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Festival de São Firmino, Farra do Boi, Touradas, Rodeios, Rinhas e outras manifestações culturais: a função cultural da fauna sob o enfoque antropocêntrico da CF/88

As comemorações de São Firmino se celebram anualmente na cidade espanhola de Pamplona. Os festejos começam dia 6 de julho, às 12 horas, com o chupinazo (foguete) da sacada do Palácio do Governo Municipal, e terminam à zero hora de 14 de julho. Tornaram-se mundialmente conhecidas através da famosa Corrida de touros, que consiste numa corrida de 800 metros, pelas ruas principais do centro histórico, que culmina na Praça de Touros da cidade.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Atualizado em 22 de julho de 2009 11:09


Festival de São Firmino, Farra do Boi, Touradas, Rodeios, Rinhas e outras manifestações culturais: a função cultural da fauna sob o enfoque antropocêntrico da CF/88

Danilo Pereira*

As comemorações de São Firmino se celebram anualmente na cidade espanhola de Pamplona. Os festejos começam dia 6 de julho, às 12 horas, com o chupinazo (foguete) da sacada do Palácio do Governo Municipal, e terminam à zero hora de 14 de julho. Tornaram-se mundialmente conhecidas através da famosa Corrida de touros, que consiste numa corrida de 800 metros, pelas ruas principais do centro histórico, que culmina na Praça de Touros da cidade. As corridas começam às 8 horas da manhã e duram, normalmente, de três a quatro minutos, entre os dias 7 a 14 de julho. Como ocorrem todos os anos, voltam a baila as discussões e ataques à tal manifestação cultural, especialmente de grupos e organizações de defesa dos animais. As críticas não são poucas, e acirradas. Especialmente quanto aos maus tratos a que sofreriam os animais durante todas as comemorações.

No Brasil, como em várias outras partes do mundo, cultura muito semelhante é a "Farra do Boi" que acontece em Santa Catarina. Já manifestou-se o STF contrário à prática em solo brasileiro. Por sua maioria de votos, a 2ª Turma, sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, vedou referido costume, determinando ao Estado de Santa Catarina que impeça "essas práticas atentatórias". Porém, convém aqui destacar o voto vencido do então Mininistro Maurício Corrêa, que em verdadeiro relatório quixotesco, deferia a manifestação cultural, verbis: "(...) Desta forma, como costume cultural, não há como coibir a denominada 'Farra do Boi', por ser uma legítima manifestação popular, oriunda dos povos formadores daquela comunidade catarinense. Os excessos, esses sim, devem, ser reprimidos, para que não se submetam o animal a tratamento cruel. Mas esta é outra história." (RE 153531-8 - J. 3/6/97). Não há como deixar de retornar ao assunto fazendo uma breve digressão da importância da fauna em seu aspecto cultural, especialmente em um país de vasta miscigenação e de costumes arraigados como pano de fundo à sanidade psíquica de grupos multiculturais formadores da sociedade brasileira. Em breves e não exaustivas linhas, desenvolveremos o conflito entre meio ambiente natural e cultural, ambos de mesmíssima proteção hierárquica na Carta Magna, obtemperando o alcance da perpetuação da proteção cultural.

Definição legal de meio ambiente

O termo meio ambiente já nos informa que se trata de algo que nos cerca, porém a definição legal vem estampada no artigo 3º, I, da lei 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente - (clique aqui), sendo essa definição ampla que foi recepcionada pela CF/88, já que a Carta Magna tutela não só o meio ambiente natural como também o meio ambiente artificial, o cultural e o do trabalho, além do patrimônio genético. Vejamos a transcrição do artigo citado:

"Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:

I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas."

Tal conclusão da recepção desta Lei é firmada pelo artigo 225 da Carta Magna, vejamos:

"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Assim, percebe-se, que o legislador resguardou e tutelou um objeto ambiental imediato que é a qualidade do meio ambiente e outro objeto ambiental mediato que é a sadia qualidade de vida.

Bens ambientais

A CF/88 reporta-se ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao qual, todos são titulares desse direito. Para obter a definição do que seja um bem ambiental disciplinado pela CF/88, devemos observar dois aspectos que estruturam constitucionalmente o bem ambiental: bem comum de uso do povo e bem essencial à sadia qualidade de vida.

Bem de uso comum do povo

Os bens de uso comum do povo são aqueles que podem ser desfrutados por qualquer pessoa dentro dos limites fixados pela CF/88. Desta forma não importa a titularidade do bem, o seu uso pode ser feito por qualquer pessoa nos limites legais, não cabendo assim a ninguém dispor ou transacioná-lo, e desde que asseguradas as mesmas condições do bem desfrutado para as próximas gerações.

