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Doação de órgãos e tecidos humanos

De todos os direitos, o direito à vida, além de ser contemplado em praticamente todas as legislações, faz parte de tratados e convenções internacionais, sempre com a nítida intenção de conferir a ele a proteção jurídica necessária para a manutenção do status de pessoa. Em contraposição a ele, a morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Atualizado em 16 de maio de 2008 11:40


Doação de órgãos e tecidos humanos

Eudes Quintino de Oliveira Júnior*

De todos os direitos, o direito à vida, além de ser contemplado em praticamente todas as legislações, faz parte de tratados e convenções internacionais, sempre com a nítida intenção de conferir a ele a proteção jurídica necessária para a manutenção do status de pessoa. Em contraposição a ele, a morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.

Será que a pessoa, em vida ou post mortem, pela sua manifestação anterior, pode dispor de seus órgãos, tecidos e partes do corpo?

Dá-se o nome de transplante ou transplantação ao procedimento cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador. Autotransplante, assim designado, ou transplante autoplástico, quando é feita a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de "ponte de safena". Homo-transplante ou transplante homólogo quando se dá entre indivíduos da mesma espécie. Xenotransplante, quando ocorre a transferência de um órgão ou tecido de animal para um ser humano. É certo que, nesse último caso, apesar dos avanços da tecnociência médica, muitas experiências deverão ser realizadas para se chegar a um resultado que seja considerado satisfatório. Mais do que isso: se vingar o projeto, muitos problemas éticos serão eliminados, pois o corpo humano deixará de ser a fonte geradora de órgãos.

No Brasil, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só podem contemplar o cônjuge, parentes consangüíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas.

Com a boa cautela, o legislador retirou do alcance de tecidos o sangue, mesmo o extraído da medula óssea, o esperma e o óvulo. As finalidades humanitárias e solidárias justificam plenamente a opção legislativa.

Quando se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha colateral ou reta até o segundo grau. A opção registrada pela pessoa em vida como doadora, inscrita na Carteira Nacional de Trânsito ou na Carteira de Identidade, perdeu sua eficácia a partir da Lei nº. 10.211, de março de 2001 (clique aqui). A vontade da pessoa quando viva não se sobrepõe à de seus parentes. Eles que irão decidir a respeito da doação de órgãos vitais do cadáver que, podem numa bem sucedida manipulação médica, ser úteis a outras pessoas, como é o caso de doação de rins, córnea, coração, pulmões e pâncreas, com procedimentos bem desenvolvidos.

O corpo humano, desta forma, passa a ser um repositório de tecidos e órgãos, mas nítida é a interferência estatal na disposição de vontade da pessoa a respeito de sua vida. A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o estado de necessidade. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso.

Tal fato, por si só, faz incrementar o suprimento de órgãos para transplante, pois o número de pessoas aguardando nas filas é bem superior à oferta de órgãos e acarreta o surgimento do mercado paralelo de órgãos humanos. Apesar da Organização Mundial de Saúde - OMS repudiar o comércio paralelo, observando a regra inscrita na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no sentido de que o corpo humano e suas partes são bens extra commercium, sem qualquer perfil comercial, é notório o crescimento de grupos que se dedicam a este tipo de atividade ilícita. O relator de um comitê do Parlamento Europeu, citado por Leo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine, escreveu:

"O tráfico organizado de órgãos existe, da mesma forma que o tráfico de drogas... Envolve a matança de pessoas para remover órgãos que podem ser vendidos para obter lucro. Negar a existência de tais atividades seria negar a existência de fornos e câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial" (Problemas atuais de Bioética, 7.ed. rev. e ampl., São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2005, p.346).

O homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade.

O doador, que assume uma dimensão transcendente da sua própria natureza humana, realiza a mais nobre ação humanitária, tal qual pelicano que faz verter seu sangue para alimentar seus filhotes. Neste diapasão, a pessoa, de certa forma, não só se expõe a riscos, mas renuncia à integridade de seu organismo para poder socorrer o próximo, em ambos os casos com a aprovação estatal. Entre a integridade física e a dignidade humana, o Direito ampara à última, pois a disposição do próprio corpo com finalidade altruísta, justifica perfeitamente o estado necessário. A esse respeito, ensina Adriano de Cupis:

"Se pode consentir-se na ofensa de qualquer dos aspectos da integridade física, desde que o consentimento não vise produzir uma diminuição permanente da própria integridade física e não seja, por outro modo, contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, é porque existe um direito tendo por objeto todas as manifestações possíveis do bem em referência" (Os direitos da personalidade, Lisboa: Morais, 1961, p.71).

É salutar observar sempre o princípio da precaução nas pesquisas médicas. Diante da incerteza não se deve adotar ou criar atividades técnicas que possam produzir conseqüências negativas e irreversíveis ou ir além de nossa capacidade de controle. É confiável sonhar com vôos altos, mas sem desprezar os passos iniciais simples, trilhados nos limites da ética e da segurança jurídica. Faz lembrar Pitigrilli, no seu inesquecível livro "O Homem que inventou o amor", quando profetizava que tanto a medicina como o direito têm necessidade de montanhas de vítimas para progredir uns poucos metros. Tomara que esteja enganado.

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*Advogado





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