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Direito Adquirido, Cláusula Pétrea e o STF

A proteção ao direito adquirido foi incluída pela Constituição democrática de 1988 no elenco dos direitos fundamentais ( art. 5º, XXXVI - "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada), com a vedação da reatroatividade das leis em prejuízo das situações jurídicas consolidadas e preexistentes à edição e vigência do ato legislativo. Essa proibição firmou-se como tradição entre nós desde a Constituição Republicana de 1891, ao dispor, no art. 11, que à União e aos Estados é vedado "prescrever leis retroativas".

sexta-feira, 3 de setembro de 2004

Atualizado em 1 de setembro de 2004 14:38

Direito Adquirido, Cláusula Pétrea e o STF


Carlos Roberto Siqueira Castro*

A proteção ao direito adquirido foi incluída pela Constituição democrática de 1988 no elenco dos direitos fundamentais ( art. 5º, XXXVI - "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada), com a vedação da reatroatividade das leis em prejuízo das situações jurídicas consolidadas e preexistentes à edição e vigência do ato legislativo. Essa proibição firmou-se como tradição entre nós desde a Constituição Republicana de 1891, ao dispor, no art. 11, que à União e aos Estados é vedado "prescrever leis retroativas". Trata-se de exigência da segurança jurídica alçada em garantia supralegal pelos mais respeitáveis diplomas constitucionais e pelas declarações de direitos humanos da era moderna e contemporânea. Sob tal inspiração, o impedimento à retroeficácia temporal das leis já estava previsto na Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, na dicção do art. 1º, seção 9, item 3, ao vedar a edição de "ex post facto law". Assim também o fêz, no instante culminante da era liberal, a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 7º), a propósito da indispensável anterioridade da lei penal em relação aos fatos objeto de incriminação, ao prescrever que ninguém pode ser punido se não em virtude de lei promulgada anteriormente ao cometimento do delito. Em suma, no estágio civilizatório de avanço humanista, o caráter prospectivo (e não retroativo) das normas jurídicas passou a ser considerado atributo essencial das regras de direito, como imperativo da justiça diante da fluência do tempo e, especialmente, para se evitar arbitrariedades casuística por parte do legislador. As exceções a tal princípio são mínimas e sempre de caráter benéfico, sendo de mencionar a que permite a retroação da lei penal com o propósito de excluir o crime ou minorar a pena (Constituição, art. 5º, XL - "a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"), ou ainda, no campo da tributação, a que a consente a aplicação da lei tributária mais benevolente ao contribuinte, nos moldes do art. 106 do Código Tributário Nacional.

Essa proteção ao direito adquirido foi ainda mais enaltecida, com excelentes razões, pelo constituinte de 1988. Inovando o sistema vigorante no regime ditatorial pós-64, em boa hora a nova Constituição cuidou de acrescentar os direitos fundamentais dentre as chamadas cláusula pétreas (art. 60, § 4º, IV), ou seja, dentre as matérias intocáveis e insuscetíveis de alteração até mesmo por reforma constitucional, através de emenda à Constituição. Ao assim fazer, o Poder Constituinte originário impediu a aprovação de emendas constitucionais inconstitucionais, vale dizer, de emendas atentatórias de tais cláusulas intangíveis. A previsão de cláusulas pétreas é também antiga e coincide com o advento das constituicões liberal-democratas. Assim é que a bicentenária Constituição dos Estados Unidos impede a promulgação de emendas constitucionais que atentem contra o modelo federativo e contra a igualdade da representação dos Estados no Senado da República. Idêntica prescrição foi adotada no art. 90, § 4º, pela Constituição brasileira de 1891, sabidamente influenciada pelo modelo norte-americano. A nossa Carta Política em vigor, sem nenhum exagero e inclusive com parcimônia diante de outros estatutos constitucionais de prestígio, deixou ressalvado do poder de reforma constitucional apenas o núcleo mais essencial da Constituição, aquilo que Carl Schmitt, na Alemanha de Weimar, designava de decisões políticas fundamentais, a saber a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Esse tema foi recentemente agitado ao ensejo do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 3105 e 3128) acerca da contribuição previdenciária dos servidores inativos. O noticiário da imprensa em algum momento deu a sugerir que a proteção ao direito adquirido e que o instituto das cláusulas pétreas tivessem sido desmerecidos pela Corte guardiã da Constituição. Isto, porém, felizmente, jamais ocorreu. A conclusão da maioria vencedora, integrada por sete eminentes Ministros, que de um modo geral acompanharam o voto do Ministro Cesar Peluso, foi no sentido de que as contribuições previdenciárias, hoje denominadas contribuições de seguridade social, são espécies tributárias, ou seja, ostentam a natureza de tributo. Em conseqüência, nenhum contribuinte poderia invocar um suposto direito constitucional a não ser tributado, vez que a exclusão da tributação só pode ser estabelecida mediante regra de imunidade fiscal, esta de obrigatória previsão constitucional. Em síntese, inexiste direito a não ser sujeito passivo de obrigação tributária, a menos que a pessoa, física ou jurídica, seja beneficiária de imunidade. Considerou-se, além disso, já agora com o apoio da EC 41/03,que o financiamento da seguridade social é informado pelo princípio da solidariedade e que o regime de previdência do servidor é de caráter contribuivo e solidário, de tal sorte que toda a sociedade, aí incluída a categoria dos aposentados e pensionistas, deve contribuir para a respectiva fonte de custeio. Sem questionar, por ora, o mérito desse julgado, que a mim causou intensa perplexidade, por isso que sobremodo sensibilizaram-me as razões dos doutos Ministros que formaram a minoria vencida, é certo que a discussão travada na Suprema Corte nem de longe abalou a tradição brasileira de proteção ao direito adquirido e de solene respeito às cláusulas pétreas. Do contrário, estaríamos todos diante de um lamentável retrocesso e de conseqüências funestas para a segurança das relações jurídicas em nosso País.

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* Advogado do escritório Siqueira Castro Advogados



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