A chancela judicial à fraude na origem dos contratos de franquia
Ao relativizar omissões informacionais o Poder Judiciário acaba chancelando práticas incompatíveis com a boa-fé objetiva e com a própria lei de franquias.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
Atualizado às 13:10
O crescimento do sistema de franquias no Brasil tem sido acompanhado por um fenômeno preocupante: a recorrente convalidação judicial de vícios pré-contratuais que comprometem a formação válida da relação jurídica entre franqueadora e franqueado.
Ao relativizar omissões informacionais, manipulação de dados e violações ao prazo legal de reflexão, o Poder Judiciário acaba, ainda que involuntariamente, chancelando práticas incompatíveis com a boa-fé objetiva e com a própria lei de franquias.
A controvérsia não reside em insucessos empresariais pontuais, mas na existência de vícios originários, anteriores à assinatura do contrato, capazes de macular o consentimento e distorcer a tomada de decisão do franqueado.
A lei 13.966/19 estabelece dever rigoroso de transparência na fase pré-contratual, impondo à franqueadora a obrigação de fornecer informações completas, claras e verificáveis. A omissão de dados relevantes, como o histórico real de fechamento de unidades, passivos judiciais, inadimplência estrutural da rede ou a real performance econômica de franqueados, viola frontalmente esse dever.
Não obstante, parte da jurisprudência tem tratado tais omissões como meras falhas formais ou como insuficiência probatória do franqueado, deslocando indevidamente o ônus de demonstrar informações que, por imposição legal, deveriam ter sido previamente disponibilizadas.
Outro ponto sensível diz respeito ao uso de projeções financeiras descoladas da realidade operacional da rede. Informações financeiras seletivas, simulações baseadas em unidades excepcionais e estimativas sem lastro técnico são frequentemente apresentadas como "expectativas", quando, na prática, exercem papel determinante na formação da vontade do franqueado.
Ao classificar tais práticas como riscos inerentes à atividade empresarial, o Judiciário esvazia o instituto do vício de consentimento e relativiza a função informacional dessas projeções no contexto do franchising.
Também merece destaque o prazo mínimo de 10 dias entre a entrega da Circular de Oferta de Franquia e a assinatura do contrato. Não se trata de formalidade dispensável, mas de mecanismo legal de proteção à autonomia da vontade e de mitigação da assimetria informacional. A entrega fracionada de documentos, a assinatura antecipada ou a pressão comercial para fechamento imediato configuram violações diretas à lei.
Ainda assim, tais práticas têm sido reiteradamente relativizadas sob o argumento da experiência empresarial do franqueado ou do tempo de operação suficiente para reconhecimento dos vícios, raciocínio que não encontra respaldo no texto legal.
Quando vícios pré-contratuais evidentes são ignorados e contratos viciados são mantidos, produz-se um efeito jurídico ainda mais grave: a franqueadora passa a se beneficiar da própria torpeza.
Aquele que descumpre deveres legais de informação, induz o franqueado em erro e viola o prazo de reflexão não apenas mantém os efeitos do contrato viciado, como também se vale desse mesmo contrato para exigir multas, royalties, confissões de dívida e execuções judiciais. Trata-se de situação incompatível com o princípio segundo o qual ninguém pode extrair vantagem jurídica de sua própria conduta ilícita.
Ao preservar contratos formados sob vício originário, o sistema de Justiça acaba por premiar a infração legal, invertendo a lógica da responsabilidade. A franqueadora, que deu causa ao vício, é protegida. O franqueado, induzido em erro, é onerado. A mensagem institucional transmitida é inequívoca: violar o dever de informação e o prazo legal de reflexão compensa, pois o custo jurídico é reduzido, diluído ou transferido integralmente ao franqueado.
Esse cenário contribui para a proliferação de modelos predatórios, nos quais o inadimplemento do franqueado e a posterior execução judicial passam a integrar a própria lógica econômica da franqueadora, convertendo o Judiciário em etapa final de monetização do fracasso previamente arquitetado.
A autonomia privada não autoriza a supressão de deveres legais expressos nem legitima o aproveitamento econômico de condutas ilícitas. A preservação do contrato não pode servir como instrumento de convalidação da fraude, sob pena de se institucionalizar o benefício pela própria torpeza como estratégia de negócio.
Enquanto os vícios estruturais na origem da relação de franquia não forem enfrentados com rigor técnico, o sistema permanecerá vulnerável à expansão de modelos que operam à margem da legalidade, agora não apenas tolerados, mas indiretamente legitimados pelo próprio sistema de Justiça.


