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Criações por IA e direitos autorais: O risco de o Brasil seguir os EUA

Decretar de imediato o domínio público é a solução para controlar os "criadores" de inteligência artificial? Ou essa medida pode sucatear de vez a área dos direitos autorais?

terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:21

Do nada ao tudo, a explosão generativa

O advento e a rápida difusão de sistemas de inteligência artificial generativa, como ChatGPT, Midjourney, DALL·E, entre outros, marcaram um ponto de inflexão no campo da criação intelectual. Esses modelos, estruturados a partir de redes neurais e treinados com vastos volumes de dados obtidos, sem fonte declarada ou transparente, de diversas obras literárias, visuais e audiovisuais, passaram a produzir textos, imagens, músicas e vídeos com níveis de sofisticação e coerência que, até recentemente, eram atribuíveis apenas à atuação humana relativamente ou ativamente profissional. Trata-se de uma tecnologia disruptiva, que tem desafiado os paradigmas clássicos da autoria e da criatividade e exige, portanto, uma resposta jurídica adequada, especialmente no campo dos direitos autorais.

Nesse contexto, observou-se uma verdadeira explosão de conteúdos gerados total ou parcialmente por sistemas de IA, que passaram a ocupar espaços antes reservados a artistas, escritores, ilustradores, compositores e demais agentes da economia criativa. Tais obras, ora indistinguíveis daquelas concebidas por humanos, ora assumidamente artificiais, são hoje consumidas em larga escala, seja em redes sociais, plataformas de streaming ou ambientes corporativos. A ascensão dessa nova categoria de obras implica desafios não apenas tecnológicos, mas também jurídicos, econômicos e éticos, sobretudo no que diz respeito à sua titularidade e à proteção que lhes pode ou não ser conferida.

Diante desse cenário, emerge um problema central: a atual ausência de proteção jurídica específica para obras criadas integralmente por inteligência artificial, sem intervenção criativa humana relevante ou profissional. Em países como os Estados Unidos, decisões judiciais e orientações administrativas têm negado a essas criações a possibilidade de registro e proteção autoral, com fundamento na exigência histórica de autoria humana. Caso tal entendimento venha a ser replicado no Brasil, sem as devidas adaptações à realidade local e à evolução do conceito de criatividade, corre-se o risco de criar uma nova modalidade de "apropriação indevida" da criação intelectual alheia, dando margem para uma exploração que só vai gerar dividendos para o seu "proprietário", abrindo brechas para insegurança jurídica e desequilíbrios concorrenciais no ambiente digital.

Caso Stephen Thaler v. Shira Perlmutter (USCO) e o entendimento do domínio público nos EUA

Stephen Thaler submeteu um pedido de registro de uma obra visual intitulada "A Recent Entrance to Paradise", afirmando que foi gerada por um sistema de IA chamado Creativity Machine, sem qualquer intervenção humana. Ele solicitava que os direitos autorais fossem registrados em nome do próprio sistema de IA ou em seu nome como proprietário da máquina e responsável pelo "prompt". A juíza Beryl A. Howel decidiu que:

"Direitos autorais existem para proteger obras de autoria humana. [...] Em nenhuma circunstância, desde os primórdios do copyright, se reconheceu a proteção a obras criadas por não-humanos."

Isso reafirma a posição do Escritório de Direitos Autorais dos EUA (USCO), que já havia recusado o registro anteriormente. A corte sustentou que a autoria humana é um requisito fundamental para a proteção autoral sob a lei americana. A consequencia direta dessa decisão é de que se uma obra for criada inteiramente por IA, sem intervenção humana significativa, ela não pode ser protegida por copyright nos EUA e nos demais países que usem direito comparado.

O risco do domínio público como solução generalizada

Como não existe proteção, ela pode ser considerada de domínio público. Um dos aspectos mais sensíveis do atual debate sobre a proteção de obras geradas por inteligência artificial reside no fato de que tais sistemas não criam ex nihilo. Pelo contrário, sua capacidade de gerar texto, imagem, som ou vídeo depende do treinamento em bases de dados, repisa-se, não indentificáveis, compostas majoritariamente por criações humanas pré-existentes, muitas delas protegidas por direitos autorais. Ou seja, o "aprendizado" da IA se dá sobre repertórios culturais e artísticos produzidos ao longo do tempo por artistas reais, cujos estilos, vozes, traços, ritmos e formas de expressão alimentam os algoritmos que, posteriormente, reproduzem ou imitam tais características em novas obras. Essa realidade compromete frontalmente o argumento de neutralidade tecnológica, que tenta equiparar a IA a uma mera ferramenta sem implicações jurídicas autorais.

