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Quando o Estado vigia o advogado, a democracia entra em silêncio

A gravação de conversas entre advogado e cliente rompe o sigilo profissional e coloca em risco o direito de defesa e a democracia.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Atualizado às 14:24

A recente decisão da 3ª Câmara Criminal do TJ/CE, que autorizou a gravação de diálogos entre pessoas privadas de liberdade e seus advogados na Penitenciária Estadual de Segurança Máxima de Aquiraz, abre um dos precedentes mais sensíveis da história democrática brasileira. A medida - amparada em pedido do GAECO e da Corregedoria de Presídios, sob o argumento de combate às facções criminosas - replica, por analogia, o modelo aplicado nos presídios federais.

Não se trata apenas de um tema de persecução penal. Trata-se de algo maior, mais profundo e mais perigoso: o rompimento de uma garantia civilizatória. Quando o Estado passa a ouvir o advogado, já não escuta mais a Constituição.

O sigilo não é privilégio: é a espinha dorsal da defesa

O art. 133 da Constituição da República determina que o advogado é indispensável para a "administração da justiça", devendo ser "inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei", o que é de pronto recepcionado e reiterado pelo art. 2º, caput, §§ 3º e 7º do Estatuto da OAB. A advocacia, portanto, tem uma garantia institucional, destinada a administração da justiça em consonância com os princípios fundamentais da República.

De outro ponto, a palavra advogado possui origem na expressão em latim "ad vocatus" (ad = para junto, e vocatus = chamado), ou seja, o advogado é "aquele que foi chamado para socorrer outro perante a Justiça" ou ainda "defensor", ou seja, quem fala por outro, que o defende, o representa.

Por isso, não basta a existência formal de um defensor. É necessária defesa técnica real - o que significa análise, estratégia, confidencialidade. O silêncio entre cliente e advogado é o espaço criativo da resistência jurídica. Romper esse silêncio é inviabilizar o próprio direito de defesa.

Tal atuação se torna necessária no sistema penal acusatório oriundo do processo penal constitucional adotado no Brasil, que estabelece como seus princípios basilares a garantia da ampla defesa e do contraditório, sob os quais a atuação do advogado é imprescindível não só do ponto de vista de sua participação processual, mas acima de tudo de demonstração técnica real, sob pena de nulidade absoluta do processo por ausência de defesa. Falar em defesa técnica real é dizer que não basta a mera existência formal de um advogado nos autos; não basta a habilitação inerte; não basta a presença figurativa ou inócua.

Essa garantia constitucional decorre justamente da imprescindibilidade da atuação inviolável do advogado. Configura uma extração prática do exercício do direito fundamental à defesa técnica, de forma ampla, lastreado no sentido semântico da palavra "advogar", em que o advogado não está atuando em nome próprio ou para seu interesse, senão em nome do acusado e para sua defesa, sob a égide do processo acusatório, cujo ônus probandi é do autor da ação penal.

O perigo do direito penal do inimigo

A violação da conversa entre o advogado e seu constituinte sob a justificativa de combate ao crime organizado configura o chamado direito penal do inimigo, em que se justifica a flexibilização de direitos e garantias constitucionais sob o fundamento de enfrentar um inimigo da sociedade, causando disfunção ao estado democrático de direito em seu limitador mais profundo que é o direito de defesa.

Mas a Constituição não reconhece "inimigos". Reconhece cidadãos.

Neste sentido, em 12/12/25, foi publicizado pelo portal jurinews a matéria "Monitoramento de conversas entre advogados e presos: um precedente incompatível com o Estado Democrático de Direito":

Não se desconhece a complexidade do enfrentamento às organizações criminosas, tampouco a necessidade de instrumentos eficazes de investigação. Todavia, a eficiência da persecução penal não pode se sobrepor a garantias constitucionais que estruturam o próprio Estado Democrático de Direito. A inviolabilidade da comunicação entre advogado e cliente não constitui privilégio corporativo, mas pressuposto indispensável ao pleno exercício do direito de defesa.1

A democracia começa a ruir quando o exercício de uma garantia passa a ser tratado como obstáculo ao Estado.

Antes de atingir culpados, atinge inocentes

Se a "moda" do TJ/CE pega, precisamos pensar ampliativamente. A violação não será apenas jurídica; será humana.

  • Pensemos em todas as pessoas que são presas injustamente?
  • E as pessoas detidas por engano ou por discriminação?
  • E por conluio ou conspiração?
  • E as prisões por impossibilidade de pagar pensão alimentícia?

No Brasil vemos diariamente pessoas detidas ou presas, que são inocentadas a posteriori. Retirar o direito delas de ter uma comunicação livre e inviolável com o seu próprio defensor - seja privado ou público -, é violar direitos e garantias constitucionais (tanto do cidadão, quanto da advocacia). E se pensarmos estruturalmente, no caso da advocacia pública é ainda mais grave, pois afetando o seu direito de atuação, estar-se-á ceifando a sua própria natureza jurídica estatal. Afinal, o estado paga para o exercício de defesa técnica real ou para ser tolhida a escuta ativa dos defensores? Sistemicamente, a balança deve pesar mais em prol do direito penal do inimigo e da acusação; ou continuar resguardando o estado democrático de direito e sua consagrada concepção à uma defesa ampla?

