MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Além do Twin Peaks: Capacidade e regulação responsiva no Brasil

Além do Twin Peaks: Capacidade e regulação responsiva no Brasil

O desafio regulatório brasileiro não é o Twin Peaks, mas a capacidade falha e o "comando-e-controle". Sugere-se fortalecer governança e IA, com regulação responsiva.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Atualizado às 12:23

Os ciclos de crises financeiras incluem pontos de inflexão que impulsionam debates sobre a busca por modelos regulatórios mais eficazes. A crise global de 2008 (conhecida como crise do Subprime), por exemplo, escancarou ao mundo a realidade do inseparável objeto da regulação financeira, dadas as crescentes operações negociais que conjugam crédito, seguro e investimentos. Denunciou as fragilidades de arquiteturas regulatórias tradicionais baseadas em segmentação setorial. Abriu espaço para debates internacionais sobre a adoção do modelo Twin Peaks. No Brasil, esse debate ganhou relevo e nova urgência com os recentes episódios envolvendo o Banco Master, Carbono Oculto, Ambipar e Lojas Americanas. Paira um consenso no mercado, sociedade, governo e especialistas sobre a defasagem de nossa regulação financeira, conforme apontam Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa1 no Migalhas e Marcos Pinto2 no Valor Econômico.

O caso Nvidia adiciona mais uma camada de complexidade ao debate. Em 20 de novembro de 2025, algoritmos de negociação identificaram o que poderia se tornar a maior fraude contábil da história da tecnologia na Nvidia Corporation em 18 horas3. A detecção ultra-rápida, muito antes que analistas humanos pudessem digerir as notas explicativas do balanço apresentado pela big tech, evidencia uma questão crucial: a solução para a instabilidade do mercado brasileiro reside na mera reconfiguração da arquitetura regulatória, com a adoção do modelo Twin Peaks, ou em um aprimoramento mais profundo de nossa capacidade regulatória e dinâmica de enforcement, alavancados por inteligência tecnológica de ponta.

O Twin Peaks: uma proposta de resposta regulatória à imbricação de mercados

O modelo Twin Peaks proposto por Michael Taylor em 19954, emerge como uma resposta pragmática à crescente imbricação da atividade financeira. A convergência entre atividades bancárias, securitárias e de mercado de valores mobiliários, onde instituições diversas passaram a oferecer produtos e serviços similares e/ou conjuntos, revelou a obsolescência de modelos que regulavam a partir dos tipos de instituição. A fusão das fronteiras institucionais gera pontos cegos que, durante a crise do subprime de 2008 foram explorados, ficaram evidentes e foram, inclusive, apontados como o problema central que permitiu a rápida disseminação de riscos sistêmicos e a massificação das condutas lesivas.

Com o objetivo de mitigar essas falhas, o modelo Twin Peaks propõe um desenho institucional com duas "pirâmides" regulatórias diferentes, cada qual com um mandato definido. A primeira voltada para a regulação prudencial e a segunda focada na regulação de condutas. O Regulador Prudencial focaria na solvência, liquidez e estabilidade sistêmica das atividades de crédito, atuando para prevenir falências e o risco de contágio. Seu objetivo foca na saúde financeira das entidades. O Regulador de Conduta seria o responsável pela proteção do consumidor e do investidor, pela integridade do mercado, pela promoção da concorrência e pela erradicação de práticas abusivas. Seu foco é o comportamento das instituições. O modelo de estrutura regulatória Twin Peaks é adotado por países como Austrália (APRA e ASIC) e Reino Unido (PRA e FCA), países que já gozam de capacidade regulatória consolidada e matriz regulatória responsiva, e busca uma regulação mais dialogada e alinhada. Objetiva evitar conflitos de mandato e otimizar a especialização técnica. O Twin Peaks é um modelo de distribuição de competências, de atribuição de funções, que pretende definir: "quem faz o quê", e não de "como fazer bem". O Twin Peaks pressupõe uma capacidade estatal regulatória prévia e robusta, como nos casos da Inglaterra e Austrália.