Nos Estados Unidos, o entendimento consolidado, especialmente a partir do caso Thaler v. Perlmutter, foi no sentido de que obras criadas inteiramente por sistemas de IA, sem intervenção humana relevante, não podem ser objeto de proteção autoral. Em consequência, tais obras caem automaticamente em domínio público. Essa solução, embora juridicamente elegante por sua fidelidade ao critério da autoria humana, pode ter efeitos deletérios no ecossistema criativo, ao ignorar que as chamadas "criações da máquina" derivam de matrizes humanas invisibilizadas, cujas contribuições foram diluídas no processo de treinamento algorítmico. Jogar no domínio público obras que, na prática, são reconfigurações de milhões de obras protegidas, sem compensar ou reconhecer os autores reais que integraram o treinamento, é legitimar uma forma sofisticada de apropriação criativa.

Essa lógica pode gerar um grave enfraquecimento do artista real, especialmente os menos consagrados, que dificilmente terão condições técnicas ou jurídicas de identificar que sua obra foi utilizada no treinamento de uma IA. A ausência de transparência nos bancos de dados utilizados pelas grandes plataformas impede qualquer tentativa razoável de rastreamento e atribuição. Ao mesmo tempo, permite que conglomerados de mídia e empresas de tecnologia produzam conteúdos derivados da estética e da técnica desses artistas, sem remuneração, sem crédito e sem responsabilidade legal. Caso o entendimento norte-americano seja replicado no Brasil, corre-se o risco de institucionalizar um modelo de exploração imaterial no qual o artista humano é reduzido à matéria-prima estatística de um processo criativo automatizado, mas lucrativo, que lhe nega qualquer tipo de retribuição.

Além disso, a aplicação cega do conceito de domínio público nesses casos pode favorecer um processo de concentração de mercado, em que apenas as grandes empresas tecnológicas, com poder computacional e acesso privilegiado a dados, conseguirão criar e monetizar conteúdo em escala. O domínio público, originalmente concebido como espaço de liberdade e circulação do conhecimento, poderá ser instrumentalizado como escudo jurídico para exploração massiva e não remunerada de expressões culturais humanas, agravando desigualdades e precarizando ainda mais a cadeia produtiva da cultura. Sem mecanismos que assegurem transparência nos dados utilizados, rastreabilidade das influências e redistribuição de valor, a adoção acrítica do modelo norte-americano pode minar não apenas os direitos autorais, mas a própria sustentabilidade econômica da criação artística no país.

A discussão brasileira: entre o silêncio normativo e a omissão regulatória

No Brasil, o tratamento jurídico das obras geradas por inteligência artificial ainda é marcado por um silêncio normativo significativo. A lei de direitos autorais (lei 9.610/1998 não contempla a possibilidade de autoria não humana, e permanece ancorada em uma concepção antropocêntrica da criação intelectual. Conforme seu art. 11, "Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica", o que, à primeira vista, excluiria qualquer possibilidade de titularidade originária por parte de entidades não humanas, como agentes de IA. Essa limitação, embora coerente com a tradição dogmática do direito autoral brasileiro, mostra-se cada vez mais tensionada pelos avanços tecnológicos e pelas novas formas de produção simbólica.

O debate institucional, por sua vez, tem avançado de forma tímida. O PL 2.338/23, que busca estabelecer o Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil, menciona temas como responsabilidade civil, governança algorítmica e padrões de segurança, mas omite qualquer discussão substancial sobre propriedade intelectual. Da mesma forma, nem o Poder Executivo, nem o Congresso Nacional, tampouco o INPI ou a Biblioteca Nacional apresentaram até o momento propostas concretas de regulação sobre direitos autorais em obras geradas por IA. O vácuo normativo tem sido parcialmente preenchido por iniciativas acadêmicas e debates em comissões da OAB, mas ainda sem força vinculante ou efeito regulatório prático.