Bem essencial à sadia qualidade de vida

Para saber o que é ter uma sadia qualidade de vida temos que observar os próprios fundamentos da República Federativa do Brasil enquanto estado democrático de direito. Um destes fundamentos é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III CF/88). Assim, fácil é a compreensão de que ter uma vida sadia é ter uma vida com dignidade. O que seria vida digna? A resposta para essa questão está no artigo 6º da CF/88: "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta CF/88." Desde que respeitadas as garantias neste dispositivo expostas, que constituem um piso vital mínimo, e que devem ser asseguradas pelo Estado para a garantia da sadia qualidade de vida, o bem estará tutelado. Pode-se definir bem ambiental como o bem de uso comum do povo, que por constituir o piso vital mínimo, é tido por essencial à sadia qualidade de vida, logo, podendo ser desfrutado por toda e qualquer pessoa, dentro dos limites constitucionais.

A titularidade dos bens ambientais

Com o surgimento da lei 8.078/90 - clique aqui (que não é só a lei de proteção ao consumidor: "Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências") que veio orientada pela CF/88, houve a fundamentação infraconstitucional que embasa a natureza jurídica de um novo bem, que não é público e nem privado, instituindo o denominado bem difuso. O direito difuso é tido como transindividual, pois as pessoas titulares desse direito são indeterminadas e ligadas pela circunstância do fato, conforme estabelece o artigo 81, § único, inciso I, da Lei em apreço, senão vejamos:

"Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em Juízo individualmente, ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:

I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;"

Ao analisar o artigo 225 da CF/88, verifica-se que o texto constitucional quando estabelece "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida", está estabelecendo um direito difuso voltado a pessoas indeterminadas e ligadas pelo mesmo fato, e no decorrer dos artigos elencados na Carta Magna, fazem coro com outros direitos difusos estabelecidos. Este mesmo dispositivo constitucional (art. 225) ainda informa, corroborando nossa afirmação, que todos tem direito ao meio ambiente, demonstrando tratar-se de um direito difuso, que por sua vez não é público e nem particular. Conforme ensinamentos do Professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo "Uma vida saudável reclama a satisfação de um dos fundamentos democráticos de nossa CF/88, qual seja, a dignidade da pessoa humana, conforme dispõe o ar. 1º, III. É, portanto, da somatória dos dois aspectos: bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida, que estrutura constitucionalmente o bem ambiental." (Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 7ª edição. p. 60.). Desta forma o meio ambiente não é patrimônio público, e nesse ponto novamente utilizamos o escólio de Celso Fiorillo, senão vejamos: "Não se pode olvidar, como critério diferenciador, que o bem público tem como titular o Estado (ainda que deva geri-lo em função e nome da coletividade), ao passo que o bem de natureza difusa repousa sua titularidade no próprio povo." (op. cit., p. 162).

Fauna

O meio ambiente natural ou físico é composto por solo, água, ar atmosférico, flora e fauna. Concentra o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e meio em que vivem. A Fauna apresenta diversas funções no ecossistema: ecológica, científica, recreativa e a função cultural. Inicialmente convém destacar que a lei 9.985/00 (clique aqui), que regulamenta o artigo 225 da CF/88, em seu artigo 2º, inciso XI, nos trouxe a definição do que seja exploração sustentável para viabilizar a preservação do meio ambiente natural: "Uso sustentável: exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos ambientais renováveis e dos processos ecológicos, mantendo a biodiversidade e os demais atributos ecológicos, de forma socialmente justa e economicamente viável;" Quer dizer, não há na lei vedação à exploração do meio ambiente, mas sim a ordem que este seja explorado de forma sustentável. Ou seja, o Meio Ambiente serve à exploração. Para desenvolvermos o tema, deve-se partir da premissa de que não existe em nosso sistema um direito exclusivamente contemplativo do meio ambiente, como que colocado em uma redoma de vidro para ser admirado. Nesse contexto, uma das formas de exploração do meio ambiente esta atrelada à sua função cultural.

Função cultural da fauna

O Brasil é um país de muita miscigenação, muitas culturas derivadas dos diversos grupos que formam a sociedade brasileira. A fauna ainda é um instrumento utilizado como forma de preservação dessas culturas. A questão pano de fundo do presente estudo envolve o conflito das práticas cruéis ao qual são submetidos os animais, e o direito a perpetuação das tradições e culturas. De um lado protege-se o meio ambiente, e, logo, a Fauna que o compõe. De outro, protege-se as tradições culturais de um povo cujos artigos 215 e 216 da CF/88 revelam a tutela imediata deste direito. Logo, há conflito entre o meio ambiente natural e o meio ambiente cultural, ambos tutelados pela Magna Carta. Questão tormentosa, que demanda argumentos apaixonados para todos os lados. Pois bem, devemos novamente fazer a leitura do artigo 225, caput da CF/88:

"Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."

