Detração cruzada: Cautelar em um processo vale no outro
Tema 1.155/STJ: Detração por cautelares em processo absolvido. Acórdão do TJ/CE admite abatimento por anterioridade fática e núcleo probatório comum, corrigindo erro cronológico na execução.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado às 11:47
1. Introdução
A execução penal não pode ser compreendida como um estágio autônomo, estéril ou desconectado do processo de conhecimento. A pena enquanto instrumento de limitação estatal da liberdade exige precisão máxima, coerência cronológica e integridade lógica. Nesse cenário, a detração penal tornou-se um dos principais pontos de tensão entre a prática forense e a dogmática penal, sobretudo após o julgamento do Tema 1.155 do STJ, que reconheceu a necessidade de se computar o período de recolhimento domiciliar noturno e outras medidas cautelares como tempo de pena efetivamente cumprida.
Em decisão recente, a 4ª Câmara Criminal do TJ/CE reafirmou e expandiu esse entendimento ao reconhecer a detração em um caso peculiar: medidas cautelares impostas em processo no qual a ré fora absolvida, mas derivadas do mesmo núcleo fático que originou a condenação em outra ação penal.
O julgado enfrenta, com rara clareza, uma questão negligenciada com frequência: a cronologia real dos fatos não pode ser desfigurada por registros cartorários ou atrasos investigativos. Quando isso ocorre, o risco é simples e brutal: cumpre-se mais pena do que a legitimamente estabelecida.
Trata-se, portanto, de decisão paradigmática não apenas pela solução específica conferida ao caso, mas pela afirmação de princípios que governam a execução penal em um Estado Democrático de Direito.
2. Duas ações penais, um núcleo fático: A gênese da controvérsia
O caso que motivou o acórdão envolvia duas ações penais formalmente distintas, mas profundamente imbricadas.
Na primeira ação, houve prisão em flagrante e imposição de medidas cautelares rigorosas: comparecimento periódico, proibições específicas e recolhimento domiciliar das 19h às 7h, inclusive aos fins de semana e feriados. Essa ação culminou em absolvição por insuficiência de provas.
O elemento-chave, contudo, estava na apreensão do celular durante o flagrante. A posterior extração dos dados revelou diálogos de setembro de 2020, que passaram a fundamentar uma nova denúncia, em processo autônomo, por organização criminosa. A condenação na segunda ação apoiou-se exclusivamente nesses dados.
A aparente autonomia dos processos era, na verdade, uma ilusão formal. Ambos nasceram:
- Dos mesmos agentes investigativos;
- Dos mesmos elementos probatórios (extração telemática);
- Do mesmo contexto temporal;
- E da mesma prisão em flagrante.
O Tribunal soube ver o que o juízo da execução não viu: a fragmentação processual não dissolve a unidade dos fatos.
3. A detração e a integridade cronológica: Por que a data importa tanto
O indeferimento da detração em primeiro grau fundou-se em um erro tão comum quanto grave: a adoção, como "data do fato", de um marco cartorário 30/7/21 correspondente apenas à autuação de inquérito posterior.
A leitura equivocada gerou uma consequência automática e injusta: se o fato tivesse ocorrido em 2021, as medidas cautelares de 2020 seriam anteriores ao crime e, portanto, não detraíveis conforme a jurisprudência do STJ.
O acórdão corrige a premissa com pedagogia e rigor técnico:
- A data do crime é determinada pela realização do fato típico, e não pela autuação, distribuição ou conclusão do relatório policial;
- Toda a prova telemática situava os fatos imputados em setembro de 2020;
- As medidas cautelares, impostas em outubro de 2020, derivavam do mesmo contexto investigativo que sustenta a condenação.
A cronologia correta neutraliza a falsa premissa utilizada pelo juízo da execução e recoloca o debate nos trilhos do art. 42 do CP e do Tema 1.155/STJ.
4. A linha do tempo como garantia: Por que a anterioridade é indispensável
No cerne do debate está um ponto dogmaticamente consolidado: a detração somente é possível quando o fato objeto da condenação é anterior à medida cautelar a ser abatida.
O equívoco informacional do SEEU produziu uma inversão artificial da cronologia, suscitando a impressão - incorreta - de que o crime teria sido cometido após o período cautelar. Se assim fosse, a detração seria vedada, para evitar que medidas restritivas pretéritas funcionem como "crédito para crimes futuros".
Mas esse não era, evidentemente, o caso.
Os dados objetivos mostram que:
- Os diálogos investigados ocorreram em setembro de 2020;
- A prisão em flagrante ocorreu em 1/10/20;
- As medidas cautelares vigiram até 20/9/21;
- A investigação da segunda ação apenas formalizou-se tardiamente, gerando o falso marco temporal.
Ao restabelecer a cronologia verdadeira, o Tribunal reconstrói a lógica constitucional da execução penal: não há como negar detração sem negar também verdade real, proporcionalidade e a proibição de bis in idem.
O acórdão reafirma, assim, que o Estado não pode se beneficiar da própria desorganização investigativa para aumentar o tempo de encarceramento de alguém.
5. O impacto prático da decisão: Execução penal como espaço de reparação
A decisão da 4ª Câmara Criminal não se limita a ajustar cálculos; ela restabelece a integridade da execução penal.
Ao reconhecer o direito à detração:
- Corrige-se o histórico prisional da apenada;
- Recalcula-se a pena remanescente com base em dados verdadeiros;
- Antecipa-se a possibilidade de progressão de regime, antes prevista apenas para 2027;
- Reafirma-se que nenhum tempo de restrição à liberdade pode ser invisibilizado.
A determinação de atualização imediata da liquidação da pena e de intimação da defesa para conferência materializa a compreensão de que a execução penal é fase jurisdicional sensível, em que o controle técnico e o contraditório são indispensáveis.
O recado institucional é claro: a pena não pode ser ampliada por erros estatais, muito menos por falhas de registro que desfiguram a cronologia dos fatos.
Ao aplicar o Tema 1.155/STJ em sua máxima extensão, o Tribunal fortalece a ideia de que a privação de liberdade é matéria que exige precisão absoluta.
Em um contexto nacional marcado por superlotação carcerária e liquidações de pena frequentemente falhas, decisões como essa reafirmam que a execução penal precisa de rigor técnico, não de automatismos.
6. Considerações finais
O acórdão da 4ª Câmara Criminal do TJ/CE se alinha ao que há de mais avançado na jurisprudência nacional sobre detração penal: reconhece que medidas cautelares reais e efetivamente cumpridas não podem ser apagadas pela fragmentação processual ou por erros cronológicos.
Ao restituir a verdade temporal dos fatos e assegurar a correta aplicação do art. 42 do CP e do Tema 1.155/STJ, o Tribunal cumpre sua função contramajoritária mais essencial: impedir que um equívoco administrativo transforme-se em excesso de execução.
Em tempos em que a execução penal é frequentemente tratada como etapa meramente cartorial, decisões como essa recordam algo simples e poderoso: liberdade é matéria sensível, e cada dia importa.
A detração, mais do que técnica de cálculo, é mecanismo de justiça.


