2026 e o anacronismo da terceirização
Uma análise crítica da efetividade do Tema 1.118 do STF - a culpa in vigilando da Administração Pública e a inversão do ônus da prova ao trabalhador.
terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Atualizado às 09:15
Ab initio, a historicidade da terceirização do Brasil inicia-se com a positivação do decreto-lei 200/1967 (reforma administrativa), em um contexto de necessidade de descentralizar a máquina estatal e criar uma reengenharia de efetividade. Destarte, o Estado preconizou o controle e a fiscalização de atividades, ao invés de priorizar somente a execução. Nesse período, a organização estrutural do Estado encontrava-se inchada funcionalmente e a solução imediata foi a delegação de funções não privativas da União. Diante dessa inovação, alguns juristas criticaram a delegação em massa de funções que eram do Estado, uma vez que foram consideradas ineficientes, no tocante à eficiência e à efetividade.
Posteriormente, nos anos 70, a lei 6.019/1974 complementou a tratativa da terceirização, sendo um marco para o setor privado no sentido de regularizar a substituição provisória para períodos específicos como serviços no Natal, Páscoa, férias ou licenças. Todavia, com esta normativa, somente se regulamentava substituição provisória e havia lacunas relativas a atividades duradouras no campo do Direito do trabalho. Por conseguinte, a ideia era a expansão da terceirização para outras atividades, pois havia uma mudança de paradigma na seara laboral no qual a tecnologia e a inovação se tornavam realidade, sendo que a adaptação era a palavra da vez no Direito trabalhista.
Com o aumento da violência dos anos 80, principalmente do setor bancário, foi necessária a terceirização de serviços de segurança, uma vez que somente o compliance institucional da proteção da União já não conseguia cumprir com a proteção da população. Nessa linha, foi instituída a lei 7.102/1983 (A "certidão de nascimento" da segurança privada), para vigilância ostensiva e o transporte de valores com segurança entre agências bancárias. Vale ressaltar que esta normativa supracitada foi uma exceção em relação a súmula 256 do TST, cuja teleologia se pautava na proibição de quase todo tipo de terceirização. Segundo o texto da súmula 256,
"Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas leis 6.019, de 3/1/1974, e 7.102, de 20/6/1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços."
Nessa linha de discussão, a lógica do TST era a proteção, uma vez que a terceirização era considerada precarização e fraude do trabalho, sendo que o modelo vínculo direto conduzia o paradigma protetivo da Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988). Ou seja, as únicas exceções para terceirizar seriam a substituição temporária de prestadores de serviço e a segurança efetiva de agências bancárias.
Com a modernização da economia nos anos 90, a súmula 256 do TST se tornou obsoleta e foi substituída pela súmula 331 permitindo a terceirização de atividades-meio (limpeza, conservação e serviços especializados), mantendo a proibição apenas para a atividade-fim. Com esta súmula mantiveram-se lícitos os serviços de segurança bancária, os tomadores de atividade meio e serviços específicos de conservação e limpeza. Entretanto, a interpretação extensiva a outros setores como TI, médicos, dentistas, enfermeiros, dentre outros foi arrefecida após a reforma trabalhista de 2017.
Ademais, não somente havia a problemática dos agentes alvo e da especificação de serviço, mas também a necessidade de responsabilização no tocante a inadimplemento de verbas trabalhistas. Isto é, segundo a súmula do TST 331, quem tem o dever subsidiário de pagar as verbas laborais é a empresa tomadora. Explicando melhor, se a empresa que contratou o trabalhador não pagasse as verbas trabalhistas, a empresa que se beneficiou do trabalho (a contratante) deveria pagar.
Para contextualizar a situação da Administração Pública em geral (União, Estados e municípios), deve-se relembrar que a terceirização de prestadores de serviços como faxineiros e seguranças não gera vínculo de emprego, pois somente se tornam servidores estatutários por concurso público, conforme a CRFB/1988 positiva. Nessa linha, em relação a responsabilização já supracitada, sabe-se que o tomador responde de forma subsidiária em relação às verbas de cunho trabalhista. Portanto, após a terceirização, os cofres públicos tiveram que arcar com prejuízos atinentes a causas de origem trabalhistas, por culpa in vigilando e culpa elegendo, ou falha na fiscalização.
Posteriormente, em 2010, o STF, num verdadeiro "cabo de guerra jurídico", contra-atacou o TST e julgou o ADC 16 cujo teor baseava-se na primazia da proteção a Administração Pública, ao contrário do TST que priorizava a proteção do trabalhador temporário. Nesse diapasão, o TST foi obrigado a alterar sua súmula 331 para incluir o item V, que diz que "A responsabilidade do poder público não decorre de mero inadimplemento, mas da prova de falha na fiscalização".
Nessa linha de discussão, surgiu uma nova discussão sobre a comprovação da culpa na fiscalização e omissão trabalhista, se seria do trabalhador (parte vulnerável) ou do governo (mantenedor de documentos comprobatórios). Para restabelecer a segurança jurídica, em fevereiro de 2025, foi positivada a seguinte tese do STF:
"Os atos da Administração Pública gozam de presunção de legitimidade. Ou seja, a lei presume que o Estado fiscalizou corretamente. Se o trabalhador diz que não houve fiscalização, ele está contestando um ato oficial e, portanto, precisa provar o que diz."
Nessa linha de pensamento, com as decisões do STF e do TST, analisando criticamente o lado do trabalhador terceirizado, observa-se que este fica à mercê de comprovar a culpa da Administração na vigilância e na fiscalização trabalhista para obter seu crédito de direito (inversão do ônus da prova). Ademais, sabe-se que há grande dificuldade de acesso a documentos internos dos órgãos públicos, uma vez que o compliance institucional e a transparência não são princípios tão em destaque pela Administração.
Outrossim, a inversão do ônus da prova preconizada não coaduna com a celeridade de acesso ao crédito alimentar pelo trabalhador, pois a disponibilidade de acesso aos documentos comprobatórios é muito reduzida. Assim, há uma outra controvérsia nesses entendimentos supracitados: se os documentos não são entregues pelo reclamante, por exemplo, pode-se considerar a culpa presumida pela Administração Pública? Para finalizar, é importante descortinar quais os deveres da Administração Pública quando resolve contratar por terceirização: exigir capital social compatível da empresa contratada e condicionar o pagamento da fatura mensal à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas do mês anterior.
Diante do exposto, esse assunto está longe de se tornar um consenso, pois envolve a Administração Pública de modo geral, os trabalhadores terceirizados, os magistrados e a sociedade como coletividade, sendo que há dificuldade de gerenciar a tão sonhada segurança jurídica constitucional. Conquanto, a situação gerada para os trabalhadores vulneráveis gera uma certa de que a notificação célere e formal ao sindicato e aos órgãos públicos, quando houver atraso de pagamentos é essencial para comprovar a negligência e omissão na fiscalização da Administração Pública.
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