Doutrinariamente, observa-se uma divisão: enquanto alguns autores sustentam que a exigência de autoria humana deva ser mantida como cláusula pétrea da proteção autoral (sob o risco de se perder o vínculo entre criatividade e subjetividade), outros defendem a criação de um regime sui generis, inspirado em modelos como o dos direitos sobre bancos de dados (diretiva 96/9/CE) ou topografias de circuitos integrados. Essa proposta buscaria assegurar algum tipo de proteção patrimonial ou direito exclusivo ao programador, à empresa responsável pela IA ou mesmo ao usuário que tenha direcionado criativamente o sistema. No entanto, qualquer proposta nesse sentido dependerá de uma escolha política e legislativa clara: ou o Brasil adapta sua concepção clássica de autoria à era da computação criativa, ou corre o risco de importar decisões estrangeiras sem avaliar suas repercussões internas.

A ausência de parâmetros legais abre caminho para decisões judiciais casuísticas e contraditórias. Já se registram, nos tribunais, ações que envolvem deepfakes, clones de voz gerados por IA, manipulação de imagem e produção de conteúdo automatizado em redes sociais, mas quase todas essas demandas são julgadas com base em analogias imperfeitas, como violação de imagem, uso indevido de marca ou responsabilidade civil genérica. Não há jurisprudência consolidada no país sobre a titularidade de obras produzidas por IA, tampouco diretrizes específicas emitidas pelo ECAD - Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, pela Ancine ou pela Biblioteca Nacional. Essa lacuna institucional favorece os interesses de grandes conglomerados tecnológicos que operam em ambiente regulatório frouxo, podendo explorar comercialmente criações algorítmicas sem qualquer retribuição aos artistas humanos que, direta ou indiretamente, alimentaram os modelos.

Atores e atrizes em dublagem na vanguarda da proteção de seus direitos

Em um cenário jurídico ainda permeado por incertezas quanto à titularidade de obras geradas por inteligência artificial, os atores e atrizes da dublagem brasileira emergem como protagonistas na vanguarda da proteção de seus direitos. Enquanto nos Estados Unidos se consolida o entendimento de que criações puramente produzidas por IA devem cair automaticamente em domínio público, desconsiderando que essas tecnologias se alimentam de bases de dados compostas por obras humanas, o setor da dublagem no Brasil reage de forma articulada e propositiva. Há em tramitação um PL (4041/25 - autoria dep. Leo Prates) e no Senado um projeto de iniciativa oopular (sugestão 7/25) para proteção da dublagem brasileira que não apenas reconhece a especificidade artística da voz e da interpretação como manifestação individual protegida, mas também antecipa os riscos associados à desregulamentação: a utilização de vozes sintéticas treinadas sobre performances reais, sem consentimento e sem remuneração.

Ao contrário da lógica americana, que evita atribuir titularidade às criações algorítmicas sob o argumento de ausência de autoria humana, a proposta legislativa brasileira busca reforçar o vínculo entre a obra dublada e o artista que lhe dá vida. Nesse sentido, a dublagem torna-se um caso paradigmático de resistência à diluição do valor do trabalho humano em um contexto de automatização massiva. O projeto rejeita expressamente a possibilidade de substituição integral do dublador por sistemas de IA, ainda que treinados com a sua própria voz, e propõe, em resposta, a positivação de direitos conexos exclusivos, mesmo após a morte do artista, em favor de seus herdeiros. Essa posição rompe com a narrativa de que, na ausência de autoria identificável, a única saída é a liberação irrestrita para o domínio público, o que, como demonstrado, favorece os grandes conglomerados tecnológicos e midiáticos em detrimento dos criadores reais.

A regulamentação proposta pela Associação de Dubladores Dário de Castro, portanto, não apenas protege uma categoria profissional estratégica da indústria cultural, mas oferece um modelo de enfrentamento normativo à crise de autoria que se avizinha. Ao impedir a exploração da identidade vocal por meio de sistemas automatizados e ao exigir o uso de mão de obra artística nacional qualificada, o projeto antecipa questões que ainda estão em aberto em outras esferas do direito autoral. É uma reação institucional que demonstra como os profissionais da dublagem compreenderam, com clareza, que o vazio legislativo sobre IA e propriedade intelectual pode ser instrumentalizado para apagar a autoria humana e privatizar, sob o pretexto de domínio público, um patrimônio imaterial construído a partir de talento, trabalho e cultura. Nesse sentido, a dublagem brasileira se apresenta como um dos poucos segmentos capazes de tensionar, desde já, os limites dessa nova fronteira tecnológica.

