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Justiça climática e o ''cofre'' municipal

A justiça climática depende dos municípios. O texto traz soluções fiscais concretas para prefeitos agirem sem esperar Brasília. Leitura vital para a gestão pública.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Atualizado às 11:45

A emergência climática não é mais uma previsão futura; é a realidade bater à porta das prefeituras brasileiras, muitas vezes trazendo a força das águas ou o calor insuportável. Se a tragédia climática é global, o impacto é invariavelmente local. No entanto, existe um abismo entre a retórica diplomática dos acordos internacionais e a realidade orçamentária dos municípios.

Diante do novo "Compromisso para o Federalismo Climático" assumido pelo Brasil, surge uma oportunidade inadiável para os municípios: transformar a justiça climática em ferramenta de gestão e captação de recursos.

A premissa é clara: a injustiça climática atinge de forma desproporcional as populações periféricas e vulneráveis. Contudo, há uma dissonância entre a normatividade e a prática. Embora a legislação brasileira autorize o uso de recursos para mitigação e adaptação, os fundos climáticos permanecem subutilizados para projetos em áreas urbanas periféricas, justamente onde o déficit de infraestrutura é mais crítico.

O gargalo financeiro e o dever de agir

O cenário atual revela uma disparidade alarmante na execução das políticas ambientais. Um estudo técnico da CNM - Confederação Nacional de Municípios aponta que, entre 2002 e 2023, o Ministério do Meio Ambiente destinou apenas 0,63% de seu orçamento total para repasses diretos a municípios. Essa concentração de recursos na esfera Federal ignora que os municípios são os primeiros a responderem aos desastres, mas carecem de fluxo financeiro estável para prevenção e adaptação..

Apesar dessa escassez, a inércia não é uma opção jurídica válida. A CF/88 (art. 225) e a Política Nacional sobre Mudança do Clima impõem deveres de ação. Mais do que isso, a nova NDC - Contribuição Nacionalmente Determinada do Brasil estabelece o "Compromisso para o Federalismo Climático", definindo que as ações dos entes subnacionais são fundamentais para as metas de 2035.

Para o gestor municipal e para o operador do Direito Público, a NDC deixa de ser apenas um documento diplomático e passa a operar como diretriz normativa municipal. Isso abre um leque de quatro grandes oportunidades jurídicas e institucionais para modernizar a gestão pública local:

1. A criação de fundos municipais de clima

A dependência exclusiva de repasses Federais é uma armadilha. A oportunidade reside na criação ou aperfeiçoamento de Fundos Municipais de Mudança do Clima, com governança multissetorial e regras claras. Esses fundos não servem apenas para receber verbas Federais, mas para alavancar recursos internacionais e privados, financiando desde a urbanização de favelas com saneamento sustentável até a implantação de jardins de chuva e pavimentos permeáveis.

2. A "etiquetagem" do orçamento

Não se gerencia o que não se mede. Uma inovação necessária é a integração entre o PPA - Plano Plurianual e a LOA - Lei Orçamentária Anual através da "etiquetagem do gasto climático". Identificar e rastrear despesas com relevância climática confere transparência e, crucialmente, "rastreabilidade" às escolhas distributivas do erário. Isso fortalece o município na disputa por verbas externas, demonstrando maturidade institucional.

3. Compras públicas e cláusulas de conformidade

O poder de compra do Estado é um indutor de mercado. Há espaço para a advocacia pública implementar "cláusulas de conformidade climática" em licitações e contratos administrativos. Obras de drenagem, saneamento ou habitação podem e devem exigir métricas de resiliência e baixa emissão de carbono como requisitos de desempenho, alinhando a contratação pública às diretrizes da NDC.

4. O planejamento urbano como ato de justiça

A adaptação climática é, em essência, infraestrutura social. O Fundo Nacional sobre Mudança do Clima já autoriza expressamente o financiamento de saneamento básico e limpeza urbana como medidas de adaptação. Portanto, direcionar recursos para áreas vulneráveis não é desvio de finalidade, mas o cumprimento de uma interpretação integradora do direito climático.

Considerações finais

A efetividade da justiça climática no Brasil não virá apenas de Brasília. Ela requer que os municípios deixem a posição de espectadores de desastres para se tornarem protagonistas da resiliência. A internalização da NDC demanda escolhas jurídicas concretas: fundos ativos, orçamento rastreável e contratações verdes.

Ao reposicionar os fundos e instrumentos climáticos não apenas como "caixas" financeiras, mas como catalisadores de capacidades públicas, cria-se o ambiente para efetivar o direito à cidade sustentável. Para os municípios brasileiros, a adaptação climática é a nova fronteira da responsabilidade fiscal e social.

Por fim, o recado às lideranças locais - prefeitos e presidentes de Câmara - é inequívoco: a alocação de recursos e a aprovação de marcos legais climáticos não são meras tecnicalidades, mas escolhas políticas fundamentais que definirão o legado de seus mandatos. A autonomia municipal, garantida pela CF, carrega consigo o dever indelegável de agir, sob pena de responsabilização por omissão inconstitucional. Não basta esperar passivamente pelas soluções de Brasília; a caneta que sanciona o Plano Diretor e o orçamento é a mesma que deve, hoje, instituir a governança climática local. A urgência do clima exige coragem política, e o custo da inação será, inevitavelmente, cobrado tanto pela história quanto pelos órgãos de controle.

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Dionis Janner Leal

VIP Dionis Janner Leal

Advogado, Doutor em Direito - Direitos Humanos, Mestre em Direito, Democracia e Sustentabilidade. Autor de livros e artigos sobre Accountability, Licitações, Governança e Litigância Climática.

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