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Itcmd/sp: Reavaliação de quotas de holdings após Tema 1.371 é ilegítima

Análise técnica desmonta pânico gerado pelo Tema 1.371 do STJ, defendendo que reavaliação de quotas de holdings em SP é ilegal e a irretroatividade protege doações passadas.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Atualizado às 11:28

Pânico pós-Tema 1.371 do STJ: Por que a reavaliação de quotas de holdings em SP é uma ameaça ilegítima

Em um cenário de crescente complexidade tributária, a organização patrimonial e o planejamento sucessório por meio de holdings familiares e patrimoniais tornaram-se ferramentas essenciais para a preservação e a gestão eficiente de ativos. Contudo, uma recente decisão do STJ, proferida no âmbito do Tema repetitivo 1.371, acendeu um sinal de alerta e gerou uma onda de insegurança jurídica que varreu escritórios de advocacia, consultorias e, principalmente, as famílias que se valem de tais estruturas no Estado de São Paulo.

O burburinho que se seguiu ao julgamento sugere que a Fazenda Estadual Paulista teria agora um cheque em branco para reavaliar, de forma retroativa, o valor das quotas sociais doadas em planejamentos passados, substituindo o critério utilizado pelo contribuinte por um suposto "valor de mercado" arbitrado unilateralmente. Esse temor, embora compreensível diante da voracidade arrecadatória do Estado, carece de fundamento técnico quando analisado sob a ótica da legislação específica que rege a matéria em São Paulo.

O presente artigo se propõe a desconstruir esse pânico, demonstrando, por meio de uma análise aprofundada e técnica, que a tese fixada pelo STJ, embora de extrema relevância, não se aplica de maneira indiscriminada e automática à doação de quotas ou ações de sociedades, como é o caso da vasta maioria das holdings.

Argumentaremos que existe uma distinção fundamental (distinguishing) a ser feita entre a base de cálculo do ITCMD para bens imóveis, objeto central da controvérsia que deu origem ao Tema 1.371, e a base de cálculo para participações societárias não negociadas em bolsa, para as quais a legislação paulista estabeleceu um critério específico e objetivo.

Defenderemos que, em respeito ao princípio da legalidade estrita, o Fisco não pode ignorar a metodologia expressamente prevista em lei em favor de um arbitramento genérico. Por fim, ainda que tal entendimento fiscal prevalecesse, demonstraremos que a muralha da irretroatividade, erigida pelo art. 146 do CTN, protege os atos jurídicos já consumados, impedindo que a mudança de critério jurídico alcance fatos geradores pretéritos, resguardando a segurança jurídica e a boa-fé dos contribuintes que pautaram suas condutas pela lei vigente à época.

A tese fixada no Tema 1.371 do STJ e a origem da controvérsia

O epicentro do atual debate reside no julgamento do REsp 2.175.094/SP, sob o rito dos recursos repetitivos, que culminou na fixação do Tema 1.371 pela 1ª seção do STJ em 10/12/25.

A controvérsia original girava em torno da legalidade da base de cálculo do ITCMD utilizada pela Fazenda do Estado de São Paulo na transmissão de bens imóveis, que frequentemente desconsiderava o valor venal utilizado para o IPTU (imóveis urbanos) ou o valor declarado para o ITR (imóveis rurais), adotando um "valor venal de referência" instituído por decreto, consideravelmente superior. O STJ, ao pacificar a questão, estabeleceu uma tese vinculante que, em sua literalidade, parece conferir amplos poderes à administração tributária:

  1. A prerrogativa da Administração fazendária de promover o procedimento administrativo de arbitramento do valor venal do imóvel transmitido decorre diretamente do Código Tributário Nacional, em seu art. 148 (norma geral, de aplicação uniforme perante todos os entes federados).
  2. A legislação estadual tem plena liberdade para eleger o critério de apuração da base de cálculo do ITCMD. Não obstante, a prerrogativa de instauração do procedimento de arbitramento, nos casos previstos no art. 148 do CTN, destinado à apuração do valor do bem transmitido, em substituição ao critério inicial que se mostrou inidôneo a esse fim, a viabilizar o lançamento tributário, não implica em violação do direito estadual, tampouco pode ser genericamente suprimida por decisão judicial.
  3. O exercício da prerrogativa do arbitramento dá se pela instauração regular e prévia de procedimento individualizado, apenas quando as declarações, as informações ou os documentos apresentados pelo contribuinte, necessários ao lançamento tributário, mostrarem se omissos ou não merecerem fé à finalidade a que se destinam, competindo à administração fazendária comprovar que a importância então alcançada encontra se absolutamente fora do valor de mercado, observada, necessariamente, a ampla defesa e o contraditório.

