CDC ou CBA: STF pousa para rediscutir o itinerário
O texto analisa a suspensão de ações sobre voos pelo STF e sustenta que o passageiro continua sendo consumidor, defendendo a aplicação do CDC e apontando a falha do serviço como raiz da litigância.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:24
STF suspende ações sobre atraso e cancelamento de voos
Na última semana de novembro o ministro Dias Toffoli suspendeu todos os processos que versam sobre o atraso e cancelamento de voos. A decisão foi anotada na esteira do ARE 1.560.244, com repercussão geral sob o Tema 1.417. Atendendo a um pedido da Azul Linhas Aéreas e da CNT - Confederação Nacional do Transporte o ministro entendeu a suspensão como conveniente e oportuna. Sustentam a autora do recurso e o CNT, que as decisões tomadas com base no CDC e no CBA, sem uma unificação da matéria representam risco à segurança jurídica devido ao alto índice de litigância em face das empresas de transporte aéreo.
O índice de litigância é mesmo alto assim?
Sim, o índice de litigância em razões de supostas falhas nos serviços de transporte aéreo é alto. CNJ e ANAC assinaram em setembro deste ano, acordo para buscar reduzir a quantidade de ações no setor aéreo, na oportunidade do lançamento da iniciativa, o diretor-presidente da ANAC declinou os números.
O Brasil representa cerca de 90% dos processos judiciais contra companhias aéreas de todo o mundo, sendo que a judicialização responde por entre 5 e 10% dos preços das passagens. Por meio do ACT, não apenas vamos proporcionar informações para acelerar o trabalho dos juízes, mas também vamos coibir a judicialização abusiva
Somente o excesso de judicializações não é o gatilho para justificar a razão pela qual as operadoras de transporte aéreo vivem em dificuldades, esta é apenas uma das variantes. O aumento substancial e constante do aumento dos custos operacionais, somado a outros fatores como os da judicialização tornam o ambiente empresarial aéreo bastante difícil de se operar com margem de lucro. A CNN reporta que, em cinco anos, as três maiores empresas aéreas brasileiras precisaram recorrer à recuperação judicial (Chapter 11) em tentativa de reequilibrar as contas. Sem entrar no mérito sobre a qualidade dos serviços prestados, as empresas aéreas, ainda segundo a CNN, sofrem com uma ação judicial a cada 0,52 voos, ou seja, os passageiros alçados ao status de consumidores ao se sentirem lesados e não encontrarem acolhimento no setor de relacionamento das empresas, buscam o Judiciário como reação lógica.
CDC ou CBA? Consumidor ou passageiro?
O CBA - Código Brasileiro de Aeronáutica, instituído pela lei 7.565/1986, constitui o principal diploma normativo responsável pela disciplina jurídica das atividades aeronáuticas no território nacional. Sua finalidade central consiste em estabelecer os princípios, regras e diretrizes que regulam a navegação aérea, a segurança operacional, a certificação de aeronaves, a organização da infraestrutura aeroportuária e as relações jurídicas decorrentes do transporte aéreo público e privado. Ao definir competências, o CBA atribui à União, por intermédio do Sistema de Aviação Civil, especialmente da ANAC, do Comando da Aeronáutica e de órgãos correlatos, a responsabilidade exclusiva sobre a regulamentação, fiscalização e controle das atividades aeronáuticas, reafirmando o caráter estratégico da aviação civil para a defesa e o desenvolvimento nacional.
O diploma ainda estabelece determinações essenciais quanto à circulação de aeronaves, à concessão de serviços aéreos, ao regime jurídico dos aeródromos, às condições de operação e às medidas obrigatórias de segurança de voo. Define regras para o transporte aéreo de passageiros e cargas, responsabilidade civil das empresas transportadoras, investigação de acidentes aeronáuticos e certificações técnicas necessárias ao exercício das atividades aeronáuticas. O CBA também disciplina a utilização do espaço aéreo brasileiro, impondo normas de coordenação, autorização e controle de tráfego, além de prever sanções administrativas e penais aplicáveis em caso de infrações.
No tocante ao transporte civil de passageiros o CBA estabelece que o transporte aéreo civil de passageiros é um serviço aéreo público, sujeito a concessão, autorização ou permissão pela União, mediante regulação da ANAC e no que se refere às relações com o passageiro, o CBA disciplina a responsabilidade objetiva das empresas transportadoras, abrangendo atrasos, cancelamentos e danos ocasionados durante o transporte.
Repare-se que, como não poderia ser diferente o CBA trata como passageiro todo aquele que usufrui de transporte aéreo, seja ele comercial ou não, ou seja, passageiro é toda e qualquer pessoa a bordo transportada, neste caso, em aeronave. Eis que aqui se reside provavelmente um dos pontos nevrálgicos da controvérsia instalada. Para fins de apreciação de litígios que trazem empresas aéreas e pessoas insatisfeitas com algum serviço, seja atraso, cancelamento, estravio ou afins, esses litigantes, após decisão final do STF sobre o Tema, serão tratados como passageiros ou como consumidores?
