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"Fora" das quatro linhas da Constituição

Artigo analisa a cassação de Eduardo Bolsonaro à luz da Constituição, contrapondo a retórica de agir "dentro das quatro linhas" à prática política, e ressalta o papel do eleitor no momento do voto.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado às 09:30

Pode-se afirmar, sem qualquer surpresa institucional, que a cassação do mandato do deputado Eduardo Bolsonaro não constitui fato inesperado, mas antes um desfecho tardio de uma trajetória política marcada por reiterados tensionamentos com os fundamentos constitucionais da República.

A demora, aliás, é o dado mais eloquente: durante longo período, normalizaram-se condutas que, se praticadas por qualquer outro agente político sem o capital simbólico do sobrenome, teriam sido prontamente enquadradas como incompatíveis com o exercício do mandato parlamentar.

Não se trata de perseguição, tampouco de ruptura excepcional, mas da aplicação, ainda que tardia, de limites mínimos impostos pela ordem constitucional.

É nesse contexto que se impõe a análise das contradições entre o discurso e a prática. A retórica política da família Bolsonaro sempre girou em torno do respeito à Magna Carta, evocada como um mantra: "dentro das quatro linhas da Constituição".

Ocorre que esse bordão, repetido como escudo retórico, esvazia-se quando confrontado com a prática concreta. Não se trata de uma divergência pontual, mas de contradições flagrantes com alguns dos princípios mais elementares que estruturam a República Federativa do Brasil.

Estar "fora das quatro linhas da Constituição" se revelou, de forma explícita, nas condutas do deputado Eduardo Bolsonaro, que não apenas incentivou a ingerência de chefe de Estado estrangeiro sobre o Poder Judiciário brasileiro, como também apoiou a aplicação do chamado "tarifaço" contra produtos nacionais, sendo acompanhado, nesse percurso, por parlamentares que endossam tais posicionamentos.

A soberania nacional, fundamento expresso do art. 1º, I, da CF, é abertamente relativizada quando se incentiva que um chefe de Estado estrangeiro pressione ou interfira no Poder Judiciário brasileiro.

Com base neste fundamento da República, não há espaço para submeter instituições internas a vontades externas. A soberania é o pilar da nossa existência política, e enfraquecê-la equivale a admitir que a República não se governa a si mesma.

O desenvolvimento nacional, previsto no art. 3º, II, que constitui objetivo fundamental da República, é igualmente afetado quando se incentiva e apoia medidas como o chamado "tarifaço" norte-americano, que impôs barreiras adicionais a produtos brasileiros.

Em vez de se pensar um projeto de desenvolvimento interno, coeso e soberano, o país é lançado na condição de dependente, aceitando passivamente imposições externas.

No plano das relações internacionais, a independência nacional, prevista no art. 4º, I, perde densidade sempre que se sustenta que a formulação de políticas públicas brasileiras deva ser guiada por agendas externas.

A contradição mais evidente, porém, está na negação do princípio da não-intervenção (art. 4º, IV). Ao requerer que outro país interfira no Brasil, inverte-se o sentido constitucional. Se a CF/88 proíbe o Brasil de intervir em assuntos internos de outros Estados, é lógico esperar que esses mesmos Estados não interfiram nos assuntos brasileiros. Reivindicar que tal princípio seja violado em desfavor da nossa própria soberania constitui uma inversão perversa.

Desta forma, resta evidente que tais condutas estão longe de representar um agir "dentro das quatro linhas da Constituição", razão pela qual a cassação do mandato não apenas se mostrava juridicamente possível, mas constituía a providência constitucionalmente adequada e institucionalmente necessária para a preservação da soberania, da ordem republicana e da própria integridade do Parlamento.

De todo modo, ainda que a cassação do mandato, quando fundada em faltas reiteradas, não produza automaticamente efeitos de inelegibilidade, ela gera, com absoluta certeza, um impacto negativo relevante no plano da legitimidade política e da credibilidade pública do agente.

A perda do mandato por descumprimento reiterado de deveres básicos do exercício parlamentar evidencia desprezo pelas funções representativas que lhe foram confiadas pelo eleitorado, comprometendo a confiança pública que sustenta a democracia representativa.

Tal circunstância não pode ser tratada como juridicamente neutra no debate político: cabe aos eleitores, sobretudo àqueles que valorizam a responsabilidade institucional, a presença efetiva no Parlamento e o respeito às regras do jogo democrático, levar em consideração esse histórico no momento do sufrágio, sob pena de esvaziar o próprio sentido da representação política.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

RIBEIRO, Marcelo. Câmara decide cassar mandatos de Eduardo Bolsonaro e Ramagem. Veja, São Paulo, 18 dez. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/camara-decide-cassar-mandatos-de-eduardo-bolsonaro-e-ramagem/\. Acesso em: 18 dez. 2025.

Andeirson da Matta Barbosa

VIP Andeirson da Matta Barbosa

Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM. Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Revisor de periódicos. Autor e coautor de livros jurídicos.

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