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A lei de incentivo à cultura e o uso pelo Estado

Fábio de Sá Cesnik

O incentivo fiscal à cultura é um estímulo sobre a carga de impostos devidos ao Estado que é repassado à iniciativa privada em virtude do aporte de recursos na cultura.

quarta-feira, 25 de setembro de 2002

Atualizado em 1 de abril de 2003 11:49

 

A lei de incentivo à cultura e o uso pelo Estado

Fábio de Sá Cesnik

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Alguns governos estaduais e municipais utilizam suas próprias leis de incentivo à cultura para financiamento dos projetos da sua administração. Essa utilização é feita normalmente como forma de completar o orçamento para a cultura desses governos, na maior parte das vezes a pasta que possui menos recursos. Esta prática é visivelmente contestável em razão do desequilíbrio que impõe em relação ao setor privado e desvirtuamento do instituto juridico, conforme pretendo expor e sugerir como debate para a nossa sociedade.

O incentivo fiscal à cultura é um estímulo sobre a carga de impostos devidos ao Estado que é repassado à iniciativa privada em virtude do aporte de recursos na cultura. Com a presença multilateral do Estado na economia, em contraposição ao Estado unilateral, este deixa de ser o centralizador de todas as ações para ser um agente estimulante, que emula ações privadas, no contexto da ordem econômica nacional. Reza a Constituição Federal, em seu artigo 174, que, "como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado".

Com os mecanismos de fomento à atividade cultural, o Estado brasileiro cria um estímulo às empresas para a "cultura de investimento em cultura". Além disso, pretende fortalecer o setor produtor de cultura para a interação com o mercado investidor e a montagem de novos projetos culturais e sua respectiva difusão para o conjunto da sociedade, sendo certo que os incentivos culturais atingem a preservação, produção, difusão e circulação de cultura.

Em livro que trata sobre os incentivos fiscais, Sérgio D'Andrea Ferreira1 reforça nossa linha argumentativa quando afirma que "o incentivo fiscal é a mais moderada forma de presença do Estado na economia (...) exatamente porque não é impositiva, unilateral, mas exige o acordo de vontades, do incentivante e do incentivado, acordo gerador de situação jurídica subjetivada". E continua: "o estímulo da Administração pública às atividades individuais caracteriza-se, na linha da modernidade do direito administrativo, pela ausência de compulsoriedade, da impositividade, na fruição dos meios de fomento; e pelo uso da premiação, em vez da coação".

Vejam que, em toda nossa doutrina e pelo preceituado em nossa Carta Magna, é no mínimo estranha a participação do Estado como agente e produtor de cultura fazendo com que o incentivo seja "autoconcedido". Não bastasse esse fato, a participação do Estado na disputa das renúncias oriundas de incentivo é antiética, caracteriza abuso de poder econômico, inversão de prioridades na construção de uma política pública para a cultura, além de representar um sério e definitivo desvio das finalidades e funcionalidades do incentivo fiscal. Concorre com produtores culturais em condições absolutamente anômalas e cumula duas situações jurídicas: proponente e ente governamental incentivador. O incentivo fiscal deve ser observado pelo Estado como uma ferramenta para a construção de uma política pública para a cultura. Ele não se confunde com o investimento público direto em momento algum. Nesse sentido é absurda a posição do Estado como incentivante e incentivado ao mesmo tempo.

Entretanto, o pior efeito produzido no mercado é na realização do processo cultural com recursos oriundos de incentivo fiscal, pois o governo possui melhores condições institucionais de realizar convênios, firmar parcerias e utilizar espaços públicos para suas apresentações. O Governo deve trabalhar por orçamento próprio significativo, para que com ele possa construir suas ações. Passar a disputar recursos que existem para fomento das ações privadas, deslocando parte das verbas incentivadas diretamente para a composição do seu orçamento, é prática predatória e nociva à evolução do mercado.

Os governos podem corretamente estimular a ação privada para a consecução de algum projeto que esteja inserida no espectro de sua política pública, como alguns têm feito. Isso demonstra respeito e correção no uso do incentivo. Neste caso, aliam-se a uma entidade privada e auxiliam no processo de realização do projeto por considerarem-no ação de interesse comum. De todo modo, quando o fazem, não excluem a participação privada. Ao contrário, estimulam a estruturação e participação de mais entidades da sociedade civil e do segmento cultural.

Ao contrário disso, do uso da lei que preserve as instituições estabelecidas, fazendo correto o uso dos mecanismos criados, há governos que, do seu modo, atuam de forma irregular e participam do processo concorrendo com produtores culturais. Esses governos criaram subterfúgios por meio de decretos ou regulamentos que abrem a possibilidade de sua participação no processo, esquecendo-se da forma de atuação mandamental do ente político, que é a ação direta, de planejamento estratégico de política cultural. Esta prática está contribuindo para que, um setor cultural já fragilizado em relação à atuação política histórica dos governos, veja-se desestruturado. As empresas já não mais acreditam nas leis, que sofrem seguidas modificações em sua regulamentação, e que só é bem aplicada para os projetos de interesse do poder público. Esses governos, que se nomeiam participativos e plurais, deveriam respeitar o processo democrático e trabalhar pelo fortalecimento do setor cultural, colocando-o como prioridade em suas administrações, ao invés de espoliar um setor privado em formação. Os incentivos existem e devem ser pra valer.

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1 - FERREIRA, Sergio D'Andrea. O incentivo fiscal como instituto do direito econômico. Rio de Janeiro, Revista do Direito Administrativo, 211: 31: 46. Janeiro a março de 1998.

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Sócio do escritório Azevedo, Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, autor do livro "Guia de Incentivo à Cultura", Editora Manole e "Projetos Culturais", na quarta edição pela Editora Escrituras.

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