Crise da capacidade regulatória nrasileira: a solução não reside na arquitetura

No Brasil, o modelo regulatório da atividade financeira é predominantemente setorial-fragmentado. A competência regulatória é distribuída entre Banco Central do Brasil (BCB), Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e Superintendência de Seguros Privados (SUSEP). Os escândalos recentes e casos de irregularidades vastamente veiculados pela imprensa nacional, indicam que o problema central e mais grave não reside na arquitetura institucional, mas sim na insuficiente capacidade regulatória, somada a predominância de uma matriz de regulação do tipo "comando e controle" (C&C) dentro de um contexto legislativo que atribui ampla discricionaridade para a execução da atividade de enforcement.

Este primeiro problema, relacionado à capacidade regulatória, abrange aspectos como a falta de independência e autonomia das autarquias de regulação, tornando-as suscetíveis à captura política e privada; a carência de transparência, de jurisprudência organizada e de processos decisórios e internos claros e delineados; e a deficiência em accountability, muitas vezes em desacordo com as diretrizes da lei de governança das autarquias de regulação estatal, lei 13.848/19 e com a lei federal de processos administrativos federais, lei 9.784/1999, entre outras. Casos como o das Lojas Americanas, Ambipar, Compliance Zero e Carbono Oculto, nos quais as irregularidades se desenvolveram apesar do compliance formal, e a recente lição do caso Nvidia, que revela a velocidade das fraudes modernas, provam que a distribuição de competências e/ou a norma por si só não garantem a conduta material quando a capacidade regulatória e a eficácia do enforcement (que inclui governança, autonomia, processos internos, tecnologia regulatória e a efetiva responsabilização), é deficiente.

Conforme detalhado em minha obra5, a regulação estatal financeira brasileira, ainda muito atrelada ao C&C, é caracterizada pela emissão de regras prescritivas, monitoramento e fiscalização, com aplicação de sanções. Embora a CVM, por exemplo, adote um modelo híbrido com autorregulação delegada à B3 e ANBIMA, a efetividade é comprometida por uma fiscalização muito aquém do necessário e baixíssima eficácia quanto ao enforcement que se mostra "lento, pouco previsível e frequentemente tardio"6. Há um "vazio regulatório grave" na responsabilização dos regulados, como auditores, agências de rating, administradores de fundos, gatekeepers, entre outros, que falham em seu papel de garantir a integridade do mercado. O C&C, enraizado na crença de que a sanção administrativa, mesmo sem efetividade prática, possui um "efeito simbólico" capaz de prevenir infrações, tem se revelado um paradigma problemático. Em agências reguladoras federais, a efetiva execução das multas em processos administrativos sancionadores é inferior a 5%, e na CVM, em períodos específicos, chega a apenas 2,52%7. Essa baixa efetividade gera uma "crise" que frustra a finalidade regulatória, sobrecarrega o sistema, banaliza a sanção e resulta em uma regulação de baixa qualidade. O modelo C&C pressupõe um Estado detentor de todo o conhecimento, sendo rígido e inadequado para mercados dinâmicos. Falha fortemente em promover o aprendizado e a cooperação8.

Capacidade regulatória, regulação responsiva e o imperativo tecnológico: a lição da Nvidia

Diante das limitações do C&C e da necessidade de um aparato de fiscalização por inteligência tecnológica evidenciada no caso Nvidia, o fortalecimento da capacidade da regulação e a adoção da dinâmica de regulação responsiva, desenvolvida por Ian Ayres e John Braithwaite, emergem como um caminho indispensável para o fortalecimento da regulatória brasileira e superação da grave crise institucional9. O primeiro passo consiste em regular com autonomia, transparência, processos bem delineados, cooperação do regulado, tecnologia e autonomia, bastando para tanto o cumprimento de um arcabouço normativo já existente no ordenamento jurídico brasileiro. O segundo, propõe a adoção de uma técnica de enforcement estatal eficiente e mais legítima, representada pela regulação responsiva. Trata-se de uma dinâmica de regulação que ouve e integra os regulados na execução da regulação. Não propõe ser "bonzinho" com o regulado, mas "governar por escalonamento"10: adaptar a resposta regulatória ao comportamento do regulado ("técnica de retaliação equivalente"). A flexibilidade da proposta da "pirâmide de constrangimento" permite que o regulador inicie com persuasão e diálogo, escalando para medidas mais coercitivas. A "big gun", pena mais severa localizada no topo da pirâmide, se apresenta legítima quando o regulado se recusa a cooperar ou persiste na infração11.

