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A lei seca e o bafômetro

A expressão lei seca remonta ao ano de 1919, quando os Estados Unidos resolveram proibir a fabricação, venda, troca, transporte, importação, exportação, distribuição, entrega e posse de bebidas alcoólicas.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

Atualizado às 15:09


A lei seca e o bafômetro

Antonio Pessoa Cardoso*

A expressão lei seca remonta ao ano de 1919, quando os Estados Unidos resolveram proibir a fabricação, venda, troca, transporte, importação, exportação, distribuição, entrega e posse de bebidas alcoólicas.

A edição da Lei nº. 11.705 de 19/6/2008 (clique aqui), trouxe para o Brasil aquela expressão do início do século passado; altera-se o Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº. 9.503 de 23/9/1997 (clique aqui), e a Lei nº. 9.294, de 15/7/1996 (clique aqui), que proíbe fumar em recintos fechados de uso coletivo.

Nossa lei seca trata das restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas; proíbe a venda no varejo ou o oferecimento de bebidas alcoólicas para consumo no local, na faixa de domínio de rodovia federal ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia.

A norma originou-se da Medida Provisória nº. 415/08 (clique aqui), e não passou por debates e discussões junto ao povo; foi fruto da vontade do governante do momento, que busca soluções extravagantes, ao invés de implementar políticas sadias e ações educativas preventivas; a difícil fiscalização, principalmente na área administrativa, além dos questionamentos de inconstitucionalidade da lei antecipa dificuldades para sua execução e para surtir os bons resultados que se espera. Queixa-se que a punição, quando prevê a alcoolemia zero e quando determina aos que vendem o produto a obrigação de colocar aviso no recinto, esclarecendo ser crime dirigir sob a influência de álcool, mostra rigidez incompatível com a cultura local.

A lei pode causar verdadeira decepção ao povo, pois é certo que a fiscalização que se promove nos primeiros dias de sua vigência sofrerá descontinuidade, a exemplo do que já ocorreu com a Lei dos Crimes Hediondos, Lei nº. 8.072/90 (clique aqui), do Estatuto do Desarmamento, Lei nº. 10.826/03 (clique aqui), e de tantas outras, que provocaram impacto apenas no inicio e o tempo encarregou-se de mostrar o desleixo e a falta de interesse do governo na observação da prática dos dispositivos legais. Para aumentar as dúvidas, o Código de Trânsito, na redação original, já era tão ou mais rígido que a lei seca e nem por isto trouxe o marketing da fiscalização atual.

Providências para evitar que se dirija alcoolizado deveriam ser tomadas desde a edição do Código de Trânsito, em 1997, porquanto se sabe, de conformidade com dados do Ministério da Saúde, que em torno de 150.000 motoristas dirigem bêbados todos os dias. O Denatran informa que o Brasil é o país com mais acidentes de trânsito no mundo, em torno de um milhão por ano, dos quais 50 mil resultam em vítimas fatais. Segundo o noticiário, a fiscalização que se promove nesses primeiros dias de aplicação da lei tem evitado altos percentuais de mortes, principalmente nos fins de semana.

Aliás, segmentos da sociedade já se movimentam no sentido de tentar alternativas que tornem a lei menos dura e mais adequada à cultura do "jeitinho brasileiro".

A Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel Nacional) ingressou no início do mês de julho com Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADIn. 4.103-7 (clique aqui), contra dispositivos da Lei nº. 11.705/08, a lei seca.

Sob o fundamento de que há dificuldades técnico-jurídicas para aplicação das penalidades administrativas previstas, submeter-se ao teste de bafômetro, multa, retenção do veículo, suspensão do direito de dirigir, os tribunais têm concedido liminares para não obrigar o motorista ao referido teste, nem as penalidades anunciadas, sob o fundamento maior de que "toda pessoa acusada de um delito tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma nem a confessar-se culpada"; assegura a inexistência de ilícito; situa a ilegalidade do procedimento em casos nos quais o condutor do veículo não aparenta estar sob a influência do álcool. Admite-se a aplicação da lei se o motorista for flagrado em aparente estado de embriaguez, exteriorizado por dirigir em ziguezague ou caso o condutor se mostre cambaleante. Alegam que os exames clínicos não se revelam aptos para atender às exigências da legislação, porque fixado critério técnico e objetivo. Mostram desrespeito a preceitos constitucionais, a exemplo do inc. LVII, art. da Constituição (clique aqui).

