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Lei Seca à brasileira

A Lei Seca se tornou famosa quando os Estados Unidos, em 1919, proibiram a fabricação, venda, troca, transporte, importação, exportação, distribuição, entrega ou simplesmente a posse de bebidas alcoólicas. No Brasil, a recente Lei nº. 11.705/08 (clique aqui), tem sido chamada de Lei Seca à Brasileira em razão de ter estabelecido graves penas administrativas e criminais para quem consumir bebidas alcoólicas enquanto estiver dirigindo veículo automotor.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Atualizado em 9 de julho de 2008 13:11


Lei Seca à brasileira

Juliana Mancini Henriques*

A Lei Seca se tornou famosa quando os Estados Unidos, em 1919, proibiram a fabricação, venda, troca, transporte, importação, exportação, distribuição, entrega ou simplesmente a posse de bebidas alcoólicas. No Brasil, a recente Lei nº. 11.705/08 (clique aqui), tem sido chamada de Lei Seca à Brasileira em razão de ter estabelecido graves penas administrativas e criminais para quem consumir bebidas alcoólicas enquanto estiver dirigindo veículo automotor.

A Lei nº. 11.705/08, publicada em 20/6/08 e que entrou em vigor na mesma data, alterou o Código de Trânsito Brasileiro (clique aqui) para introduzir novas sanções para quem dirige sob influência de álcool: uma administrativa disposta no art. 165 e outra que constitui crime com pena de prisão prevista no art. 306 do CTB.

Dispõe o art. 165 o seguinte:

Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses;

Medida Administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação.

A infração gravíssima faz com que o condutor do veículo perca sete pontos na carteira, arque com multa administrativa que corresponde a aproximadamente hum mil reais, além da retenção do veículo e recolhimento da carteira de habilitação. Para que seja configurada a referida infração basta que o condutor tenha ingerido qualquer quantidade de álcool, como está expressamente disposto no art. 276 do CTB, também alterado pela Lei nº. 11.705/08. Diz o artigo que "qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código".

Já o artigo 306 do CTB, também alterado pela nova lei, dispõe que constitui crime passível de pena de prisão de seis meses a três anos aquele motorista que dirigir veículo com concentração de álcool igual ou superior a seis decigramas. Dispõe o referido artigo:

Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.

Importante destacar que para que seja configurada a infração administrativa basta que o condutor tenha consumido qualquer quantidade de álcool. Para que seja caracterizado crime é necessário que o condutor tenha consumido no mínimo seis decigramas de álcool por litro de sangue, o que corresponde a dois copos de cerveja ou suas taças de vinho, por exemplo.

Por mais louvável que tenha sido a intenção do legislador ao querer evitar acidentes de trânsito devido ao uso de bebidas alcoólicas, a nova lei gerou indignação de grande parte da sociedade por sua arbitrariedade com relação à imposição das penas. Mais uma vez o Estado, na tentativa de punir uma minoria, impõe ônus à maioria da população sem que tenha sido possibilitado aos destinatários da norma, quais sejam, os cidadãos, um real debate sobre a matéria, inclusive quanto aos parâmetros adotados.

O primeiro aspecto a ser analisado é o fato de a lei transformar cidadãos de bem em criminosos. Isto porque na medida em que qualquer indivíduo que tenha saído para um jantar de negócios, ou almoço com família ou happy hour com os amigos e tenha consumido mais de dois chopes será necessariamente caracterizado como criminoso, podendo inclusive ser preso, mesmo sem ter provocado qualquer acidente de trânsito.

Ora, se o espírito da lei era punir aqueles que causam acidentes de trânsito por estarem embriagados, devem-se aplicar os requisitos somente aos causadores do acidente e não ao cidadão que sai para se divertir e consome álcool em quantidades tais que não causam alteração significativa em seu comportamento ou seus reflexos.

Sobre esse fundamento há os que dizem que o indivíduo, ao consumir qualquer quantidade de álcool, já não tem total domínio sobre seu controle motor e por isso deve se reportar a táxis, vans ou ônibus para o retorno às suas residências. Contudo, tal medida, na prática, é inviável, devido ao custo financeiro que acarreta ao cidadão e devido à falta de transporte coletivo de qualidade que justifique o abandono do veículo particular para tal fim.

O segundo aspecto, e mais relevante, é a infringência à presunção de inocência consagrada no art. 5º da Constituição Federal (clique aqui) em seu inciso LVII (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória) e garantia de devido processo legal, ampla defesa e contraditório disposto no inciso LV (aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes).

O que se verifica após uma leitura da lei é que a arbitrariedade vem imperando nos novos dispositivos. Vejamos um exemplo. Se o indivíduo é autuado em uma blitz e se recusa a realizar o teste do bafômetro (uma vez que ele não é obrigado a fazer prova contra si mesmo, de acordo com o Tratado da Costa Rica), o policial poderá, a seu livre arbítrio, declarar que o indivíduo estava embriagado.

É o que dispõe a Resolução 206 (clique aqui) do Contran em seu artigo 2º:

Art. 2º. No caso de recusa do condutor à realização dos testes, dos exames e da perícia, previstos no artigo 1º, a infração poderá ser caracterizada mediante a obtenção, pelo agente da autoridade de trânsito, de outras provas em direito admitidas acerca dos notórios sinais resultantes do consumo de álcool ou de qualquer substância entorpecente apresentados pelo condutor, conforme Anexo desta Resolução.

Porém, sem a realização de qualquer exame, como poderá o policial afirmar se existia ou não nível de álcool no sangue acima de seis decigramas? Testemunhas, apesar de serem meio de prova admitido em Direito, não tem o condão de comprovar a existência de álcool no sangue de alguém no percentual permitido por lei.

Há, ainda, os que afirmam que a simples negativa em realizar tal exame caracterizaria crime de desrespeito à autoridade, o que não se pode admitir sob pena de infringência à Constituição, como acima citado.

Convenhamos que o agente da autoridade de trânsito não é tecnicamente capacitado para auferir o estado alcoólico de uma pessoa, salvo se a embriaguez for evidente. O referido policial não tem fé pública, embora a nova lei queira lhe atribuir tal predicado. Há que se garantir a ampla defesa e contraditório desde o momento da autuação, para que, após a declaração da autoridade policial de que o cidadão ingeriu álcool em percentual superior ao determinado por lei, o cidadão possa se defender devidamente.

Tal medida é fundamental para a transparência das autuações, característica do Estado Democrático de Direito, e para que seja evitada a corrupção tão e infelizmente comum em nosso país.

O que verifica, portanto, é uma tentativa do Estado em aplicar normas coercitivas na tentava de evitar os acidentes de trânsito, porém, feita de forma temerária e talvez apressada, na medida em que infringe direitos fundamentais individuais do cidadão que não podem ser desprezados em função de um suposto interesse coletivo.

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*Advogada do escritório Manucci Advogados







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