O golpe da falsa portabilidade
E a responsabilidade das instituições financeiras à luz do Direito do Consumidor.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:30
1. Introdução
A portabilidade de crédito foi concebida como instrumento legítimo de proteção ao consumidor, permitindo a migração de operações financeiras para instituições que ofereçam melhores taxas e condições contratuais. Todavia, a distorção desse mecanismo por agentes fraudulentos deu origem ao denominado golpe da falsa portabilidade, fenômeno que se alastra de forma preocupante no sistema financeiro nacional.
O tema assume especial relevância jurídica não apenas pela frequência com que ocorre, mas pela reiterada tentativa das instituições financeiras de se eximirem de responsabilidade, imputando a fraude exclusivamente a terceiros ou ao próprio consumidor. Tal postura, como se demonstrará, contraria frontalmente o microssistema de proteção consumerista e o entendimento consolidado dos tribunais.
2. Dinâmica do golpe da falsa portabilidade
Conforme detalhado, o golpe da falsa portabilidade geralmente se desenvolve em etapas bem definidas. Inicialmente, o consumidor é contatado por supostos representantes de instituições financeiras ou correspondentes bancários, por meio de telefone, aplicativos de mensagens ou redes sociais, sendo-lhe oferecida a quitação ou migração de empréstimo com redução significativa de parcelas ou juros.
Na sequência, ocorre a solicitação de dados pessoais e bancários sensíveis, muitas vezes acompanhada do envio de documentos, selfies e até assinatura digital. Em diversos casos, o consumidor chega a receber valores em sua conta, acreditando tratar-se de parte da operação de portabilidade. Posteriormente, é orientado a transferir tais quantias, sob o pretexto de quitação do contrato anterior.
O desfecho é invariavelmente lesivo: o consumidor descobre a existência de novo empréstimo em seu nome, sem que tenha havido portabilidade alguma, passando a sofrer descontos indevidos, comprometimento de renda e abalo psicológico relevante.
3. Responsabilidade objetiva das instituições financeiras
A responsabilidade das instituições financeiras nos casos de falsa portabilidade encontra amparo direto no art. 14 do CDC, que consagra a responsabilidade objetiva do fornecedor pelos danos causados em decorrência de falha na prestação do serviço, independentemente de culpa.
A súmula 479 do STJ consolidou esse entendimento ao afirmar que os bancos respondem objetivamente pelos danos decorrentes de fraudes praticadas por terceiros no âmbito de operações bancárias. Trata-se de fortuito interno, inerente ao risco da atividade econômica desenvolvida.
É juridicamente insustentável, portanto, a alegação defensiva de culpa exclusiva de terceiros ou do consumidor, sobretudo quando evidenciada a fragilidade dos mecanismos de segurança, a atuação de correspondentes bancários não fiscalizados ou o vazamento de dados sensíveis.
4. Vício de consentimento e nulidade do negócio jurídico
Sob a ótica do CC, o negócio jurídico firmado em contexto de falsa portabilidade encontra-se maculado por vício de consentimento, notadamente erro substancial e dolo, nos termos dos arts. 138, 145 e 171, inciso II.
O consumidor não manifesta vontade livre e consciente para contratar novo empréstimo, mas age induzido por informação falsa, acreditando estar apenas migrando obrigação preexistente. Nesses casos, a jurisprudência tem reconhecido a nulidade ou anulabilidade do contrato, determinando a inexigibilidade do débito e a restituição dos valores descontados.
5. Proteção de dados pessoais e falha na segurança da informação
A Lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18) acrescenta relevante camada de responsabilidade às instituições financeiras. O tratamento de dados pessoais e sensíveis deve observar os princípios da segurança, prevenção e responsabilização.
Quando dados do consumidor são utilizados para a prática de fraudes, presume-se, salvo prova robusta em contrário, falha nos sistemas de segurança da informação. O art. 42 da LGPD impõe ao controlador o dever de indenizar danos patrimoniais, morais, individuais ou coletivos decorrentes de violação à legislação de proteção de dados.
6. Consequências jurídicas reconhecidas pela jurisprudência
O material examinado evidencia que os tribunais têm reiteradamente reconhecido, nos casos de falsa portabilidade:
- A aplicação do CDC;
- A responsabilidade objetiva das instituições financeiras;
- A nulidade do contrato fraudulento;
- A suspensão imediata dos descontos;
- A repetição do indébito, muitas vezes em dobro; e
- A condenação ao pagamento de indenização por danos morais, frequentemente reconhecidos como in re ipsa, diante da gravidade da violação e do impacto na esfera pessoal e financeira da vítima.
7. Considerações finais
O golpe da falsa portabilidade revela, de forma contundente, a vulnerabilidade estrutural do consumidor frente ao poder econômico e tecnológico das instituições financeiras. A insistência em transferir ao consumidor o ônus da fraude não apenas afronta o ordenamento jurídico, como contribui para a perpetuação de práticas abusivas e para o descrédito do sistema financeiro.
Entende-se, de forma crítica e fundamentada, que o enfrentamento eficaz desse tipo de fraude passa pelo rigor na responsabilização dos bancos, pelo fortalecimento dos mecanismos de compliance e segurança da informação e pela atuação firme do Poder Judiciário na proteção do consumidor. Somente assim será possível transformar a portabilidade de crédito em instrumento legítimo de equilíbrio contratual, e não em vetor de endividamento e violação de direitos fundamentais.