Uma leitura apressada e descontextualizada da tese poderia levar à perigosa conclusão de que o Fisco está, a partir de agora, autorizado a arbitrar o valor de qualquer bem ou direito transmitido, bastando para isso alegar que o valor declarado pelo contribuinte não corresponde ao "valor de mercado". O pânico se instala justamente aqui: se o Fisco pode fazer isso com imóveis, poderia também fazê-lo com as quotas de uma holding familiar, ignorando o valor patrimonial declarado na doação e utilizando critérios subjetivos como fluxo de caixa descontado, avaliação de mercado da empresa ou outros métodos que inflam a base de cálculo do imposto.

Contudo, essa interpretação ignora a premissa fundamental que norteou todo o debate judicial: a natureza da norma que define a base de cálculo para bens imóveis. A lei paulista 10.705/00, em seu art. 9º, estabelece de forma genérica que a base de cálculo do ITCMD é o "valor venal do bem ou direito transmitido", definindo no seu § 1º que "valor venal" é o "valor de mercado".

Para imóveis, o art. 13 da mesma lei estabelece apenas um piso para essa base de cálculo, ao dispor que ela não será inferior ao valor do IPTU ou ao valor declarado para o ITR. A lei, portanto, é silente sobre como apurar o "valor de mercado" quando este for superior ao piso.

Foi essa lacuna legislativa que permitiu ao Fisco, por meio de decreto, criar o "valor venal de referência" e que, agora, fundamenta a aplicação da prerrogativa de arbitramento do art. 148 do CTN, conforme validado pelo STJ. O arbitramento, nesse contexto, surge como uma ferramenta para preencher uma indeterminação da própria lei estadual. A situação, como veremos, é drasticamente diferente no caso das participações societárias.

O distinguishing necessário: A base de cálculo específica para quotas sociais na legislação paulista

O pilar central que sustenta a inaplicabilidade do raciocínio do Tema 1.371 às doações de quotas de holdings familiares reside no princípio da legalidade estrita, consagrado no art. 97 do CTN, que exige lei em sentido formal para a fixação da base de cálculo dos tributos.

Enquanto para os bens imóveis a lei paulista se mostrou genérica e aberta, demandando uma integração interpretativa, para as participações societárias não negociadas em bolsa, o legislador estadual foi específico, claro e determinou um método de avaliação próprio, não deixando margem para a discricionariedade do Fisco.

A lei 10.705, de 28/12/00, ao tratar da base de cálculo de bens móveis e direitos no seu art. 14, criou uma disciplina detalhada e hierárquica. O § 2º do referido artigo trata das ações que possuem liquidez de mercado, estabelecendo que seu valor será determinado pela cotação média na Bolsa de Valores.

Reconhecendo que a grande maioria das sociedades, incluindo as holdings patrimoniais, não possui capital aberto nem ações negociadas em bolsa, o legislador cuidou de criar uma regra específica para elas no parágrafo seguinte. O art. 14, § 3º, da lei 10.705/00 (com a redação dada pela lei 10.992/01) é de uma clareza solar e merece ser transcrito em sua íntegra:

§ 3º Nos casos em que a ação, quota, participação ou qualquer título representativo do capital social não for objeto de negociação ou não tiver sido negociado nos últimos 180 (cento e oitenta) dias, admitir-se-á o respectivo valor patrimonial.

A norma não abre espaço para interpretações alternativas. Ela não diz "valor de mercado", não menciona "fluxo de caixa descontado" nem autoriza o Fisco a buscar um "valor de referência".

