A tributação de dividendos no Brasil: Impactos fiscais, tensões societárias e planejamento diante da lei 15.270/25
A norma sobre dividendos retoma a tributação a partir de 2026, exigindo planejamento rigoroso e deliberações antecipadas para preservar isenção e evitar riscos societários.
terça-feira, 23 de dezembro de 2025
Atualizado em 22 de dezembro de 2025 14:13
A tributação de dividendos possui trajetória marcada por profundas alterações no direito tributário brasileiro. A partir da lei 9.249/1995, os dividendos pagos a pessoas físicas e jurídicas residentes foram integralmente isentos, inaugurando um modelo que influenciou a política econômica e a estruturação societária no país por quase três décadas.
Com a edição da lei 15.270/25, publicada em 27 de novembro de 2025, inicia-se uma nova etapa da chamada reforma fatiada da renda, que compreende as sucessivas alterações legislativas promovidas no sistema de tributação da renda. A lei cria o IRPFM - Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo e estabelece que os dividendos distribuídos a partir de 1º de janeiro de 2026 estarão sujeitos à tributação, ressalvadas as hipóteses submetidas à regra de transição.
A relevância prática dessas alterações é acentuada pela necessidade de reorganização societária e financeira das empresas brasileiras. O presente artigo analisa os principais pontos da lei 15.270/25, sua interface com o regime societário, e as estratégias de planejamento, especialmente para empresas sem liquidez imediata, que deverão ser adotadas para mitigar os impactos da nova tributação.
1. A regra de transição prevista na lei 15.270/25:
A partir de 1º de janeiro de 2026, os dividendos pagos, creditados, empregados ou entregues a pessoas físicas e jurídicas deixam de gozar de isenção plena e passam a integrar a base de incidência do novo IRPFM - Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo, observadas as regras e limites definidos na legislação.
Como forma de mitigar os impactos econômicos e jurídicos dessa mudança abrupta, sobretudo em relação a lucros já apurados sob o regime de isenção, o legislador instituiu um regime de transição específico aplicável ao chamado estoque de lucros acumulados até 31 de dezembro de 2025. Nesse sentido, a lei 15.270/25 estabelece que os lucros apurados até o final do exercício de 2025 poderão ser distribuídos sem a incidência da nova tributação sobre dividendos, desde que observadas, de forma cumulativa, três condições essenciais:
- apuração do lucro até 2025;
- deliberação societária sobre sua distribuição até 31 de dezembro de 2025;
- pagamento, crédito, emprego ou entrega entre 2026 e 2028, nos exatos termos deliberados.
Esse desenho normativo confere à regra de transição um caráter profundamente inovador. Pela primeira vez, a legislação autoriza, de forma explícita: (i) que os dividendos deliberados sejam pagos de maneira parcelada ao longo de até três exercícios subsequentes; (ii) que todo o cronograma de pagamentos seja definido antecipadamente, ainda em 2025; e (iii) que a isenção tributária seja preservada mesmo quando a sociedade não disponha de liquidez imediata no momento da deliberação.
Com isso, a lei 15.270/25 rompe com a tradicional associação entre deliberação e pagamento imediato, introduzindo uma lógica de planejamento prospectivo, na qual a decisão societária assume papel determinante para fins fiscais. A regra de transição, portanto, não se limita a suavizar os efeitos da nova tributação, mas estimula comportamentos estratégicos, incentivando as empresas a anteciparem deliberações de distribuição de lucros ainda em 2025, mesmo que o desembolso financeiro ocorra apenas nos anos seguintes.
2. A incompatibilidade estrutural da regra de transição com a lei das sociedades por ações:
A lei 6.404/1976 (lei das sociedades por ações) foi concebida a partir de pilares clássicos do direito societário, entre os quais se destacam a prudência na distribuição de resultados, a periodicidade da apuração do lucro e a vinculação direta entre resultado efetivamente apurado e deliberação de dividendos. Trata-se de um sistema que busca preservar a integridade do capital social, a proteção dos credores e a continuidade da empresa, impondo limites objetivos à atuação dos administradores e da assembleia geral.
Nesse contexto, a regra de transição introduzida pela lei 15.270/25 gera uma tensão relevante com o regime societário das S.A., ao autorizar a deliberação, até 31 de dezembro de 2025, de dividendos cujo pagamento poderá ocorrer entre 2026 e 2028, ainda que inexistente, à época da deliberação, a apuração de resultados dos exercícios futuros. Essa autorização rompe, ao menos em parte, a lógica tradicional da lei das S.A., segundo a qual a distribuição de dividendos pressupõe lucro líquido efetivamente apurado em balanço regularmente levantado, após as destinações legais e estatutárias.
Embora a lei 15.270/25 limite formalmente a regra de transição aos lucros acumulados até 2025, o seu efeito prático é permitir que a assembleia projete obrigações societárias para exercícios futuros, dissociando o momento da deliberação do momento da efetiva geração de caixa. Essa dissociação não encontra paralelo explícito na Lei das S.A., que, como regra, condiciona a distribuição à existência de lucro disponível no exercício correspondente e veda qualquer forma de distribuição que comprometa o capital social ou as reservas obrigatórias.
