O Papai Noel e a desigualdade estrutural
A Constituição promete dignidade; o contracheque, infelizmente, não acompanha a retórica.
terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Atualizado às 13:46
No fim da tarde carioca, quando o sol parece desistir antes de todos nós, avistei pela rua uma figura que, embora presente no cotidiano urbano, permanece sistematicamente excluída do rol dos sujeitos que o Estado reconhece como titulares de direitos.
À luz da Constituição, seria destinatário de proteção integral; na prática, segue invisível. E ali, diante de mim, estava a prova viva de que erradicar a pobreza - objetivo fundamental da República, expresso no art. 3º, III - permanece firme e forte. no papel, onde nunca incomodou ninguém.
É um daqueles personagens que a cidade insiste em fingir que não vê. Empurrava um carrinho de duas rodas abarrotado de plásticos, papelões, restos de um mundo que consome sem pensar e descarta sem culpa: verdadeira prova material da desigualdade estrutural que o poder público insiste em não enfrentar, apesar de a Constituição garantir, com toda pompa, a valorização do trabalho humano no art. 170.
No mundo real, porém, o trabalho humano continua sendo valorizado apenas quando convém ao lucro. A renda média do trabalhador brasileiro gira em torno de 3 mil reais, um valor que beira o irônico quando lembramos que figuramos entre as maiores economias do planeta.
A Constituição promete dignidade; o contracheque, infelizmente, não acompanha a retórica.
Era mais um trabalhador informal, integrante de uma categoria que, embora essencial à engrenagem urbana, raramente é contemplada nas estatísticas oficiais ou nas políticas públicas que deveriam assegurar a eficácia plena do art. 1º, III, da Constituição: a dignidade da pessoa humana.
Também ali se revelava a omissão estatal em garantir os direitos sociais previstos no art. 6º - direitos que, ao que tudo indica, permanecem em estado de hibernação normativa, aguardando algum milagre administrativo ou, quem sabe, uma PEC da boa vontade.
Ele caminhava apressada. A pressa não era escolha; era sobrevivência. O carrinho rangia atrás dela como quem tenta acompanhar um ritmo que não lhe pertence. Quando percebi o pequeno Papai Noel balançando na traseira, corri para registrar o fato, quase como quem lavra um auto de constatação de um fato social juridicamente relevante, embora eu soubesse que, mesmo com prova documental, dificilmente haveria autoridade competente para apreciar o caso.
Fotografei através do celular, quase no impulso, como se temesse que aquela cena, tão frágil e tão poderosa, pudesse se desfazer no ar antes que eu a capturasse.
No fim das contas, aquela fotografia não era sobre Natal. Era sobre desigualdade. Sobre resiliência. Sobre a beleza inesperada que surge quando alguém, mesmo esmagado pela realidade, ainda encontra espaço para um gesto simbólico.
Um gesto que diz: "Eu continuo aqui." Um enfeite barato, talvez resgatado do lixo que ele mesmo recolhe. Um detalhe quase invisível, e, ainda assim, impossível de ignorar, como uma petição silenciosa por reconhecimento que jamais será distribuída a qualquer vara competente.
A cidade, indiferente, seguia seu fluxo. Carros buzinavam, motos costuravam o trânsito, pedestres desviavam dela como quem desvia de um obstáculo urbano, não de uma pessoa, não de um sujeito de direitos.
A pressa coletiva é sempre seletiva: corre-se para o trabalho, para o banco, para o mercado, mas nunca para enxergar quem está à margem.
E, no entanto, ali estava ela, empurrando um carrinho que carregava não apenas recicláveis, mas também a prova de que a esperança, às vezes, sobrevive nos lugares mais improváveis - apesar da omissão estatal que viola, diariamente, a Constituição, que promete uma ordem social fundada no bem-estar e na justiça.
Prometer é fácil...
Aquela figura vermelha e sorridente, símbolo máximo do consumo natalino, parecia deslocada ali. Ou talvez fosse justamente o contrário: talvez fosse ali que ele fizesse mais sentido. Porque, no fundo, aquele Papai Noel improvisado dizia mais sobre o Brasil do que qualquer discurso de fim de ano, e certamente mais do que muitos relatórios oficiais sobre pobreza e exclusão, sempre muito bem diagramados e absolutamente inofensivos.
Havia esperança naquele gesto. Uma esperança teimosa, quase insolente, que insiste em sobreviver mesmo quando tudo ao redor conspira para esmagá-la.
O enfeite não era um pedido de presente; era um lembrete de dignidade. Uma forma silenciosa de dizer: "Eu também faço parte do mundo, mesmo que o mundo finja que não."
E, no entanto, a ironia é inevitável. Sabemos - ele sabe - que Papai Noel não vai passar na sua casa. Nem na da imensa maioria dos brasileiros que vivem de salários que mal sustentam a própria fome.