O legislador paulista, no exercício de sua plena competência tributária, elegeu um critério objetivo e seguro para a avaliação desses ativos: o valor patrimonial. Este critério, apurado com base na contabilidade da empresa (ativo total menos passivo exigível), oferece segurança jurídica tanto para o contribuinte, que sabe exatamente como calcular o imposto devido, quanto para o Fisco, que pode facilmente auditar a correção desse cálculo a partir dos balanços patrimoniais da sociedade.

O regulamento do ITCMD, aprovado pelo decreto 46.655/02, apenas reitera essa determinação legal em seu art. 17, § 3º, demonstrando a consistência do sistema.

Nesse contexto, a prerrogativa de arbitramento do art. 148 do CTN, discutida no Tema 1.371, assume uma conotação completamente distinta. O STJ foi claro ao condicionar o arbitramento à hipótese de as declarações do contribuinte se mostrarem "omissas ou não merecerem fé".

Ora, quando um contribuinte, ao doar quotas de sua holding, apura o valor patrimonial com base no último balanço patrimonial aprovado e recolhe o ITCMD sobre essa base, ele não está prestando uma declaração que "não merece fé". Pelo contrário, está cumprindo rigorosamente o comando expresso do art. 14, § 3º, da lei estadual.

A fé que sua declaração merece não advém de sua vontade, mas da própria lei que ele está a aplicar. Tentar arbitrar um valor diferente, sob a justificativa de que o "valor de mercado" da empresa seria maior, não é um ato de fiscalização, mas uma tentativa de substituir o critério legal por um critério da conveniência da autoridade fiscal, o que representa um flagrante e inconstitucional ofensa ao princípio da legalidade.

O arbitramento, aqui, só seria cabível se o contribuinte fraudasse o balanço, ocultasse ativos ou manipulasse a contabilidade para reduzir artificialmente o valor patrimonial. Nesse caso, o Fisco estaria corrigindo a aplicação fraudulenta do critério legal, e não substituindo o critério em si.

Portanto, o distinguishing é nítido: no caso dos imóveis (Tema 1.371), o arbitramento visa a determinar o "valor de mercado" porque a lei é genérica.

No caso das quotas (fora do Tema 1.371), a lei já definiu o critério - valor patrimonial. Tentar aplicar a lógica do Tema 1.371 a esta segunda situação seria o mesmo que permitir que o Fisco, a seu bel-prazer, ignore a lei para arrecadar mais, transformando o poder-dever de fiscalizar em um poder arbitrário de tributar.

A muralha da irretroatividade e a proteção ao ato jurídico perfeito

Ainda que, por um exercício de argumentação (ad argumentandum tantum), se admitisse a tese de que o Fisco Paulista poderia reinterpretar sua legislação para passar a exigir o ITCMD sobre um suposto "valor de mercado" das quotas de holdings, ignorando o critério do valor patrimonial, uma barreira intransponível se ergueria para proteger os planejamentos sucessórios já realizados: o princípio da irretroatividade da lei tributária e, mais especificamente, a vedação à mudança de critérios jurídicos com efeitos retroativos.

Imagine-se a situação de um patriarca que, no ano de 2023, seguindo à risca o disposto no art. 14, § 3º, da lei 10.705/00, doou aos seus herdeiros as quotas de sua holding familiar, apurando a base de cálculo do ITCMD pelo valor patrimonial e recolhendo o imposto correspondente.

O ato jurídico da doação se perfez, o fato gerador do imposto ocorreu e a obrigação tributária foi extinta pelo pagamento, tudo sob a égide de um critério jurídico claro e expresso em lei, aceito e aplicado pela própria administração tributária por mais de duas décadas. Seria razoável, seguro ou justo que, em 2025, após o julgamento do Tema 1.371, o Fisco pudesse "reabrir" essa operação e exigir uma diferença de imposto com base em um novo critério de avaliação? A resposta é um sonoro não.

