar o envolvimento da sociedade nesse debate, levando-o para o Congresso Nacional que tem ampla representação e capacidade de articulação de audiências públicas amplas com a participação de especialistas nacionais e internacionais, órgãos de classe, acadêmicos e representantes dos setores e ramos empresariais.

___________

1 Lígia Fernanda K. Mangini, Bases da higiene e segurança do trabalho proteção, prevenção e saúde ocupacional, Curitiba: Editora Intersaberes, 2025; "A Importância da Segurança do Trabalho na Prevenção de Acidentes e Doenças Ocupacionais", Rio de Janeiro: Site JR Master, 2023; Segurança do Trabalho: o que é, importância, leis e funções: Mogi das Cruzes: Meta, 2025. 

2 A CTPP foi instituída pela Portaria SSST nº 2, de 10 de abril de 1996 do então Ministério do Trabalho. Ela é a instância responsável pela discussão das Normas Regulamentadoras de Saúde e Segurança no Trabalho.

3 A regulamentação do SESMT atende dispositivos nacionais e internacionais como é o caso da Convenção nº 161 da OIT, aprovada em 1989 e promulgada em 1991. O Anexo I da NR-4 relaciona as subclasses da CNAE (Versão 2.0), desenvolvida pelo IBGE, a um grau de risco específico. As medidas de segurança e saúde ocupacional devem ser proporcionais aos riscos inerentes a cada setor da economia.

4 O SESMT só é obrigatório para empresas com grau de risco 4 e com 50 trabalhadores ou mais; com grau de risco 3 e mais de 100 trabalhadores; grau de risco 2 e 1 com mais de 500 trabalhadores. O SESMT alcança apenas os trabalhadores regidos pela CLT.

5 Esses profissionais têm por funções principais: (1) promover atividades de conscientização, educação e orientação dos trabalhadores com vistas a prevenir acidentes do trabalho e doenças profissionais; (2) esclarecer e conscientizar os empregadores sobre como prevenir esses acidentes e doenças.

6 A elevação do grau de risco influencia inúmeras obrigações das empresas tais como o Programa de Gerenciamento de Riscos (NR 1), o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (NR 7), a Análise Ergonômica do Trabalho (NR 17) e a carga horária de treinamento da CIPA (NR 5).

7 Para uma visão geral das novas necessidades em Saúde e Segurança do Trabalho, ver, "SST em 2026: as 7 tendências que vão revolucionar as atualizações das NRs", Blumenau: Escudo Treinamentos, 2025.

8 Relatório "Análise de Impacto Regulatório da NR-4", Brasília: Ministério do Trabalho e Previdência, 2022.

9 Ver também as recomendações da OIT, Revolucionar a segurança e saúde no trabalho: O papel da IA e da digitalização, Geneve: International Labour Organization, 2025.

José Pastore

VIP José Pastore

Professor de relações do trabalho da USP e membro do CAESP - Conselho Arbitral do Estado de São Paulo.

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