Boa-fé objetiva e cobrança bancária indevida
Analisa como a boa-fé objetiva e a tutela da confiança legitimam a repressão às cobranças bancárias indevidas, à luz da jurisprudência recente sobre responsabilidade e proteção do consumidor.
quarta-feira, 31 de dezembro de 2025
Atualizado em 30 de dezembro de 2025 13:55
1 Introdução
As relações de consumo bancárias constituem espaço privilegiado de concretização da boa-fé objetiva, sobretudo em razão da complexidade técnica dos produtos financeiros e da acentuada assimetria informacional que estrutura essas contratações de massa. Nesse contexto, os conflitos jurídicos deixam de gravitar em torno da mera literalidade das cláusulas contratuais e passam a exigir a análise da coerência entre o comportamento do fornecedor, as informações prestadas e a execução concreta do contrato.
A boa-fé objetiva, compreendida como standard normativo de conduta, deixa de operar como cláusula geral abstrata e assume função concreta de integração, controle e limitação do exercício de posições jurídicas. Ela impõe deveres positivos de informação, cooperação e proteção da confiança legitimamente criada, especialmente em contratos bancários de longa duração, como consórcios, financiamentos e empréstimos consignados, nos quais o consumidor organiza sua vida econômica a partir das representações fornecidas pela própria instituição financeira.
A experiência jurisprudencial recente evidencia que cobranças indevidas, descontos não autorizados e negativações irregulares não se apresentam como meras falhas operacionais, mas como manifestações de ruptura entre o discurso contratual e a prática executiva do vínculo. A resposta jurisdicional orientada pela boa-fé objetiva e pela tutela da confiança redefine, assim, os critérios de responsabilização civil, de repetição de indébito e de configuração do dano moral, conferindo maior densidade normativa ao princípio da boa-fé e maior racionalidade ao contencioso bancário.
2 Boa-fé objetiva, dever de informação e tutela da confiança nas relações de consumo bancárias
2.1 Conteúdo normativo da boa-fé objetiva e do dever de informação no CDC e no CC
A boa-fé objetiva opera como cláusula geral de conduta, impondo deveres concretos às instituições financeiras,1 tais como informar adequadamente, evitar surpresas contratuais, cooperar na execução do vínculo e não frustrar expectativas legitimamente criadas no consumidor. No âmbito das relações bancárias, tais deveres assumem relevo especial, pois incidem sobre contratos de adesão celebrados em ambiente de acentuada assimetria técnica e informacional, nos quais o conteúdo negocial é previamente estruturado pelo fornecedor e apenas aceito pelo cliente, sem efetiva possibilidade de negociação ou compreensão plena das variáveis econômicas envolvidas.
Nesse cenário, a boa-fé objetiva desempenha função simultaneamente integrativa e limitadora.2 De um lado, integra o contrato com deveres que, embora não constem expressamente das cláusulas, decorrem da lealdade negocial e da confiança despertada no momento da contratação. De outro, atua como limite ao exercício de posições jurídicas formalmente previstas, impedindo que sejam manejadas de forma oportunista ou contraditória em prejuízo do consumidor. A instituição financeira, assim, não pode escudar-se na literalidade do instrumento contratual para legitimar condutas que desbordem da expectativa de correção e previsibilidade que ela própria fomentou, sob pena de violar o núcleo ético-jurídico da boa-fé objetiva.
O dever de informação,3 por sua vez, concretiza a boa-fé na dimensão comunicativa da relação contratual, impondo ao banco o ônus de expor, de forma clara, ostensiva e efetivamente compreensível, os encargos incidentes, os critérios de cálculo adotados, os riscos assumidos e as consequências econômicas relevantes do negócio celebrado. Não se mostra suficiente, para tanto, a simples inserção de cláusulas genéricas ou redigidas em linguagem técnica inacessível, pois a transparência exigida pelo sistema de proteção do consumidor é material, e não meramente formal, devendo permitir que o consumidor compreenda, em termos práticos, o impacto da contratação sobre sua esfera patrimonial e sua capacidade de adimplemento.
