A gramática profunda da imputação penal: Certeza, linguagem e sentido
Neste artigo, trato da imputação penal como gramática pública: Sem presunções, com critérios verificáveis. Mostro por que a TSI supera o "dolo eventual" e grada a imprudência consciente.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado às 11:45
A imputação penal não pode se sustentar em presunções. Se pretendemos manter a legitimidade do Direito Penal dentro de um Estado Democrático de Direito, é imprescindível reconhecer que os elementos da imputação, como a vontade, o conhecimento e a previsibilidade, não são dados empíricos isolados, nem tampouco construções ficcionais. São, antes, caracteres significativos que, inseridos num jogo de linguagem comum, tornam-se acessíveis por meio de critérios gramaticalmente verificáveis. Wittgenstein, ao afirmar que "não há nada oculto", propõe uma revolução na forma como compreendemos os chamados processos internos: não mais como realidades privadas e inacessíveis, mas como formas de vida expressas em condutas públicas.
O ponto de partida é a rejeição da linguagem privada. Ninguém sabe que está com dor porque contempla um estado interno inefável. Sabe porque participa de um jogo de linguagem onde "estar com dor" significa algo compartilhável: gemer, colocar a mão no local afetado, buscar socorro, pedir alívio. São esses comportamentos, exteriorizações, que possibilitam a atribuição de estados mentais. Da mesma forma, não se pode atribuir dolo a um agente apenas pela crença de que "ele sabia o que fazia". É preciso verificar, por critérios externos e compartilháveis, se sua conduta revela intenção significativa de ofensa ao bem jurídico.
A gramática, aqui, é entendida como Wittgenstein a compreendia: não como um conjunto de regras formais da linguagem escrita, mas como as estruturas profundas que conferem sentido ao uso das palavras. O significado não está escondido por trás da linguagem, ele é a própria linguagem em uso. Daí decorre uma consequência central: a vontade, o dolo e a imprudência não são entidades subjetivas que precisam ser adivinhadas, mas práticas de linguagem que devem ser compreendidas a partir da gramática em que se inserem.
Nesse contexto, afirmar que alguém "quis o resultado" não é postular um dado metafísico inverificável. É reconhecer que, dadas certas condições e comportamentos, somos autorizados a atribuir a esse sujeito a intenção de produzir aquele resultado. O comportamento do agente, portanto, é o critério. Por isso, ao invés de presumir intenções, a teoria significativa da imputação propõe que se identifiquem critérios públicos, verificáveis e intersubjetivos para reconhecer os caracteres dolosos ou imprudentes da conduta.
Essa proposta rompe com o modelo ficcional que sustenta a figura do dolo eventual. Trata-se de um conceito que nasce da ambiguidade gramatical do art. 18 do CP e se alimenta de juízos voláteis sobre estados mentais hipotéticos. Em vez de operar com critérios, opera com suposições. O resultado é a insegurança jurídica, a violação ao princípio da taxatividade e, em última análise, o comprometimento da legitimidade da imputação penal.
A gramática profunda da imputação exige, portanto, a adoção de critérios que sirvam de base para a atribuição dos caracteres mentais significativos. Isso significa dizer que não basta "parecer" doloso ou imprudente: é preciso que existam critérios gramaticalmente consistentes para sustentar essa qualificação. Como ensina Vives Antón, a essência do dolo não se encontra num estado psicológico, mas na ação externa à qual se ligam, logicamente, as diversas intenções atribuídas ao autor.
Neste ponto, a filosofia da linguagem oferece um recurso decisivo: a certeza. Wittgenstein não compreende a certeza como uma convicção subjetiva, mas como uma prática inserida num jogo de linguagem. Assim como não duvidamos que 2 + 2 = 4, também não faz sentido duvidar que uma pessoa, em determinadas circunstâncias, agiu com vontade de produzir um resultado. Essa certeza não é psicológica; é gramatical. Surge da forma como, socialmente, usamos a linguagem para atribuir estados mentais.
A certeza jurídica, portanto, não é incompatível com a complexidade da mente humana. Pelo contrário: ela exige que reconheçamos que a conduta significativa do agente, sua ação comunicativa no mundo, é a única via legítima para se extrair inferências normativas sobre dolo e imprudência. E isso exige não suposições, mas critérios. O juiz, nesse modelo, não é um adivinho da alma do imputado, mas um intérprete da gramática da conduta.
Os critérios da imputação significativa, assim, não são abstrações formais. São regras práticas que norteiam a observação da conduta humana. O agente que age apesar de prever um resultado danoso como certo, e o aceita, revela imprudência gravíssima. Aquele que prever como eventual, mas revela indiferença, imprudência grave. E aquele que prever e busca evitar com medidas idôneas, ou acredita sinceramente que não ocorrerá, responde por imprudência leve. Todos esses juízos são extraídos do comportamento objetivo do agente, e não de uma ficção de vontade suposta.
É nesse cenário que a teoria significativa da imputação propõe o abandono definitivo da noção de dolo eventual e sua substituição por uma gradação normativamente orientada da imprudência consciente. Trata-se de reconhecer que a linguagem jurídica não pode se afastar da linguagem comum sem perder sua função comunicativa. E, sobretudo, de compreender que não há nada oculto quando analisamos com rigor os critérios que orientam a vida em comum.
Essa é, enfim, a proposta filosófica e dogmática que se pretende afirmar: reconstruir a imputação penal com base na gramática ordinária da linguagem e na certeza que ela permite. O caminho é claro: abandonar suposições subjetivas e reconstruir o Direito Penal com base naquilo que, verdadeiramente, pode ser visto, compreendido e imputado com legitimidade.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