Pergunta retórica para ilustrar o óbvio, transporte aéreo é um serviço remunerado, no qual o consumidor se torna também passageiro ao adquirir um bilhete aéreo e ser transportado pela empresa. Neste caso, se torna fundamentalmente uma relação de consumo e no Brasil, por determinação da lei será aplicado o CDC, conforme se pode verificar em seus arts. 2º e 3º, §2º. O fato é, o consumidor não deixará de ser consumidor para ser passageiro e nem deixa de ser passageiro por ser consumidor. E sendo relação de consumo, atraindo inevitavelmente o CDC, o agora passageiro é revertido das proteções típicas que só alcançam aquele que faz parte de uma relação de consumo, como é o caso da mais célebre proteção, que é a vulnerabilidade.
O art. 4º , I, do CDC estabelece verbis
- Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
- I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo
O princípio da vulnerabilidade é basilar, fundamenta a existência e a aplicação do Direito do Consumidor brasileiro. Conforme Bruno Miragem, a vulnerabilidade do consumidor constitui presunção legal absoluta, que informa se as normas do Direito do Consumidor devem ser aplicadas e como devem ser aplicadas. Conforme visto na lei e na doutrina, a vulnerabilidade é reconhecida pelo Estado e a proteção do consumidor, vulnerável, é dever do mesmo, cabendo não só a vigilância como também os meios de combate aos empreendimentos que visam se aproveitar da vulnerabilidade dos consumidores.
Visando as empresas aéreas se aproveitarem dos consumidores ou passageiros sim ou não, aquele que usufrui do serviço imperativamente deve estar sob a égide da proteção consumerista, independente de qual nomenclatura outros dispositivos legais ou normativos declinem ao mesmo. Indo além, o CBA e o CDC ainda que em formatos diferentes trazem a mesma responsabilização objetiva no tocante à responsabilidade pelos passageiros ou consumidores, vejamos ambos os textos normativos:
CBA art. 256. O transportador responde pelo dano decorrente:
- I - de morte ou lesão de passageiro, causada por acidente ocorrido durante a execução do contrato de transporte aéreo, a bordo de aeronave ou no curso das operações de embarque e desembarque;
- II - de atraso do transporte aéreo contratado
Já o CDC em seu art. 14:
- Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Em primeira análise se vê que ambos os textos, cada um a sua maneira, traz proteção ao passageiro e consumidor. É possível se supor então, que a ação de suspensão tem mais um teor de postergar as decisões emergentes do que sanar alguma espécie de irregularidade por parte do Judiciário, haja vista que, mesmo em proporções diferentes os dois arcabouços normativos se preocupam com à proteção do passageiro ora consumidor, o que mudaria no caso seria apenas a nomenclatura.
Mas passamos agora ao peso que o status de consumidor confere ao também passageiro. Quando se fala em norma, a hierarquia é clara, a CF/88 é nossa carta magna e dela decorre todos os designínios e fundamentos da nossa República. A CF protege o consumidor em nível fundamental "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" art. 5º, XXXII e a nível econômico-estrutural "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] V - defesa do consumidor;" art. 170, V.
Logo, conforme mencionado supra, o consumidor não o deixa de ser para se tornar passageiro, quando adquire um bilhete aéreo. Por uma questão lógica, jurídica e doutrinária, o CDC protege com muito mais veemência os consumidores e passageiros do que o CBA, que só menciona passageiros. As controvérsias podem até residir nas redações dos magistrados que, buscam fundamentar suas decisões das maneiras mais plurais e didáticas possíveis, trazendo não só o CDC, mas também o CBA, mas isto por si só, não deve afastar a proteção consumerista das relações entre empresas aéreas e consumidores, haja vista que a proteção do consumidor é um ditame constitucional e não será relevado pelo STF nem por hipótese. O passageiro é sim consumidor, e o sendo, é por razão de relação de consumo, logo a aplicação do CDC é indispensável, afinal não é imaginável que o status de consumidor será daqui por diante, suspenso, apenas em razão do mesmo estar a bordo de uma aeronave, ser passageiro não é maior do que ser consumidor.
Conclusão: Aposta para decisão final
O STF como guardião da CF/88 provavelmente decidirá pela manutenção do CDC como referência para as decisões que forem prolatadas concernentes aos vícios oriundos da prestação de serviços aéreos. Se trata de uma unificação oportuna como dito pelo ministro Dias Toffoli? Sim. Mas só ela não tratará uma melhora na situação de litigância das empresas aéreas, haja vista que é cristalino que o problema reside na própria prestação de serviço e não em qual dispositivo legal deve ser aplicado.
___________________
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Artigos 5º e 170, V. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Código Brasileiro de Aeronáutica. Artigo 256. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565compilado.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7565compilado.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Artigos 2º e 3º, §2º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Artigo 4º, I. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Artigo 14. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm Acesso em: 07 dez. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.560.244. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=7313323 Acesso em: 07 dez. 2025.
CNN BRASIL. Judicialização à brasileira pressiona aéreas e suscita mercado de processos. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/judicializacao-a-brasileira-pressiona-aereas-e-alimenta-mercado-de-processos/ Acesso em: 07 dez. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA; AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL. CNJ e ANAC assinam acordo que busca reduzir a quantidade de ações no setor aéreo. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/cnj-e-anac-assinam-acordo-que-busca-reduzir-a-quantidade-de-acoes-no-setor-aereo/ Acesso em: 07 dez. 2025.
MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.


