Defensoria Pública do Ceará: 90 anos de pioneirismo da assistência jurídica
Em 1935, o Ceará criou um órgão autônomo de assistência jurídica - embrião da Defensoria. Veja como o decreto 1.560 antecipou garantias e efetividade.
terça-feira, 30 de dezembro de 2025
Atualizado às 14:00
O ano era 1935 e, em 10/5, o Ceará editou o decreto 1.5601, dando um passo inovador no Brasil para cumprir o mandamento expresso na Constituição de 19342: criar a Assistência Judiciária aos necessitados com isenção de emolumentos, custas, taxas e selos - como "órgão especial", "distincto do ministerio publico ou repartições administrativas" e "sem dependencia aos membros da magistratura" -, transformando a assistência judiciária em política pública.
O texto do decreto é surpreendentemente inovador. A principal característica que demarca a gênese institucional da Defensoria Pública no Ceará é a criação expressa de um novo órgão oficial estatal, com atribuição exclusiva de Assistência Judiciária pública e gratuita aos necessitados, retirando-a, expressamente, do âmbito do Ministério Público e também da Procuradoria-Geral do Estado. A norma cearense oficializa o modelo salaried staff3, como serviço público remunerado, retirando a assistência do terreno da caridade, da dependência pro bono e de obrigações corporativas não remuneradas.
Aqui reside um dos traços mais importantes: um órgão com atribuições exclusivas de assistência judiciária, que evita arranjos capazes de gerar colisões típicas entre a função de acusação, exercida precipuamente pelo Ministério Público, e a função de defesa do arguido necessitado jurídico; bem como entre a defesa de interesses públicos secundários, realizada pela Procuradoria do Estado em favor do ente público, e a defesa do cidadão necessitado.
Um outro ineditismo do decreto cearense e, por conseguinte, uma de suas notas históricas características como precursor da Defensoria Pública do Estado, é a previsão expressa de uma chefia institucional específica, com procurador superior, inclusive com exercício e assento na Corte Estadual junto aos desembargadores, e previsão de membros assistentes e adjuntos atuando na capital e no interior.
Como dito, o procurador superior atuava no segundo grau nos processos originários e recursos que ali tramitavam, garantindo uma assistência escalonada em "todos os graus", como agora previsto no art. 134 da Constituição de 1988. O decreto também disponibilizou instrumentos de garantia, como legitimidade expressa para a impetração de habeas corpus e mandado de segurança; concedeu o poder de requisição de certidões e esclarecimentos; e já previa o estímulo à conciliação como forma de tratamento de conflitos, antecipando em quatro décadas os escritos de Mauro Cappelletti e Bryant Garth4.
O decreto também cuidou de normatizar a profissionalização da assistência judiciária, ao exigir que seus membros fossem titulados em Direito; ao prever, de modo expresso, a possibilidade de realização de concurso público; e, ainda, ao vedar a advocacia em causas do ofício, de forma muito semelhante à disposição constitucional atualmente vigente de "vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais" (art. 134, CRFB). Ademais, houve equiparações funcionais expressas: férias de seus membros em iguais condições às férias da magistratura; garantias e vencimentos equiparados aos promotores das comarcas; sujeição às mesmas penas disciplinares de advogados e promotores; obrigação de apresentação de relatórios anuais circunstanciados como uma forma de accountability inovadora, embora rudimentar.
Muito mais do que uma assistência formal, a norma alencarina adotou um conceito legal de necessitado ligado não apenas à subsistência familiar, mas o ampliou para situações de "necessitado jurídico", ao incluir explicitamente a atuação das curadorias e a defesa de réus revéis, técnicas historicamente construídas de proteção a vulneráveis não econômicos.
O Decreto cearense é pioneiro porque, não obstante o Estado de São Paulo tenha editado o decreto 7.078, de 6/4/19355, atribuindo à Secretaria da Justiça e Negócios do Interior os serviços relativos à assistência judiciária (art. 6º, n. 6), apenas com a lei 2.497, de 24/12/19356, é que foi organizado o Departamento de Assistência Social do Estado, com a criação do Consultório Jurídico de Serviço Social.