A incompatibilidade, portanto, não se manifesta apenas em nível conceitual, mas sobretudo em nível operacional e de governança. Ao deliberar dividendos com pagamento diferido por até três anos, a companhia assume uma obrigação financeira futura que poderá colidir com os deveres legais dos administradores previstos nos artigos 153 a 157 da Lei das S.A., especialmente no que se refere ao dever de diligência, ao dever de lealdade e à preservação da solvência da companhia.
A decisão assemblear, ainda que amparada pela legislação tributária, não exime os administradores de eventual responsabilidade se, no curso do tempo, a execução do cronograma de pagamentos vier a comprometer a situação financeira da sociedade.
Além disso, a lei das S.A. não foi estruturada para acomodar, de forma natural, dividendos "pré-deliberados" com base em projeções futuras de liquidez. A ausência de previsão expressa para esse tipo de obrigação cria uma zona cinzenta, na qual a legalidade tributária da operação não elimina os riscos societários subjacentes. Em outras palavras, a regra de transição resolve o problema fiscal, mas transfere para o plano societário o ônus de demonstrar que a deliberação não violou princípios fundamentais do direito das companhias.
Diante desse cenário, a compatibilização entre os dois regimes exige uma leitura sistemática e cautelosa. Para que a deliberação realizada em 2025 seja defensável sob a ótica da Lei das S.A., torna-se imprescindível que a companhia demonstre, de forma robusta e documentada: (i) a existência de lucros efetivamente acumulados e distribuíveis até o exercício de 2025; (ii) a razoável previsibilidade de geração de caixa suficiente para honrar os pagamentos até 2028; e (iii) a inexistência de risco de descapitalização, insolvência ou prejuízo à atividade empresarial.
Assim, a regra de transição da lei 15.270/25, embora válida e eficaz do ponto de vista tributário, não se integra automaticamente ao regime societário das S.A. Ao contrário, ela impõe uma camada adicional de complexidade à governança corporativa, exigindo dos administradores e acionistas um nível elevado de cautela técnica, planejamento financeiro e formalização documental, sob pena de a busca pela isenção fiscal resultar em questionamentos societários relevantes no futuro.
3. Planejamento e conformidade diante da corrida contra o tempo em 2025:
A proximidade do encerramento do exercício de 2025 desencadeou um movimento intenso e generalizado entre as empresas brasileiras, que passaram a revisitar, em caráter emergencial, suas estruturas contábeis, societárias e financeiras com o objetivo de garantir o enquadramento no regime de transição instituído pela lei 15.270/25.
Isso porque a isenção dos dividendos referentes ao estoque de lucros apurados até 31 de dezembro de 2025 está condicionada a atos formais que devem ser necessariamente praticados ainda em 2025, sob pena de perda definitiva do benefício fiscal. A consequência prática é clara: o planejamento deixou de ser apenas estratégico e passou a ser também cronológico, exigindo decisões rápidas, tecnicamente fundamentadas e juridicamente bem documentadas.
Nesse contexto, as empresas têm concentrado seus esforços em quatro eixos principais.
O primeiro eixo consiste na verificação contábil rigorosa da existência de lucros efetivamente distribuíveis. Não se trata apenas de identificar saldos positivos em contas de lucros acumulados ou reservas, mas de confirmar que tais valores são juridicamente aptos à distribuição, após observadas as destinações legais, estatutárias e eventuais restrições contratuais. Esse levantamento exige interação intensa entre contabilidade, jurídico e administração, muitas vezes demandando ajustes contábeis, reclassificações e revisão de demonstrações financeiras.
O segundo eixo é a deliberação societária tempestiva, que se tornou o verdadeiro marco jurídico da isenção, já que impôs que a assembleia ou reunião de sócios realizada até 31 de dezembro de 2025 deve ser precisa, completa e tecnicamente defensável. Não basta aprovar genericamente a distribuição de dividendos, a deliberação deve, de forma expressa e detalhada, indicar: (i) o exercício ou exercícios de origem dos lucros; (ii) o valor total aprovado para distribuição; (iii) o critério de rateio entre sócios ou acionistas; (iv) o cronograma de pagamentos, inclusive com parcelamento até 2028, quando aplicável; e (v) a fundamentação econômica que demonstre a capacidade futura da empresa de honrar o compromisso sem comprometer sua solvência.
O terceiro eixo envolve o registro da deliberação na Junta Comercial, que assume papel central como elemento probatório. Embora a validade da deliberação decorra do ato societário em si, o registro confere publicidade, data certa e segurança jurídica, funcionando como prova objetiva de que a decisão foi efetivamente tomada dentro do prazo legal.
