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Quando proteger piora: O STF e as moratórias no crédito consignado

O artigo analisa, à luz do STF e da Constituição, os riscos das moratórias estaduais no crédito consignado e defende soluções coordenadas, policêntricas e alinhadas à justiça multiportas.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:17

O debate recente sobre o crédito consignado, intensificado por denúncias de descontos irregulares em benefícios previdenciários e por iniciativas legislativas estaduais que optaram pela suspensão ampla dessas operações, exige mais do que respostas imediatistas. O problema não é simples nem linear. Trata-se de um conflito estrutural, de natureza policêntrica, que envolve política pública de crédito, previdência social, sistema financeiro, sistema de justiça e proteção do consumidor.

Em cenários dessa complexidade, soluções genéricas tendem a produzir efeitos inversos aos pretendidos. E como tendem!

O crédito consignado como política pública e o risco das respostas abstratas

O crédito consignado não pode ser tratado como um produto financeiro ordinário. Ele se consolidou no Brasil como uma política pública federal de acesso ao crédito, estruturada a partir do desconto em folha, da previsibilidade e da redução do risco sistêmico - fatores que explicam suas taxas historicamente inferiores às de outras modalidades disponíveis no mercado.

Como sustento em minha obra Crédito Consignado: Privilégio ou Malefício aos Aposentados e Pensionistas do INSS e aos Beneficiários do BPC - LOAS?:

"O crédito consignado não pode ser reduzido a um produto financeiro qualquer. Ele foi concebido como uma política pública de acesso ao crédito, estruturada para reduzir custos, mitigar riscos e permitir que parcelas vulneráveis da população tivessem acesso a financiamento em condições mais justas."

A suspensão genérica dessa modalidade, ainda que sob o discurso da proteção do consumidor, produz um paradoxo evidente: retira-se do público vulnerável justamente o crédito mais barato e regulado, empurrando-o para alternativas mais onerosas, instáveis ou mesmo informais. Do ponto de vista constitucional, isso tensiona a lógica da ordem econômica (art. 170 da Constituição), que exige a harmonização - e não a oposição - entre defesa do consumidor e livre iniciativa.

Um sistema já sobrecarregado não comporta mais judicialização

Dados oficiais do CNJ demonstram que o INSS figura entre os maiores litigantes do país, com milhões de processos em tramitação. Paralelamente, a fila administrativa para perícia médica ultrapassa a casa de um milhão de pessoas, exigindo mutirões emergenciais.

Esse cenário revela um sistema operando no limite de sua capacidade institucional. Medidas que geram insegurança contratual em massa - como moratórias legislativas abstratas - tendem a multiplicar litígios, deslocando para o Judiciário e para a administração pública conflitos que poderiam ser tratados de forma mais racional, preventiva e coordenada.

O problema, portanto, não é a ausência de atuação estatal, mas o agravamento estrutural do conflito por meio de respostas mal calibradas.

Não há vazio regulatório: há uma resposta policêntrica em funcionamento

A narrativa de que o mercado do consignado estaria desprovido de controle não se sustenta empiricamente. O que se observa é uma arquitetura policêntrica de resposta, composta por múltiplos centros decisórios:

  • No plano administrativo, auditorias federais recentes levaram à suspensão de averbações de instituições específicas após a identificação de irregularidades concretas, preservando-se as operações regulares.
  • No plano judicial, decisões vêm reconhecendo práticas abusivas e impondo responsabilização, inclusive por meio de condenações por danos morais coletivos.
  • No plano autorregulatório, entidades do setor financeiro estruturaram mecanismos de fiscalização, certificação e sanção de correspondentes.

Essa configuração demonstra que não há omissão estatal, mas sim a necessidade de coordenação entre os diversos atores envolvidos - exatamente o oposto do que produzem respostas isoladas e generalizantes.

STF, CNJ e a consolidação da justiça multiportas

Essa leitura encontra respaldo explícito na atuação recente das instituições centrais do sistema de justiça. O Pacto Nacional do Judiciário pela Desjudicialização da Previdência Social, lançado pelo CNJ, reconhece que a litigiosidade previdenciária é estrutural e que sua superação exige prevenção do conflito, consensualidade e coordenação institucional, e não respostas meramente proibitivas.

Na mesma linha, o STF tem ressaltado, em manifestações institucionais recentes, que conflitos de elevada complexidade e impacto social demandam soluções estruturais, capazes de articular diferentes órgãos e evitar a reprodução da litigiosidade em massa. Essa diretriz se materializa também na atuação do NUSOL - Núcleo de Solução Consensual de Conflitos, que reposiciona o Judiciário como gestor constitucional do conflito, e não apenas como adjudicador.