Não se deve esquecer, por digna de lembrança, a comemoração dos 70 anos de criação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, celebrada em 2024, com marco inaugural fixado em 1954, com a criação dos cargos de defensor público, sob chefia institucional do procurador-Geral de Justiça e, depois, ligada à Secretaria de Justiça, sendo, até 1987, denominada Assistência Judiciária7, com semelhanças com o modelo cearense criado duas décadas antes. Essas experiências de matriz salaried staff apresentavam as incumbências da assistência jurídica gratuita, não obstante muito semelhantes, havia variações importantes.8
O certo é que, a partir de 1935, o Estado do Ceará passou a fornecer, de maneira ininterrupta, o serviço de Assistência Judiciária aos necessitados, depois se constituindo como Departamento da Secretaria do Interior e Justiça, com o decreto 12.594, de 15/12/19779, e, posteriormente, vindo a se tornar Caje - Coordenadoria-Geral de Assistência Judiciária do Estado por meio da lei 10.704, de 13/8/198210, seguindo sem coincidência de atribuições com os membros do Ministério Público, tampouco com a Procuradoria do Estado11. Embora já houvesse menção legal específica à atuação de defensor público em procedimento disciplinar na lei 10.784, de 17/1/1983, apenas com a lei 11.488, de 9/9/1988 é que fora oficialmente alterada a nomenclatura de "advogado de ofício" para "defensor público", portanto, cerca de um mês antes da entrada em vigor da Constituição de 1988.
Com a superação de mais de 2 milhões de atuações só no ano de 202512, o grande desafio da Defensoria Pública do Estado do Ceará é dar continuidade a 90 anos de história ininterrupta de Assistência Jurídica estatal e gratuita no Estado, priorizando o acesso à justiça das pessoas em situação de vulnerabilidade em todo o Estado, com uma atuação que democratize, cada vez mais, o acesso à Justiça em todo o Ceará, pois a Defensoria Pública é "a representação instrumental maior de inclusão democrática no jogo discursivo do direito".13
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1 CEARÁ. Decreto nº 1.560, de 10 de maio de 1935. Dispõe sobre a Assistência Judiciária aos necessitados.
2 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1934). Rio de Janeiro, 16 jul. 1934. Art. 113, n. 32.
3 ALVES, Cléber Francisco. Justiça para todos!: assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
4 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução e revisão de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.
5 SÃO PAULO. Decreto nº 7.078, de 6 de abril de 1935.
6 SÃO PAULO. Lei nº 2.497, de 24 de dezembro de 1935. Organiza o Departamento de Assistência Social do Estado.
7 RIO DE JANEIRO. Lei estadual nº 2.188, de 21 de julho de 1954
8 MIOTO, Armida Bergamini. A defensoria pública no Brasil. Revista de Informação Legislativa, v. 10, n. 38, p. 71-104, abr./jun. 1973. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/180634. Acesso em: 29 dez. 2025.
9 CEARÁ. Decreto nº 12.594, de 15 de dezembro de 1977.
10 CEARÁ. Lei nº 10.704, de 13 de agosto de 1982
11 ROCHA, Jorge Bheron. Amicus democratiae: Defensoria Pública e democracia. São Paulo: Tirant Brasil, pg.66/67.
12 Defensoria Pública do Estado do Ceará. Defensoria supera 2 milhões de atuações antes de dezembro; são mais de mil procedimentos por hora em 2025. Disponível em:
13 GONÇALVES FILHO, Edilson Santana. Defensoria Pública: amicus communitas. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DEFENSORES PÚBLICOS (ANADEP). Livro de teses e práticas exitosas: Defensoria como metagarantia: transformando promessas constitucionais em efetividade. Paraná, 2015, p. 75 (p. 37 do PDF). Disponível em: https://www.anadep.org.br/wtksite/XII_CONADEP_P_GINA_DUPLA.pdf. Acesso em: 29 dez. 2025.
Jorge Bheron Rocha
Doutor em Direito Constitucional (Unifor), mestre em Ciências Jurídico-criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal), com estágio na Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha), Defensor Público no Estado do Ceará. Professor. Presidente do Conselho Penitenciário do Ceará. Membro da Academia Cearense de Direito e da Associação Brasileira de Direito Processual.