Registre-se que quase todas as decisões ainda não analisaram o mérito da questão, salvo uma ou outra, como a que trancou ação penal contra jornalista que se recusou a se submeter ao teste de bafômetro.

Outro entendimento, entretanto, é esposado por quem faz interpretação calcada na finalidade da lei e não simplesmente pela sua literalidade; a compreensão é a de que a lei procura coibir pessoas embriagadas no volante de carro, porque se coloca em risco a vida de todos os cidadãos; preserva-se assim o bem maior, que é a vida. O infrator merece enquadramento na lei e punição, porque essa atitude, dirigir sob o efeito de bebida alcoólica, implica em se voltar contra a sociedade. Ademais, o carro constitui arma perigosa e não pode ser entregue à irresponsabilidade de quem bebe para dirigir, ceifando com a vida de pessoas inocentes que querem continuar vivas.

É certo que quem dirige não deve beber e quem bebe não deve dirigir. Por isto há de ser encontrado um meio para impedir a direção perigosa e não simplesmente condenar a legislação ou obstruir sua aplicação.

A insurgência contra a lei parte das pessoas mais abastadas que estão impedidas de comparecerem a festas e jantares e depois sair dirigindo seus próprios carros, como tem sido comum; entre o povo mais simples, ganhou a simpatia e é aplaudida até mesmo por proprietários de bares, por causa dos efeitos benéficos mostrado pela mídia.

Ademais, a lei tem natureza pública, é de interesse social e se destina a inibir que o cidadão, beneficiado com autorização para dirigir, viole o direito das pessoas que nem carro têm para se movimentar nas ruas, área comum do povo. A lei, como alguns reclamam, não deve ser feita para preservar a diversão de uns poucos, nos jantares, nos aniversários, nos casamentos, mas para garantir o sossego da maioria que se desloca para as empresas e escritórios onde trabalha e pode não retornar às suas casas, dada a irresponsabilidades dos que saem para distrair.

Constata-se que a lei está em conformidade com o tratamento dispensado pelo mundo atual e progressista na luta contra a associação da bebida à direção. Segue leis dos países nórdicos, a exemplo da Suécia, do Oriente, como Emirados Árabes, Jordânia, além de alguns países europeus, como Hungria e Romênia; na verdade, situa-se entre as mais duras de todo o mundo. São 18 países entre os 82 pesquisados por instituto americano que proíbem dirigir com até dois decigramas de álcool no sangue.

No Qatar, Golfo Pérsico, o estrangeiro é deportado se pego dirigindo com álcool no sangue.

Na Argentina e no Uruguai a concentração permitida varia de cinco decigramas a oito por litro; na Alemanha, França e Espanha o limite é de cinco decigramas; nos Estados Unidos, a depender do Estado, o limite fica entre um a oito decigramas.

A tese de inconstitucionalidade da lei, sob o argumento de que não se pode obrigar o infrator a produzir prova contra si mesmo, encontra explicações suficientes no fato de que a autorização para dirigir origina-se da administração pública, que possui o poder de polícia em benefício de toda a comunidade, fundamentalmente em ação de alto risco; esta permissão não pode nem deve continuar para quem desrespeita as regras no uso de máquina mortífera. Considere-se também que a infração cometida produz maior prejuízo do que o benefício processual que anula a prova obtida por meios ilícitos.

Há alguma similitude com a investigação de paternidade, quando se conclui que a recusa para se submeter ao teste do DNA, pode implicar na aceitação da paternidade.

A igualdade de todos perante a lei sem distinção de qualquer natureza, a inviolabilidade do direito à vida, à segurança são princípios maiores proclamados pela Constituição e prestam-se para inadmitir a alegação de inconstitucionalidade da lei seca. Ademais, a presunção de inocência está assegurada, mesmo porque as providências imediatas são de natureza cautelar e estão sujeitas ao crivo da justiça.

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Desembargador do TJ/BA





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