Conclusão: o Brasil entre a proteção da criatividade humana e a captuea algorítimica

A adoção, no Brasil, do entendimento norte-americano que nega proteção autoral a obras geradas por inteligência artificial, relegando-as ao domínio público, poderia institucionalizar uma forma de apropriação não remunerada das expressões culturais humanas. Dado que os sistemas de IA são treinados com vastos repositórios de obras criadas por artistas reais, a ausência de mecanismos de rastreabilidade e compensação justa favorece a exploração comercial dessas criações por grandes empresas tecnológicas, sem retorno financeiro ou reconhecimento para os autores originais.

A legislação brasileira, atualmente, não oferece respostas claras a essa problemática. A lei de direitos autorais (lei 9.610/1998) permanece centrada na figura do autor humano, enquanto propostas legislativas recentes, como o PL 2.338/23, ainda não abordam de forma abrangente os desafios impostos pela IA no campo da propriedade intelectual. Essa lacuna normativa coloca em risco a sustentabilidade econômica da cadeia criativa nacional e a proteção dos direitos dos artistas.

Para evitar que o Brasil se torne um terreno fértil para a exploração desenfreada de obras geradas por IA, é imperativo que o legislador estabeleça diretrizes claras que reconheçam e protejam a contribuição humana no processo criativo, mesmo quando mediado por tecnologias avançadas. Isso inclui a implementação de mecanismos de transparência nos dados utilizados para treinamento de IA, a possibilidade de rastreamento das obras originais e a garantia de remuneração justa para os criadores cujas obras alimentam esses sistemas.

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Referências

Artigo "Direitos autorais e IA: a quem pertence a obra criada pela máquina?": Discussão sobre a titularidade de obras geradas por IA. https://www.conjur.com.br/2024-ago-05/direitos-autorais-e-inteligencia-artificial-a-quem-pertence-a-obra-criada-pela-maquina/

Artigo "Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23": Análise das implicações do PL 2.338/2023 sobre os direitos autorais. https://www.migalhas.com.br/depeso/422014/ia-e-direitos-autorais-o-que-diz-o-pl-2-338-23-aprovado-pelo-senado

Caso STEPHEN THALER V. SHIRA PERLMUTTER (USCO). Chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://media.cadc.uscourts.gov/opinions/docs/2025/03/23-5233.pdf

Dicionário PRIBERAM. https://dicionario.priberam.org/ex%20nihilo%20nihil

Directiva 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março de 1996, relativa à protecção jurídica das bases de dados. https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A31996L0009

Diretrizes do USCO sobre obras criadas com IA, Publicadas em março de 2023  (Federal Register / Vol. 88, No. 50 / March 16, 2023). https://www.govinfo.gov/content/pkg/FR-2023-03-16/pdf/2023-05321.pdf

Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998): Estabelece os direitos autorais no Brasil, definindo o autor como pessoa física. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm

Projeto de Lei nº 2.338/2023: Propõe o marco regulatório da inteligência artificial no Brasil, incluindo aspectos relacionados à proteção de direitos autorais. https://www.migalhas.com.br/depeso/422014/ia-e-direitos-autorais-o-que-diz-o-pl-2-338-23-aprovado-pelo-senado

Projeto de Lei nº 1.473/2023: Obriga empresas de IA a disponibilizarem ferramentas para autores restringirem o uso de seus conteúdos pelos algoritmos. https://www.camara.leg.br/noticias/1115343-comissao-aprova-projeto-que-obriga-empresa-de-inteligencia-artificial-a-oferecer-ferramenta-para-proteger-direito-autoral/

Projeto de Lei nº 2.338/2023 - Texto Completo: Disponível no site do Senado Federal. https://www.camara.leg.br/noticias/1115343-comissao-aprova-projeto-que-obriga-empresa-de-inteligencia-artificial-a-oferecer-ferramenta-para-proteger-direito-autoral/

Lucas Sérvio Gonçalves Ramadas

VIP Lucas Sérvio Gonçalves Ramadas

Doutorando e Mestre em Direito. Professor. Advogado, escritor e consultor jurídico. Presidente da Comissão de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual da OAB/DF.

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