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Emolumentos extrajudiciais: Uma distorção estrutural ignorada

A desatualização das faixas de conteúdo financeiro dos atos extrajudiciais e seus efeitos práticos em Pernambuco.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Atualizado às 13:52

A disciplina dos emolumentos devidos aos cartórios extrajudiciais pelos serviços notariais e de registro imobiliário em Pernambuco revela, há mais de duas décadas, uma distorção silenciosa e cumulativa, cujos efeitos econômicos recaem diretamente sobre os usuários desses serviços, sem que o tema tenha sido objeto de reflexão crítica mais ampla.

Trata-se de um problema estrutural, que não decorre propriamente do valor nominal dos emolumentos, mas da persistente defasagem das faixas de conteúdo financeiro que servem de base para a sua incidência.

Embora a análise aqui desenvolvida se concentre nos atos praticados pelos cartórios de notas e de registro imobiliário, essa mesma distorção estrutural também se manifesta, com contornos semelhantes, nos serviços de registro de títulos e documentos e nos serviços de protesto.

A lei estadual 12.148, de 26 de dezembro de 2001, ao adaptar as tabelas de emolumentos extrajudiciais às normas gerais estabelecidas pela lei federal 10.169/00, instituiu faixas progressivas de conteúdo financeiro para fins de incidência dos emolumentos, as quais refletiam, à época, o valor real das situações jurídicas então praticadas no mercado.

Naquele cenário de início do século XXI, para os atos notariais, consideravam-se negócios de até R$ 1.000,00 na menor faixa, alcançando-se o valor máximo de emolumentos a partir de negócios com conteúdo financeiro de R$ 210.000,01. Para os registros de imóveis, a faixa inicial era de até R$ 5.000,00, com incidência do valor máximo de emolumentos a partir de R$ 278.000,01.

Em ambos os casos, havia correspondência razoável entre o porte econômico do negócio jurídico e o efetivo custo do serviço cartorário, preservando-se uma lógica de progressividade e proporcionalidade compatível com a realidade econômica então vigente.

No contexto de 2001, os emolumentos notariais máximos de R$ 1.752,94, incidentes sobre negócios a partir de R$ 210.000,01, representavam, em termos aproximados, uma carga econômica de 0,83% sobre o valor do ato que formalizava a situação jurídica. Raciocínio semelhante se aplicava, com pequenas variações, aos registros imobiliários.

A estrutura normativa da tabela, com suas faixas de conteúdo financeiro e correspondentes valores dos emolumentos, portanto, não se mostrava desarrazoada nem excessiva, considerada a conjuntura econômica da época.

Ocorre que, desde então, embora os valores dos emolumentos tenham sido anualmente reajustados monetariamente, as faixas de conteúdo financeiro permaneceram rigorosamente inalteradas. O legislador estadual optou por corrigir apenas a contraprestação cobrada dos usuários dos serviços, mantendo congelada a base econômica que justifica a incidência progressiva e o atingimento do valor máximo.

Essa opção normativa produziu um fenômeno de indexação assimétrica: os valores cobrados pelos serviços delegados acompanham a inflação, enquanto o critério econômico que define a incidência dos emolumentos permanece atrelado a uma realidade que deixou de existir há mais de duas décadas.

A consequência prática dessa escolha legislativa é inequívoca e economicamente desfavorável aos usuários dos serviços.

Neste cenário, o ato 1.556, de 18 de dezembro de 2025, da presidência do TJ/PE, mais uma vez promoveu a correção monetária dos valores dos emolumentos, com vigência a partir de janeiro de 2026, ampliando ainda mais a distorção existente entre as faixas de conteúdo financeiro e os valores efetivamente cobrados.

A crítica aqui formulada não se dirige à atualização monetária dos emolumentos em si, que é legítima e esperada, mas à ausência de revisão periódica das faixas de conteúdo financeiro que lhes servem de enquadramento, circunstância que compromete a coerência do sistema e aprofunda a distorção ao longo do tempo.

Para os atos notariais, os emolumentos máximos passarão a ser de R$ 7.084,10, mantendo-se, contudo, o mesmo valor máximo da faixa de R$ 210.000,01. Isso significa que o percentual implícito de cobrança pelo serviço saltou de aproximadamente 0,83% sobre um negócio jurídico formalizado em 2001 para cerca de 3,37% sobre o mesmo valor em 2026, sem que qualquer modificação econômica tenha ocorrido na estrutura das faixas.