A omissão, a ambiguidade ou a comunicação deficiente desses elementos caracteriza falha na prestação do serviço e rompe o núcleo normativo da boa-fé objetiva, deslocando o debate da esfera abstrata da autonomia privada para o plano concreto da responsabilidade civil.4 Nessas hipóteses, a intervenção judicial não se limita à correção pontual de uma cláusula isolada, podendo alcançar a revisão das prestações, a invalidação de cobranças indevidas e a imposição de deveres reparatórios, precisamente porque se reconhece que a assimetria informacional foi instrumentalizada de modo a comprometer a confiança legítima do consumidor e a higidez material da relação contratual.
2.2 Tutela da confiança legítima do consumidor frente à atuação de instituições financeiras
A tutela da confiança legítima emerge quando o comportamento do fornecedor, considerado de forma global e continuada, induz o consumidor a acreditar na regularidade da execução contratual, estabilizando expectativas a partir de uma conduta reiterada, coerente e previsível ao longo do tempo. Em relações bancárias de execução prolongada, essa confiança não se forma instantaneamente, mas se consolida progressivamente,5 à medida que o consumidor cumpre suas obrigações com base em informações oficiais fornecidas pela própria instituição financeira, organizando sua vida econômica segundo a representação contratual que lhe foi apresentada.
Situações em que o consumidor realiza pagamentos sucessivos conforme boletos, extratos e comunicações emitidos pelo banco, sem qualquer ressalva quanto à existência de diferenças futuras ou saldos residuais, geram expectativa razoável de adimplemento integral do contrato nos moldes praticados. Uma vez consolidada essa expectativa, torna-se incompatível com a boa-fé a exigência posterior de valores não sinalizados de forma clara, adequada e tempestiva, sob pena de se esvaziar a segurança das relações jurídicas e comprometer a previsibilidade que deve orientar os contratos de massa.6
Nesses casos, a confiança não se constrói apenas a partir da leitura inicial do instrumento contratual, mas sobretudo do comportamento subsequente do fornecedor. Ao emitir boletos, receber pagamentos, fornecer extratos e manter-se silente quanto a eventuais inconsistências ou diferenças relevantes, a instituição financeira contribui decisivamente para que o consumidor presuma a correção dos cálculos, a suficiência das prestações e a inexistência de saldo pendente. A cobrança extemporânea de valores significativos, após anos de cumprimento pontual, revela ruptura da coerência comportamental e afronta direta à expectativa legítima criada,7 justificando a incidência de categorias como o venire contra factum proprium8 e a responsabilização pela frustração da confiança.
Do mesmo modo, a tutela da confiança é violada quando condições anunciadas no momento da contratação - tais como carência, parcelas fixas, ausência de encargos adicionais ou quitação ao final de determinado período - não se confirmam na prática. Isso ocorre, por exemplo, quando o banco altera unilateralmente a forma de cálculo, introduz encargos não adequadamente esclarecidos ou vincula o consumidor a obrigações cuja dimensão econômica não foi clara e previamente exposta.9 A ruptura entre o discurso negocial e a execução do contrato, nessas hipóteses, não se reduz a um simples descumprimento pontual, mas traduz violação qualificada da boa-fé objetiva, pois instrumentaliza a vulnerabilidade informacional do consumidor em benefício exclusivo do fornecedor.10
Nessa perspectiva, a tutela da confiança exige do julgador uma análise que transcenda a literalidade das cláusulas contratuais e se volte para o percurso relacional estabelecido entre as partes.11 Torna-se necessário examinar o que foi prometido, de que forma o contrato foi executado, quais mensagens foram efetivamente transmitidas ao consumidor e como essas mensagens moldaram suas decisões de pagamento, permanência no vínculo e organização financeira. Quando se constata que o consumidor agiu de forma diligente, confiando em informações oficiais do próprio fornecedor, e que a frustração decorre de alteração posterior, omissão relevante ou informação insuficiente, impõe-se a recomposição judicial do equilíbrio contratual, por meio da revisão de cobranças, do afastamento de saldos residuais e, conforme o caso, da indenização pelos prejuízos causados.12
- Clique aqui e confira o artigo na íntegra.
Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.