Não há como se negar a visão antropocêntrica do direito ambiental no sentido de uma finalidade desta preservação com propósito de garantir o bem estar humano. Quer-se dizer, que a razão de defender ou resguardar os animais e não permitir-se crueldade contra eles tem o significado de manter a saúde psíquica do homem que não lhe permitiria ver, e assim sentir, um animal sendo objeto de práticas cruéis, sofrendo em razão destas. A tutela da crueldade contra animais fundamenta-se no sentimento humano, porque o homem é o sujeito de direitos.

Não se pode proibir o homem de desfrutar do meio ambiente porque isso implica em restringir sua utilização, que, como visto, é bem essencial à sua sadia qualidade de vida. Disto, pode-se concluir que somente haverá crueldade contra animais quando estes forem submetidos a um mal cuja prática não mantenha qualquer relação com o bem estar do homem ou quando apesar de existir essa finalidade, a prática vá além do absolutamente necessário. Ou seja, a crueldade só estará caracterizada se a prática contra o animal não tiver por finalidade proporcionar ao homem uma sadia qualidade de vida, ou na hipótese de estar presente esse propósito, os meios empregados não forem os absolutamente necessários à atividade. E quando falamos em sadia qualidade de vida, que encerra o piso vital mínimo citado, nos reportamos, também, à saúde psicológica do homem.

Nesse diapasão, para bem viver em sociedade deve o homem ter direito a manter e praticar as tradições e regras culturais de seu povo. Assim, no conflito entre meio ambiente natural e cultural na utilização de animais em atividades culturais, cremos que não há uma prática cruel pura e simples, mas, a submissão de animais à práticas embasadas em sentimento de cultura de um povo, fato este que se encontra distanciado do sentimento ético e moral que recai na crueldade contra animais e a afetação da saúde psíquica daquele grupo. Mesmo que em outras regiões brasileiros não concordem com a prática, não subsiste os maus tratos. Isso porque a verificação da cultura se faz mediante a identificação de valores de uma região ou população, e não de toda população de um país, porque, como dito acima, o Brasil é um país de enorme miscigenação e vasta quantidade de culturas, inclusive, dentro de mesma região.

Analisando o verso abaixo, pode-se verificar algo normal para a maioria da população, mas para alguns não passaria de uma verdadeira barbárie.

"Deitados, imóveis, todos à sua volta a observar.

Flores e frutas ornando, família unida à rezar.

Terminada a prece, lábios a salivar.

Era só o leitão, crocante, que com uma maçã na boca, seria o jantar.

Ao seu lado, o peru, que ainda ontem, fazia glu-glu."

Basta imaginar que estes animais ficaram por um ano inteiro sendo engordados para servirem de alimento na ceia e, muita vez, confinados em ambientes apertados exclusivamente para obter peso rapidamente e a carne tornar-se mais macia. Porém, admitimos isso por uma questão cultural, mesmo sabendo que tal seria desnecessário para nos alimentarmos. Talvez, para alguns, tal seja expressão de um povo incivilizado, mas nem por isso pode-se imputar, para quem assim age contra os animais, uma prática criminosa.

Em arremate, em práticas culturais que demandem a utilização de animais que tragam a identificação de valores da cultura de um povo, não há que se falar em crueldade, v.g., na farra do boi, nos rodeios, nas práticas indígenas e práticas religiosas afro brasileiras (umbanda e candomblé), ou mesmo nas rinhas disseminadas nas regiões norte e nordeste. Caso a finalidade seja exclusivamente mercadológica ou desafeta às tradições de nosso patrimônio cultural (v.g., trazer para o Brasil a tourada, ou uma cidade que não tenha determinado traço cultural e 'importe' de outra a prática por questões turísticas), ou se os animais utilizados estiverem em extinção, tais práticas serão vedadas, pois deixa de existir o aparente conflito entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, porquanto não existem tais valores culturais a serem privilegiados, prevalecendo a defesa da natureza.

Há uma tendência em adequar as manifestações culturais diante da fauna no sentido de harmonizar nossas práticas em proveito da dignidade da pessoa humana. Basta verificar, quanto ao Rodeio, uma lei infraconstitucional - lei 10.519/02 - que promove e regula essa manifestação cultural, dando o legítimo regramento e a sua compatibilização jurídica com o meio ambiente natural em face do meio ambiente cultural e do trabalho. Neste último caso (meio ambiente do trabalho) não se pode desconsiderar o poder econômico advindo desta atividade, onde, o público chega a ser maior que ao público que acompanha o futebol nos estádios brasileiros.

Em 1997, diante 1200 competições de rodeio no Brasil, verificou-se a reunião de 24 milhões de espectadores, sete vezes mais que os jogos do Campeonato Brasileiro de Futebol no mesmo ano (Fiorillo, op. cit., p. 135). Por isso, fazemos nossas as conclusões retiradas da parte final do voto vencido do Min. Maurício Corrêa: "os excessos, esses sim, devem, ser reprimidos, para que não se submetam o animal a tratamento cruel. Mas esta é outra história."

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*Professor Universitário. Advogado do escritório Pereira, Maximino, Toledo & Barros Advogados Associados.





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