Sob outro ângulo, o próprio valor nominal dos emolumentos máximos sofreu um aumento efetivo de aproximadamente 304%, ao passar de R$ 1.752,94, em 2001, para R$ 7.084,10, em 2026, evidenciando que a elevação do efetivo custo do serviço não foi acompanhada por qualquer atualização da base econômica que legitima a incidência do valor máximo.

A distorção se torna ainda mais evidente quando se adota o raciocínio inverso. Se fosse preservada a mesma proporção e correlação econômica vigente em 2001, os atuais emolumentos máximos de R$ 7.084,10 somente seriam alcançados em negócios da ordem de R$ 853.506,02. Porém, continua incidindo integralmente sobre atos cujo valor financeiro são os mesmos R$ 210.000,01 fixados no início do século.

Em termos práticos, o teto dos emolumentos, que em 2001 incidia apenas sobre negócios de alto valor econômico para a época, passou, em 2026, a alcançar operações de valor significativamente menor, correspondentes a cerca de 25% do patamar econômico que, mantida a proporção histórica, justificaria hoje a incidência do teto.

Esse fenômeno não se restringe aos atos notariais. No âmbito dos registros de imóveis, a lógica é rigorosamente a mesma. As faixas econômicas permanecem limitadas a valores que, no mercado imobiliário contemporâneo, correspondem a imóveis de baixíssimo padrão ou sequer refletem transações urbanas ordinárias.

Em 2001, para negócios jurídicos envolvendo imóveis com valor a partir de R$ 278.000,01, os emolumentos máximos eram de R$ 1.168,77, o que representava aproximadamente 0,42% sobre o conteúdo financeiro do ato levado a registro imobiliário.

Já em 2026, os emolumentos máximos alcançam o expressivo valor de R$ 4.723,28, enquanto a faixa de incidência permanece a mesma de 2001, fixada em R$ 278.000,01, valor que se revela absolutamente irrisório diante da realidade do mercado imobiliário atual. Na prática, os emolumentos passam a representar cerca de 1,70% sobre um negócio imobiliário levado a registro por esse valor.

Para que fosse mantida a mesma paridade existente em 2001 - em que os emolumentos máximos correspondiam a aproximadamente 0,42% a partir do maior valor da faixa progressiva -, os valores máximos dos emolumentos previstos para 2026 somente deveriam incidir sobre registros envolvendo negócios imobiliários a partir de R$ 1.124.590,48.

Sob a perspectiva nominal, assim como ocorreu com os emolumentos notariais, os emolumentos registrais também experimentaram um aumento efetivo de aproximadamente 304%, evidenciando que a elevação do custo do serviço registral não foi acompanhada por qualquer atualização da base econômica que legitima a incidência do valor máximo. Esse descompasso aprofunda a ruptura entre o valor real dos negócios imobiliários atualmente praticados e os emolumentos exigidos dos usuários.

A título meramente exemplificativo, basta observar a evolução do mercado imobiliário em áreas consolidadas da capital pernambucana. Um apartamento de quatro quartos localizado na Avenida Boa Viagem, que no início dos anos 2000 podia ser adquirido por valor em torno de R$ 300.000,00, atualmente supera com facilidade a marca de R$ 1.500.000,00 para imóveis de padrão equivalente.

Trata-se de uma valorização expressiva do patrimônio imobiliário ao longo de pouco mais de duas décadas, que evidencia o completo descolamento entre a realidade econômica dos negócios jurídicos contemporâneos e as faixas de conteúdo financeiro dos emolumentos, ainda ancoradas em valores nominais fixados no início do século.

O resultado prático observado no cenário atual é a compressão artificial das faixas de conteúdo financeiro, que empurra a esmagadora maioria dos usuários dos serviços cartorários para o valor máximo dos emolumentos, esvaziando por completo a lógica de progressividade do modelo normativo originalmente concebido.

A diferenciação entre pequenos, médios e grandes negócios, para fins de formalização por meio dos serviços cartorários, deixa de existir, não por transformação do mercado, mas pela inércia normativa em promover a necessária atualização monetária das faixas de incidência dos emolumentos.

Sob o ponto de vista jurídico, essa dinâmica compromete princípios elementares que devem orientar a fixação e a cobrança dos emolumentos. Reconhecidos pela jurisprudência do STF como espécie tributária da modalidade taxa, os emolumentos se submetem aos limites constitucionais próprios da tributação, especialmente aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, que exigem adequada correlação entre o valor exigido do usuário e o serviço público delegado efetivamente prestado.