É nesse contexto que se insere a atuação do ministro André Mendonça, atualmente relator da ADI 7.900, cuja trajetória institucional registra defesa pública de uma agenda de desjudicialização qualificada, sem prejuízo do controle jurisdicional.

O sinal do STF e os limites às moratórias estaduais

Essa compreensão já se refletiu em decisão concreta do STF, que suspendeu norma do Estado de Mato Grosso que impedia o desconto de empréstimos consignados de servidores públicos, reconhecendo o risco de desorganização do sistema e a necessidade de preservação da uniformidade regulatória nacional.

O sinal institucional é claro: a Constituição não autoriza respostas estaduais genéricas que, sob o pretexto de proteção, inviabilizam uma política pública federal de acesso ao crédito e produzem insegurança jurídica em larga escala.

A contribuição institucional da OAB ao debate

O tema também vem sendo enfrentado de forma técnica e institucional no âmbito da advocacia brasileira. A CEDB/CFOAB - Comissão Especial de Direito Bancário do Conselho Federal da OAB aprovou, por unanimidade, parecer reconhecendo a inconstitucionalidade de decreto estadual que suspendeu operações de crédito consignado.

O parecer foi relatado pelo advogado Bruno Felipe Monteiro Coelho (OAB/MT) e aprovado, sob a condução da Diretoria da CEDB/CFOAB - Comissão Especial de Direito Bancário da OAB Nacional, a qual estou presidente e é composta por Matheus de Quadros Baccin (vice-presidente), Harrison Alexandre Targino Júnior (secretário) e Paulo Sérgio Ferraz de Camargo (secretário-adjunto), refletindo um esforço coletivo de qualificação do debate público.

A manifestação destacou, entre outros pontos, a violação à competência privativa da União, os impactos negativos sobre a ordem econômica e os riscos à segurança jurídica decorrentes de moratórias legislativas abstratas.

O problema do improviso regulatório

Como sustento em outro trecho de minha obra:

"Medidas que, sob o pretexto de proteção, eliminam o acesso ao crédito mais barato acabam produzindo um efeito perverso: empurram o consumidor vulnerável para alternativas mais onerosas, menos reguladas e, muitas vezes, informais. O combate a abusos não se faz pela supressão do instrumento, mas pelo seu aperfeiçoamento regulatório."

A discussão, portanto, não é ideológica, mas metodológica. Problemas complexos exigem soluções complexas, institucionalmente coordenadas, constitucionalmente responsáveis e socialmente conscientes.

Conclusão

O enfrentamento das irregularidades no crédito consignado é necessário e inadiável. Mas ele não se fará por meio de moratórias amplas, respostas simbólicas ou improvisações legislativas. Proteção ao consumidor, em um Estado constitucional complexo, exige precisão institucional (e não atalhos).

A experiência recente demonstra que soluções policêntricas, dialogadas e supervisionadas - como as que vêm sendo construídas no âmbito do STF, do CNJ e com a contribuição técnica da OAB e outras instituições -, são mais eficazes; mais compatíveis com a Constituição; com a realidade do sistema de justiça e com a vida concreta das pessoas (e famílias) que dependem dessas políticas públicas.

Desjudicializar (ou desjurisdicializar) e procurar soluções multiportas, nesse contexto, não é negar o conflito. É tratá-lo com a complexidade que ele exige.

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Referências

Supremo Tribunal Federal - STF suspende norma que impedia desconto de empréstimos consignados de servidores de Mato Grosso. https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-suspende-norma-que-impedia-desconto-de-emprestimos-consignados-de-servidores-de-mato-grosso/

Supremo Tribunal Federal - Atuação do STF na construção de soluções estruturais e consensuais em conflitos de alta complexidade. https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=420938

Conselho Nacional de Justiça - Pacto Nacional do Judiciário pela Desjudicialização da Previdência Social. https://www.cnj.jus.br/pacto-visa-desjudicializar-previdencia-social/

Jurinews - Comissão de Direito Bancário do CFOAB aprova parecer pela inconstitucionalidade de decreto estadual que suspende crédito consignado. https://jurinews.com.br/destaque-nacional/comissao-de-direito-bancario-do-cfoab-aprova-parecer-pela-inconstitucionalidade-de-decreto-estadual-que-suspende-credito-consignado/

Rodrigues, Marcos Délli Ribeiro. Crédito Consignado: Privilégio ou Malefício aos Aposentados e Pensionistas do INSS e aos Beneficiários do BPC - LOAS? Natal: Polimatia, 2024.

Marcos Délli Ribeiro Rodrigues

VIP Marcos Délli Ribeiro Rodrigues

Advogado; Conselheiro Federal da OAB; Presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB Nacional; Doutorando em Direito; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil.

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