O CTN, norma geral em matéria tributária que vincula todos os entes federativos, contém um dispositivo de proteção fundamental para o contribuinte contra a instabilidade e a surpresa fiscal. Trata-se do art. 146 do CTN, que estabelece:

Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

Este artigo é uma concretização do princípio da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, da CF/88) no campo tributário. Ele veda o que se conhece como "retroatividade imprópria", que é a aplicação de uma nova interpretação ou de um novo critério de lançamento a fatos geradores passados. A aceitação, por anos a fio, da declaração de ITCMD sobre doação de quotas com base no valor patrimonial consolidou um "critério jurídico" por parte da autoridade administrativa.

Uma eventual mudança de postura, na qual o Fisco passasse a glosar esse critério para exigir uma base de cálculo diversa, configuraria inequivocamente uma "modificação nos critérios jurídicos" de que trata o art. 146. Tal modificação, por expressa disposição legal, só pode ter eficácia para o futuro (ex nunc), ou seja, apenas para fatos geradores (doações) que ocorram após a sua formal introdução.

Tentar aplicar retroativamente essa nova interpretação para autuar doações consumadas antes do julgamento do Tema 1.371 ou de uma mudança formal de entendimento do Fisco paulista seria um ato ilegal, que viola a boa-fé do contribuinte e desestabiliza por completo as relações jurídicas. O contribuinte que planejou sua sucessão confiando na lei não pode ser penalizado por uma subsequente mudança de humor ou de interpretação do Fisco.

A proteção ao ato jurídico perfeito e a vedação à surpresa fiscal são pilares do Estado de Direito que não podem ser derrubados pela sanha arrecadatória.

Conclusão

O alarde e a apreensão que se instalaram no universo do planejamento patrimonial paulista após o julgamento do Tema 1.371 pelo STJ, embora compreensíveis em um primeiro momento, revelam-se desproporcionais e tecnicamente equivocados quando a questão é analisada com a devida profundidade. A tentativa de transpor automaticamente a lógica aplicável à base de cálculo de bens imóveis para a doação de quotas de holdings familiares ignora uma distinção legal fundamental e decisiva.

Conforme demonstrado, a legislação paulista do ITCMD, ao contrário do tratamento genérico conferido aos imóveis, estabeleceu um critério específico, objetivo e mandatório para a apuração da base de cálculo de participações societárias não negociadas em bolsa: o seu valor patrimonial. Tal previsão, contida no artigo 14, § 3º, da lei 10.705/00, representa o exercício legítimo da competência tributária do Estado e vincula tanto o contribuinte quanto a administração fiscal, em estrita observância ao princípio da legalidade.

A prerrogativa de arbitramento do art. 148 do CTN, reafirmada pelo STJ, não autoriza o Fisco a substituir um critério legal por outro que lhe seja mais conveniente, mas apenas a coibir a aplicação fraudulenta ou omissiva do critério posto em lei.

Ademais, mesmo que se cogitasse uma alteração na interpretação fiscal, a proteção conferida pelo art. 146 do CTN funciona como uma barreira de contenção contra o arbítrio retroativo. As doações de quotas já realizadas, cujos impostos foram calculados e pagos de acordo com a lei e os critérios vigentes à época, constituem atos jurídicos perfeitos, protegidos pela irretroatividade e pelo princípio da segurança jurídica.

A confiança do cidadão na estabilidade da lei não pode ser frustrada por mudanças de entendimento posteriores.

Assim, o planejamento patrimonial e sucessório por meio de holdings em São Paulo, desde que realizado com seriedade e estrita observância à legislação, permanece como um instrumento jurídico seguro e eficaz. A tempestade gerada pelo Tema 1.371, no que tange a esse específico ponto, parece ser muito mais um ruído alarmista do que uma ameaça concreta ao direito dos contribuintes. Cabe aos operadores do Direito e aos consultores a tarefa de trazer serenidade e clareza técnica ao debate, assegurando que o planejamento continue a ser uma ferramenta de organização e preservação, e não uma fonte de incerteza e temor.

Gabriel Vaccari

VIP Gabriel Vaccari

Advogado com mais de 13 anos de experiência. Possui expertise e especialização em reestruturações societárias e planejamento patrimonial. Pós-graduado LLM pelo IBMEC em operações societárias.

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