A distorção estrutural também tensiona os parâmetros estabelecidos pela lei federal 10.169/00, que, ao veicular normas gerais sobre a fixação dos emolumentos dos serviços notariais e de registro, pressupõe a observância de critérios de razoabilidade, proporcionalidade e adequada correlação entre o valor exigido do usuário e o conteúdo financeiro do ato praticado.

Embora a legislação federal confira aos Estados competência para disciplinar os emolumentos, essa autonomia não se exerce de forma irrestrita, devendo permanecer vinculada à coerência do modelo originalmente adotado.

A contraprestação exigida do usuário deve guardar relação minimamente coerente com o serviço público delegado efetivamente prestado e com o porte econômico do ato praticado, sob pena de se converter em barreira indevida ao acesso aos serviços notariais e registrais.

Ademais, a prática normativa adotada em Pernambuco ao longo dos anos produz uma dupla oneração do usuário. De um lado, bens e negócios jurídicos naturalmente se valorizam com o tempo, sobretudo no mercado imobiliário, o que conduz, de forma cada vez mais recorrente, os atos praticados às faixas superiores de conteúdo financeiro previstas na tabela. De outro, os valores dos emolumentos são periodicamente reajustados, sem que as faixas econômicas que definem esse enquadramento sofram qualquer atualização correspondente, fazendo com que o custo do serviço extrajudicial aumente independentemente da complexidade ou do vulto real do ato praticado.

Mantida essa dinâmica, a progressividade da tabela tende a se esvaziar por completo, uma vez que parcela cada vez maior dos atos cartorários passa a ser enquadrada diretamente no valor máximo das faixas de conteúdo financeiro.

O usuário, assim, passa a pagar mais não porque realiza atos mais complexos ou de maior vulto econômico em termos reais, mas porque o sistema deixou de refletir a realidade econômica que se propõe a regular.

Assim, a onerosidade gradativa e velada do custo dos serviços notariais e de registro imobiliário acaba por criar mais um obstáculo injustificado ao usuário, que se soma à própria burocracia já inerente ao sistema de formalização e regularização dos negócios jurídicos.

A elevação contínua dos emolumentos, dissociada da atualização das faixas de conteúdo financeiro, dificulta, em especial, a regularização imobiliária, na medida em que impõe custos cada vez mais elevados para a prática de atos que, em muitos casos, são indispensáveis à segurança jurídica e à circulação regular da propriedade. O resultado é a criação de uma barreira econômica adicional, sem correspondência com a complexidade do serviço prestado, que tende a afastar o usuário da regularização plena de seus direitos.

Surpreende que essa distorção, tão facilmente demonstrável por simples comparação matemática, não tenha despertado maior atenção no debate jurídico e institucional.

A atualização periódica das faixas de conteúdo financeiro não representa qualquer afronta à sustentabilidade dos serviços notariais e registrais. Ao contrário, restabelece a coerência interna do sistema e preserva a legitimidade social da cobrança.

A manutenção indefinida dos valores congelados das faixas há mais de duas décadas, combinada com a atualização exclusiva dos valores dos emolumentos, além de comprometer a lógica e afastar, de modo progressivo, a disciplina estadual da racionalidade subjacente à norma federal, resulta em um aumento indireto, permanente e pouco transparente do efetivo custo dos serviços extrajudiciais.

Trata-se de um problema que não se resolve com sucessivos reajustes apenas dos emolumentos, mas com a revisão estrutural do modelo, de modo a reconectar os emolumentos à realidade econômica dos negócios jurídicos que lhes dão causa.

Ignorar essa distorção significa normalizar um sistema que, a cada ano, se afasta progressivamente de sua finalidade original e transfere aos usuários dos serviços cartorários um ônus que já não encontra justificativa racional.

Revisitar os valores das faixas de conteúdo financeiro deixou de ser uma opção legislativa meramente conveniente para se tornar uma exigência mínima de coerência normativa e de respeito à proporcionalidade que deve reger a prestação dos serviços extrajudiciais.

Abílio Veloso de Araújo

VIP Abílio Veloso de Araújo

Advogado e empresário. LL.M em Direito Societário e MBA em Direito Civil e Processo Civil (FGV). MBA Executivo em Gestão de Concessionárias (FGV). Autor com tese acolhida pelo STF (Tema 1127).

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