Esses três eixos explicam por que, no último mês de 2025, empresas de todos os portes passaram a revisar estatutos, contratos sociais, políticas de dividendos e demonstrações financeiras. A corrida contra o tempo não é apenas uma reação à nova tributação, mas uma tentativa legítima de preservar um direito fiscal que se extinguirá com o simples decurso do prazo.
Além disso, o desafio se torna ainda mais sensível quando se analisa a situação das empresas que, embora possuam lucros acumulados até 2025, não dispõem de liquidez imediata para suportar pagamentos relevantes de dividendos. Essa realidade é comum não apenas entre pequenas e médias empresas, mas também em sociedades maiores, intensivas em capital ou em fase de expansão.
A própria lei 15.270/25, ao permitir que os valores deliberados sejam pagos entre 2026 e 2028, reconhece essa limitação prática e oferece uma solução juridicamente válida. O parcelamento autorizado cumpre função essencial de viabilização econômica da regra de transição, pois: (i) evita a descapitalização abrupta da empresa; (ii) permite o alinhamento dos pagamentos aos ciclos futuros de geração de caixa; e (iii) cria espaço para absorção de eventuais oscilações econômicas, desde que o cronograma aprovado seja respeitado.
Na prática, muitas empresas têm adotado uma postura pragmática: deliberam a distribuição dos dividendos ainda em 2025, registram contabilmente a obrigação como passivo futuro e estruturam mecanismos financeiros que permitam o cumprimento gradual do cronograma, sem sacrificar o capital de giro ou a continuidade operacional. O foco deixa de ser o pagamento imediato e passa a ser a construção de um compromisso juridicamente válido, financeiramente sustentável e fiscalmente eficiente.
Essa dinâmica evidencia que a corrida contra o tempo em 2025 não se resume a uma antecipação artificial de dividendos, mas representa um complexo exercício de planejamento integrado, no qual decisões societárias, contábeis e financeiras precisam convergir para assegurar a fruição legítima da isenção prevista no regime de transição.
4. Considerações finais:
A lei 15.270/25 inaugura um novo paradigma na tributação da renda no Brasil ao reintroduzir a incidência do imposto sobre dividendos a partir de 2026, encerrando um ciclo de quase trinta anos de isenção que moldou profundamente a estrutura societária, financeira e patrimonial das empresas brasileiras. A criação do IRPFM - Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo e a submissão dos dividendos à tributação representam não apenas uma alteração fiscal relevante, mas uma mudança estrutural na forma como os resultados empresariais passam a ser planejados e distribuídos.
Nesse contexto, a regra de transição aplicável ao estoque de lucros apurados até 31 de dezembro de 2025 assume papel central. Ao permitir que tais lucros sejam distribuídos sem tributação, desde que observados requisitos formais estritos e um cronograma previamente definido, o legislador buscou preservar a segurança jurídica e a confiança legítima dos contribuintes. Ao mesmo tempo, introduziu um modelo inovador, que dissocia o momento da deliberação societária do efetivo pagamento dos dividendos, deslocando para o campo da governança e do planejamento financeiro a responsabilidade pela execução dessa decisão ao longo dos exercícios subsequentes.
Como visto, essa inovação não se integra de forma automática e harmônica ao regime societário tradicional, especialmente à lei das sociedades por ações. A autorização para deliberações antecipadas com pagamentos diferidos tensiona princípios clássicos do direito societário, impondo aos administradores e acionistas um ônus adicional de cautela, diligência e documentação. A legalidade tributária da operação, por si só, não afasta os riscos societários decorrentes de eventual comprometimento da solvência, do capital social ou da continuidade operacional da empresa.
A intensa movimentação observada no mercado ao longo de 2025 evidencia que as empresas compreenderam a relevância - e a transitoriedade - da oportunidade criada pela nova lei. A corrida contra o tempo para deliberar, registrar e estruturar a distribuição dos lucros acumulados não configura mera antecipação artificial de dividendos, mas um exercício legítimo de planejamento integrado, no qual aspectos tributários, contábeis, societários e financeiros precisam convergir de forma consistente.
Diante desse cenário, o sucesso na fruição da isenção prevista no regime de transição dependerá menos da ousadia das estruturas adotadas e mais da qualidade da governança que as sustenta. A demonstração clara da origem dos lucros, a formalização adequada das deliberações, a publicidade dos atos societários, a coerência dos cronogramas de pagamento e a comprovação da capacidade financeira futura serão elementos decisivos para mitigar riscos e assegurar segurança jurídica.
Beatriz Giansante Moquiute
Advogada, graduada em direito, com ênfase em direito tributário, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2021), inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP) (2022). Pós-Graduada e especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) (2022-2023). Advogada e Líder do Departamento Tributário no TM Associados
Barbara Rita Lamarca Escapin
Advogada graduada em Direito pelas Faculdades Integradas Rio Branco - Fundação de Rotarianos de São Paulo, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil Seção São Paulo (OAB/SP) (2019). Formação em Educação Executiva/Compliance pela Fundação Getúlio Vargas (2022). Pós-graduada em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Autora de artigos. Advogada no TM Associados.