Não precisamos ir muito longe para entender o que estamos a contextualizar. Se dermos um google e pesquisarmos casos de prisões injustas, podemos ter uma dimensão histórica da realidade brasileira. Como exemplo, vejamos a reportagem do site "O Globo Rio", datada de 9/2/22:

Relembre casos em que inocentes foram presos por engano pela polícia no Rio

Levantamento das Defensorias Públicas apontam que 81% das prisões injustas feitas por reconhecimento facial eram de negros

RIO - A prisão de Yago Corrêa, detido injustamente após sair de uma padaria na favela do Jacarezinho , não foi um episódio isolado. Na história recente do Rio de Janeiro outras pessoas, sobretudo negras, foram presas de forma indevida. Em alguns casos, como o de Yago, o processo ainda corre na Justiça e os acusados aguardam uma decisão para tentar virar a página de uma vez por todas. Em outros processos, como o do violoncelista Luiz Carlos Justino, já há sentença absolvendo os acusados injustamente.

Parte dos erros de prisões nos últimos anos no Rio foram causados pelo reconhecimento fotográfico errôneo . Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio juntamente com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) mostra que de 2012 a 2020 foram feitas 90 prisões injustas baseadas no reconhecimento por fotos, sendo 73 no Rio. Destas, 81% são acusados negros e a ampla maioria eram suspeitos de roubos.

Raoni Barbosa passou 24 dias na cadeia vivendo o medo e o desespero por ser acusado injustamente de um crime que não cometeu. O cientista de Dados com especialização no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos, foi preso acusado de participar de uma milícia em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.

Acusado de roubo, o produtor cultural Ângelo Gustavo Pereira Nobre ficou um ano preso injustamente após ser denunciado por fazer parte de uma quadrilha que roubou um motorista no Catete, Zona Sul do Rio. O crime ocorreu em 2014, e segundo o processo, a vítima reconheceu Ângelo por fotos em uma pesquisa nas redes sociais três meses depois do crime. No entanto, na época do assalto, o jovem se recuperava de uma cirurgia no pulmão, o que o impossibilitaria de conduzir uma motocicleta, o veículo usado pelos assaltantes.2

Uma pescaria proibida

Ademais, autorizar a gravação de todas as conversas contendo os advogados, de maneira genérica e abstrata, é um meio evidente de criminalização da advocacia. E mais: é consolidar uma prática, em muito já decidida pelos Tribunas Superiores, como sendo ilícita que é o chamado "phishing expedition" ou pescaria exploratória.

A pescaria proibida ocorre quando o Estado, sem indícios prévios, invade esferas privadas em busca de algo que talvez exista.

Não se discute aqui a absoluta intangibilidade do sigilo. Desde que haja indícios concretos de conduta criminosa atribuída ao advogado, é possível - excepcionalmente - autorizar captação ambiental: de forma individualizada; com ordem judicial devidamente motivada; prazo definido; e finalidade delimitada.

Não é o que se percebe na decisão tomada pela 3ª câmara Criminal do TJ/CE. Nesta, não há razoabilidade, proporcionalidade e tão pouco recepção constitucional.

Direito e literatura: o humano antes do Estado

O professor Lenio Streck, em sua obra "O que é fazer a coisa certa no Direito", traz considerações cabíveis ao presente escrito. Falando em seu capítulo 2, sobre "A coisa certa, o Direito e a Literatura", diz o autor:

Como já disse, o direito pode ser estudado por meio da literatura. Ela não apenas humaniza o direito, mas também pode contribuir para a instituição de uma cultura dos direitos ao tematizar questões como a justiça, a liberdade, a igualdade, a diferença, entre outras (Streck, 2023, p. 25).3

O presidente do STF, ministro Luiz Edson Fachin, também nos traz salutares reflexões, ao mencionar a busca histórica pela concretização da tríade igualdade, liberdade e fraternidade. E aqui, não custa ressalvar, estamos falando de uma "situação imposta" que contraria tais preceitos. Logo, contrariam a posição do presidente da nossa Corte Constitucional:

Desde Esopo, "ninguém é tão grande que não possa aprender, nem tão pequeno que não possa ensinar". Numa sociedade e, constante mutação e com vocação para realizar a igualdade, a liberdade e a fraternidade, ainda que com alguns séculos em mora, o debate se alça nesse patamar de oblação de questões e possíveis respostas para os desafios da vida em família (Fachin, 2015, p.34).4

OAB: uma trincheira histórica

Endossamos em gênero, número e grau o apoio do Conselho Federal da OAB e as palavras do presidente Beto Simonetti, publicadas em 18/12/25:

OAB Nacional manifesta apoio à seccional cearense contra monitoramento de conversas entre advogados e presos

O Conselho Federal da OAB repudia a decisão da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará que autoriza o monitoramento de conversas entre advogados e pessoas privadas de liberdade na Penitenciária Estadual de Segurança Máxima e informa que adotará, em conjunto com a OAB Ceará, as medidas necessárias para reverter a autorização. A medida, adotada a partir de pedido do Ministério Público do Estado do Ceará, já está em execução.

