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A legitima entre tradição e constitucionalismo

A autonomia privada ganhou espaço nas relações familiares e sucessórias, abrindo alas à intervenção mínima do Estado e não mais absoluta, como outrora.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:20

I. Introdução

A interferência estatal no âmago das relações familiares tem sido objeto de amplos e corriqueiros debates no cenário jurídico contemporâneo. As modificações sociais anunciaram hodiernas exigências, de modo a pautarem a felicidade dos seus membros como fator preponderante ao pleno exercício do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. À guisa dessa evolução, o art. 226, caput, da Constituição Federal, dispõe que a família é a base da sociedade, traduzindo-se no rompimento da noção de pertencimento absoluto do Estado.

É sob esse aspecto que a incidência de normas cogentes ao cenário íntimo dos indivíduos se torna elemento cerne à revisitação do instituto da legítima no Direito Sucessório, tomando-se como base a permissão ao exercício da autonomia privada pelos seus integrantes. Esse contexto tensiona os limites tradicionais, de modo que o desenvolvimento contemporâneo dos contratos, a ampliação dos espaços de autorregulação privada e a escalonada funcionalização do Direito das Sucessões têm recolocado em debate a rigidez desse modelo. 

II. Autonomia privada e legítima: Limites à liberdade de disposição

A liberdade possui papel insólito na vida humana (AMARAL, 2006, p.32) e a vontade se reveste de importância inquestionável por ser um dos elementos principais à configuração de um ato jurídico. Não se olvida que a autonomia, antes da vontade, é uma das revoluções marcantes do direito brasileiro contemporâneo no âmbito das relações privadas e está no bojo da proteção constitucional. O Estado Liberal, responsável pelo advento e implementação desta normativa, reconheceu a liberdade patrimonial do bem (STECK, 2008, p. 95) e passou a resguardar a vontade do sujeito como fonte de direitos obrigacionais (MEIRELES, 2009, p. 66).

Caracterizada como a concretização do direito de liberdade no âmbito privado e que tem como pressuposto a liberdade individual (AMARAL, 2006, p. 349), a autonomia privada é o elo propulsor à reflexão do Direito Sucessório da forma que está posto. A par da liberdade conferida aos membros do núcleo familiar, pontua-se que não há irresignação nesse estudo no estabelecimento de certos e determinados limites; o que se intenta refletir é se a reserva de 50% (cinquenta por cento) aos herdeiros necessários - a qual, elucida-se, trata-se da legítima - fere, em contraponto, outro direito constitucional, tal qual a autonomia privada. Quiçá pode ser considerada como um excesso de proteção e, tendo em vista que o atual modelo de Estado é pautado pela promoção de tutela do indivíduo, deve permitir que a vontade daqueles que o compõe sejam aperfeiçoadas: não deve o modelo ser destruído, mas, sim, conduzido à realização da sua essência (BOBBIO, 19987, p. 127-128). 

Esclarece-se que a legítima, no Brasil, foi adotada no período das Ordenações Filipinas e posteriormente o decreto 1.839, de 31 de dezembro de 1907, conferiu a possibilidade de disposição da metade dos bens na existência de ascendentes ou descendentes. Diante dessa questão pulsante de reanálise da funcionalidade da legítima, urge explicar a razão pela qual esse instituto não está isento de críticas. O CC de 1916 foi elaborado com o fito de atender às exigências estatais, cuja proteção já constava na sua codificação por força do art. 1.721, in verbis: "O testador que tiver descendente ou ascendente sucessível, não poderá dispor ao descendente e, em sua falta, ao ascendente, dos quais constitui a legítima, segundo o disposto nesse Código".

Em verdade, durante a tramitação do projeto do CC de 1916 a regra era a plena liberdade de testar, o que foi rejeitado pela Câmara dos Deputados (BEVILÁQUA, 1983, p. 751), e sob esse prisma é que Pontes de Miranda aduz que a legítima foi introduzida de maneira rigorosa (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 259). 

Inobstante a isso, a manutenção da quota de 50% (cinquenta por cento) aos herdeiros necessários até hoje é defendida e amparada nos princípios da proteção e da solidariedade familiar, de modo a limitar o livre exercício da autonomia privada pelo titular do patrimônio em vida. É, em outras palavras, estabelecer critérios gerais aos anseios íntimos, cujas escolhas de destinação patrimonial, não raras vezes, têm origem em laços de afeto e histórias construídas no decorrer da vida, mas que encontram barreiras nas imposições legais. O afeto é a bússola do que, de fato, entende-se por família. 

Não se olvida que a "garantia de patrimônio" - que pode ser eivada de homéricas dívidas e não resultar em ganhos - retarda a iniciativa individual de desenvolvimento econômico. Filhos que encerram o contato com os pais após a vida adulta, possuem a reserva hereditária sob a justificativa da solidariedade familiar. Sem critérios claros e coesos, herdeiros que não têm condições financeiras sólidas e satisfatórias, recebem a mesma proporção da herança que aqueles que, em contraponto, usufruem uma vida nababesca, tendo como embasamento, novamente, a solidariedade familiar. Logo, enquanto operadores do direito, nos cabe refletir se a solidariedade revela, de fato, a solidariedade de seus membros. É nesse caminho que a construção de um Direito Privado contemporâneo, pelo viés da doutrina crítica do Direito Civil, reveste-se da necessária porosidade "que faz o Direito permeável pela força construtiva dos fatos" (FACHIN, 2008, p. 16). A experiência nacional, ao longo das três últimas décadas, reflete os sinais da mudança de paradigmas operada. É certo que os desafios permanecem e se incrementam, impondo ao jurista uma visão atenta e responsável, na medida em que as necessidades da sociedade complexa reclamam a constante adequação da ordem jurídica aos fatos da vida.