O bom velhinho, afinal, só visita quem já tem o privilégio de não precisar dele. Para os demais, sobra o enfeite pendurado no carrinho, balançando como um lembrete de que o Natal, para muitos, é apenas mais um dia útil: sem direito a descanso remunerado, férias, décimo terceiro, FGTS ou qualquer outro benefício que o art. 7º promete com entusiasmo acadêmico.
Mas aquele pequeno Papai Noel pendurado no carrinho seguia balançando, firme, como quem se recusa a aceitar o roteiro. E talvez seja isso que nos salva: a capacidade de encontrar humanidade onde o país insiste em produzir invisibilidade.
Uma espécie de tutela antecipada da esperança, concedida liminarmente pela própria vida, sem necessidade de caução.
No fim das contas, a cena não era sobre Natal. Era sobre resistência. Sobre a beleza inesperada que surge quando alguém, mesmo esmagado pela desigualdade, ainda encontra espaço para um gesto simbólico.
Um gesto que diz: "Eu continuo aqui." E, enquanto houver gente assim, talvez ainda haja esperança - mesmo que ela venha pendurada num carrinho de duas rodas, sem previsão orçamentária.
A ironia, porém, é inevitável. Sabemos - ela sabe - que Papai Noel não vai passar na sua casa. Nem na dela. Nem na da imensa maioria dos brasileiros que vivem de salários que mal sustentam a própria fome. O bom velhinho, afinal, só visita quem já tem o privilégio de não precisar dele.
Para os demais, sobra o enfeite pendurado no carrinho, balançando como um lembrete de que o Natal, para muitos, é apenas mais um dia de trabalho - sem qualquer proteção social efetiva, apesar do art. 170 insistir na justiça social como fundamento da ordem econômica.
Insistir é fácil; cumprir é que dá trabalho...
Enquanto observava a cena, percebi que aquele pequeno boneco vermelho era quase um ato de resistência estética. Um gesto de quem, mesmo esmagado pela realidade, ainda encontra espaço para um símbolo.
Talvez ela o tenha encontrado no lixo. Talvez o tenha guardado de um outro Natal, de um tempo em que ainda havia crianças por perto, ou sonhos, ou ambos. Talvez nem saiba explicar por que o pendurou ali. Mas o fato é que pendurou. E isso basta para configurar o elemento subjetivo da resistência - ainda que o Estado jamais reconheça tal conduta como juridicamente relevante.
A fotografia que fiz não era sobre Natal. Era sobre desigualdade. Sobre resiliência. Sobre a capacidade humana de insistir em algum tipo de beleza, mesmo quando o mundo insiste em negá-la. Era sobre o contraste brutal entre o imaginário natalino - fartura, presentes, mesas cheias - e a realidade de quem empurra um carrinho para sobreviver.
Era sobre o país que produz invisíveis e depois finge surpresa quando eles aparecem na lente de um celular - como se fosse um fato novo nos autos, digno de despacho.
E, no entanto, havia algo de profundamente humano naquela imagem. Algo que escapava ao cinismo fácil. Porque, apesar de tudo, aquele Papai Noel continuava ali, firme, balançando como bandeira de resistência.
E talvez seja isso que nos salva: a capacidade de encontrar humanidade onde o país insiste em produzir indiferença - uma espécie de jurisprudência afetiva que insiste em sobreviver.
Enquanto ela se afastava, o boneco vermelho ainda tremulava, como se acenasse para mim. Não era um aceno de despedida, mas de alerta. Uma verdadeira intimação moral. Um lembrete de que, por trás de cada carrinho de recicláveis, há uma história que ninguém contou, uma vida que ninguém perguntou, uma luta que ninguém reconheceu.
E que, mesmo assim, segue - sem tutela estatal, sem amparo legal, sem sentença favorável.
Talvez a esperança brasileira seja exatamente isso: um Papai Noel pendurado num carrinho de duas rodas, atravessando a cidade desigual sem pedir licença. Uma esperança que não chega pela chaminé, mas pelo asfalto quente, pelas mãos calejadas, pela teimosia de quem insiste em existir.
E enquanto houver gente assim, talvez ainda haja esperança - mesmo que ela venha, silenciosa e improvável, balançando na traseira de um carrinho.
E talvez seja isso que reste a nós, espectadores dessa cidade que insiste em produzir invisíveis: reconhecer que, entre a norma e a rua, há um abismo que nenhum discurso oficial preenche.
Ainda assim, seguimos - uns empurrando carrinhos, outros empurrando palavras - tentando manter acesa a pequena chama da humanidade. Que ela não se apague.
Feliz Natal aos leitores do Migalhas