Para o presidente nacional da OAB, Beto Simonetti, a autorização ultrapassa limites institucionais e ameaça garantias básicas do sistema de justiça. "Quando o Estado passa a vigiar a conversa entre advogado e cliente, não está fortalecendo a segurança, está enfraquecendo a democracia. O sigilo profissional protege o cidadão e é condição mínima para que exista defesa de verdade", afirmou.5

Na obra "Vozes da Advocacia nos 95 anos da OAB", o advogado, ex presidente da OAB/DF e atual tesoureiro da OAB Nacional, Délio Lins e Silva Júnior, abordou sobre "A advocacia criminal e os limites do autoritarismo":

Assim como nos tempos mais difíceis e autoritários da história, quando a OAB deu voz aos anseios da sociedade e da advocacia pela redemocratização e por uma nova Constituição Federal, atualmente, a instituição segue na defesa das prerrogativas e da valorização de advogados e advogadas criminalistas. É uma trincheira permanente.

Não há nada mais arbitrário do que tentar minar a confiabilidade do profissional da advocacia colocando em xeque seu dever de justiça associando-o aos tipos penais do próprio processo sob seus cuidados, ou usar do seno comum de impunidade para diminuir a função social de seu múnus público.

A OAB tem estrutura jurídica, política e institucional para proteger direitos e garantias da sociedade civil (Simonetti, 2025, p. 50). 6

Na mesma obra "Vozes da Advocacia nos 95 anos da OAB", o advogado, o ex presidente da OAB Nacional, Marcus Vinicus Furtado Coêlho, abordou sobre "O legado do advogado Ruy Barbosa para a advocacia":

Como ensinou o célebre advogado, a sociedade possui o direito de se indignar com os frequentes casos de impunidade, mas não pode fazer dessa repulsa o pretexto para criminalizar aquele que está no exercício regular da profissão.

A reflexão de Ruy ilumina o sentido de defesa como conquista civilizatória e assinala que a advocacia nasce da necessidade moral de proteger os vulneráveis das injustiças. A profissão estrutura-se, portanto, como múnus público orientando à efetividade da ordem jurídica, mediando a relação entre cidadãos, direito e justiça (Simonetti, 2025, p. 59).

Sigilo não é concessão à advocacia. É limite ao Estado.

Conclusão

O discurso midiático de espetacularização do direito penal, sob a bandeira de "vale tudo" no enfrentamento ao crime organizado é um portal que se abre para a destruição de toda uma construção histórica de um processo penal acusatório sob os ditames constitucionais, em cuja atuação e inviolabilidade do exercício da advocacia reside a maior de suas trincheiras.

Essa tentativa de desconstrução histórica-constitucional não há de prevalecer. Os países não se tornam autoritários de uma só vez. Tornam-se aos poucos; pela normalização de pequenas rupturas. E não há ruptura aceitável quando o que se rompe é o direito de defesa.

Quando o Estado vigia o advogado, a democracia entra - forçadamente - em silêncio.

__________

1 https://jurinews.com.br/opiniao/monitoramento-de-conversas-entre-advogados-e-presos-um-precedente-incompativel-com-o-estado-democratico-de-direito/

2 https://oglobo.globo.com/rio/relembre-casos-em-que-inocentes-foram-presos-por-engano-pela-policia-no-rio-2-25386459

3 Streck, Lenio Luiz. O que é fazer a coisa certa no Direito. - São Paulo: Editora Dialética, 2023.

4 FACHIN, Luiz Edson. Direito civil: sentidos, transformações e fim. - Rio de Janeiro: Renovar, 2015.

5 https://www.oab.org.br/noticia/63737/oab-nacional-manifesta-apoio-a-seccional-cearense-contra-monitoramento-de-conversas-entre-advogados-e-presos

6. SIMONETTI, José Alberto. Vozes da Advocacia nos 95 anos da OAB. - Brasília: OAB Nacional, 2025.

Marcos Délli Ribeiro Rodrigues

VIP Marcos Délli Ribeiro Rodrigues

Advogado; Conselheiro Federal da OAB; Presidente da Comissão de Direito Bancário da OAB Nacional; Doutorando em Direito; Mestre em Direito; Especialista em Processo Civil.

Rodrigo Cavalcanti

Rodrigo Cavalcanti

Doutor em Direito pela UNIMAR, Mestre em Direito pela UFRN, Vice-Diretor da ESA OAB/RN, Professor de Direito Penal da UFRN e da UNIFACEX, Professor de Pós graduação, sócio da MDR ADVOCACIA.

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