Com efeito, ainda que várias normas de Direito de Família sejam de ordem pública (e, portanto, cogentes) - o que é consequência da vulnerabilidade do núcleo familiar e de sua importância social - isto, no entanto, não afasta a circunstância de que estão situadas dentro do Direito Privado, pois, na essência, configuram preceitos reguladores das relações dos indivíduos entre si. 

III. Crise da legítima no Direito Sucessório brasileiro

Registra-se que nas relações de família, a compatibilização da noção de ordem pública com a intransigente tutela da dignidade da pessoa humana não deve afastar, senão estimular o desenvolvimento da autonomia privada, desde que as relações que vicejam no núcleo familiar, permeadas por intenso conteúdo ético, se constituam em instrumento de promoção e desenvolvimento da personalidade de seus integrantes (MATON; TEIXEIRA, 2019. p. 94). Os ajustes existenciais devem ser regulados de acordo com a vontade das partes em ambiente de crescente isonomia, sob o paradigma do modelo democrático de família delineado pelo constituinte. No atual cenário legal, frente as novas e hodiernas demandas, contata-se que os elementos que sustentavam a legitima nos séculos passados estão dissociados e não lhe servem mais de esteio. 

Pode-se dizer que o Princípio da Solidariedade Familiar é de suma relevância e que ele protege os mais vulneráveis, além de garantir, em alguma medida, a continuidade daquele arranjo e acervo patrimonial. Todavia, como defendido por Teixeira (TEIXEIRA, 2021, p. 27-28), na conjugação entre liberdade e solidariedade, parece ter chegado a hora de redimensionar a solidariedade familiar.

Conforme se verifica, a crise da legítima está inserida, nesse estudo, no aspecto da incompatibilidade jurídica e social, mormente em razão de que a sua finalidade não mais se realiza na família contemporânea, porquanto nem sempre atinge os herdeiros vulneráveis, e por isso distorce, na mesma proporção, a sucessão post mortem, especialmente quando se dá em descompasso os desejos íntimos do falecido. Indispensável o reconhecimento de que a propriedade, a família e a herança são conceitos que evoluíram de maneira fragmentada sob a influência de valores sociais (TEIXEIRA, 2021, p. 27-28), em que a indissolubilidade do matrimônio não persiste, pois, à época, o casamento, como sistema de trocas e de incremento de patrimônio, não poderia ser colocado em risco pela manifestação de vontade daquela que nada entendia sobre gestão financeira da família (LIMA, 2024, p. 156). 

Torna-se contraditório, frente a essas explanações, o sujeito poder gozar e fruir do seu patrimônio em vida sem nenhuma limitação imposta, e tal liberdade não ser aplicada na disposição post mortem. Essa inviabilidade não resulta em igualdade. No Brasil, a tensão entre indisponibilidade sucessória e liberdade contratual tem se intensificado diante do desenvolvimento de novos instrumentos de planejamento patrimonial - holding familiares, doações modulares, seguros de vida, pactos antenupciais patrimoniais, contratos de convivência e cláusulas restritivas - que, embora não configurem disposição sucessória stricto sensu, produzem efeitos econômicos que tangenciam ou, em alguns casos, funcionalmente substituem a sucessão.

Como observa Pontes de Miranda (MIRANDA, 1984, p. 190) a sucessão não se reduz a um mero conteúdo econômico, mas integra uma "função institucional da família"; todavia, no cenário atual, convive-se com demandas práticas por maior autonomia privada na organização patrimonial inter vivos e mortis causa, e, que as razões histórias de moralidade familiar não persistem. A ausência de herança forçada permite a livre disposição dos bens - como já ocorre em vida, inexistindo motivações para que a restrição seja feita no ato da morte - e a destinação do acervo hereditário dar-se-á de acordo com a real solidariedade e afeto de seus membros, 

IV. Considerações finais

Traçados os principais contornos acerca da autonomia privada e das fundamentações que ensejaram a constituição da legítima, conclui-se que na sociedade contemporânea estas motivações desapareceram em alguma medida: a realização pessoal elevou-se a um direito fundamental, e a família institucional, transpessoal, hierarquizada e matrimonializada, alterou-se em sua estrutura. A liberdade deixa de ser meramente formal ou negativa, demandando uma prática de liberdade substancial, vale dizer, liberdade para o desenvolvimento pessoal (FACHIN, 2015, p. 31-33). 

Por derradeiro, "a liberdade dos modernos", em contraposição à "liberdade dos antigos", significa justamente o direito de cada um levar sua vida privada como bem entender (RUZYK, 2011, p. 93). Para concretizar os direitos fundamentais da pessoa humana, na busca de felicidade, e em consonância axiológica com os princípios constitucionais, assume importância o reconhecimento da autonomia existencial, como face da autonomia privada, tutelada constitucionalmente e sendo dimensão da própria liberdade e instrumento para a realização da dignidade humana. É nesse campo, portanto, que a legítima deve ser repensada. 

Amanda Klauck

VIP Amanda Klauck

Advogada. Mestranda em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Superior do Ministério Público (FMP).

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