Esta abordagem exige um investimento em governança interna e em inteligência tecnológica. O caso da Nvidia é um exemplo contundente do "imperativo da inteligência tecnológica em tempo real". O fato de que algoritmos detectaram a fraude em 18 horas (uma velocidade inatingível para o compliance humano tradicional) evidencia que a fiscalização moderna demanda: (i) Análise de big data e IA, que possibilita o escaneamento de grandes volumes de dados financeiros para identificar anomalias e estruturas complexas que podem mascarar fraudes; (ii) Sistemas Preditivos que possibilitam a antecipação de riscos e tendências para intervenção proativa e (iii) Ferramentas de SupTech e RegTech que otimizam a supervisão e redução do ônus de conformidade. Além do fortalecimento da governança e da adoção da tecnologia para fiscalização, supervisão e monitoramento do mercado, a regulação responsiva fomenta um ambiente de cooperação e confiança, incentivando a autorregulação supervisionada, o diálogo eficaz e a transparência nos processos decisórios. Ao adotar esses princípios, a regulação responsiva não só aprimora o "motor" da supervisão, mas também constrói a disciplina interna necessária para que qualquer reforma arquitetônica seja verdadeiramente eficaz.

Conclusão: o "como fazer bem" vem antes do "quem faz o quê"

O debate sobre o fortalecimento da regulação financeira brasileira, estimulado pelas recentes crises financeiras nacionais e pela lição aprendida no caso Nvidia, demonstra que a dicotomia "modelo atual versus Twin Peaks" precisa ser superada, pelo menos por enquanto. Embora o Twin Peaks apresente um desenho institucional com mandatos claros e especialização, sua importação sem o devido preparo da capacidade regulatória e sem uma transição da matriz C&C para uma abordagem responsiva seria, na melhor das hipóteses, ineficaz. O verdadeiro desafio posto reside na superação de dois passos fundamentais preliminares: Em primeiro, dotar o regulador de capacidade regulatória, calcada no cumprimento das exigências de governança (ferramentas, processos, transparência, organização, autonomia) e adoção de tecnologia para exercício de uma supervisão proativa, inteligente e eficaz, onde a IA seja uma aliada na detecção precoce, nas atividades de fiscalização, supervisão e monitoramento do mercado. Em segundo, adotar a matriz regulatória responsiva, dinâmica, flexível e dialogada com o mercado, essencial para garantir rapidez, eficácia e legitimidade na execução do enforcement estatal. Assim, proponho um sequenciamento estratégico iniciado pelo fortalecimento da capacidade regulatória estatal, seguido de institucionalização da regulação responsiva. Somente após o amadurecimento dessas etapas é possível considerar a adoção de um redesenho institucional, seja ele o Twin Peaks completo ou um modelo híbrido adaptado à nossa realidade. O "como fazer bem" regulatório deve preceder o "quem faz o quê", garantindo que a reforma da arquitetura não se limite a mais uma mudança de fachada, mas promova uma real proteção ao investidor e uma maior integridade no mercado financeiro e de capitais brasileiro.

_______

1 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Mercados financeiro e de capitais: Separação mantida ou imbricação regulatória?. Migalhas, 18 jun. 2025.

2 PIMENTA, Guilherme; OTTA, Lu Aiko. Modelo regulatório do mercado está cada vez mais defasado. Valor Econômico, Brasília, 12 dez. 2025.

3 THE MARKET SNIPER. The NVIDIA Fraud. Substack, 20 nov. 2025. Disponível em: https://substack.com/home/post/p-179453867. Acesso em: 13 dez. 2025.

4 TAYLOR, Michael. Twin Peaks: A Regulatory Structure for the New Century. Londres: Centre for the Study of Financial Innovation, 1995.

5 FERRÉS, Lucía. Do Comando e Controle à Regulação Responsiva: Uma análise a partir da regulação do mercado de valores mobiliários. São Paulo: Editora Dialética, 2025. p. 105-113.

6 FERRÉS, Lucía. Op. cit. p. 105-113.

7 FERRÉS, Lucía. Op. cit., p. 458-469.

8 FERRÉS, Lucía. Op. cit., p. 472-496.

9 FERRÉS, Lucía. Op. cit., p. 425.

10 FERRÉS, Lucía. Op. cit. p. 425-455.

11 FERRÉS, Lucía. Op. cit., p. 400-415.

Maria Lucia Perez Ferres Zakia

VIP Maria Lucia Perez Ferres Zakia

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca