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Marco Aurélio Mello: A garantia constitucional da liberdade até o trânsito em julgado

Ministro Marco Aurélio Mello revelou-se julgador com apreço ímpar pelas garantias constitucionais, daqueles que não sucumbem aos clamores momentâneos.

Da Redação

terça-feira, 16 de junho de 2015

Atualizado em 1 de junho de 2015 15:43

"Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória."

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

O ministro Marco Aurélio Mello, em cinco lustros de atuação na Suprema Corte, proferiu destacados votos na seara Penal, e um dos mais relevantes tem como cerne a garantia constitucional da não culpabilidade.

O ano era o de 1995 e o processo, o RHC 71.959, que abordou a questão da prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. O processo foi julgado pela 2ª turma da Corte, e o ministro Marco Aurélio era o relator. Votaram no colegiado:

(Da esq. para a dir.: Marco Aurélio Mello, Néri da Silveira, Carlos Velloso e Francisco Rezek)

O recorrente - condenado pelo TJ/RS por estelionato e apropriação indébita - alegou a impossibilidade de se ter a execução da pena antes do trânsito em julgado da decisão - tendo em vista que, ainda que tenha interposto recurso, o tribunal gaúcho determinou o imediato cumprimento da pena.

Analisado o caso pela 2ª turma, o ministro relator ficou vencido. Formaram a maioria o presidente do colegiado, Néri da Silveira, bem como Carlos Velloso e Francisco Rezek, tendo este último substituído o relator na redação do acórdão. Na ementa do julgado restou consignado:

"O julgamento do recurso de apelação, com desfecho condenatório, sem que se tenha o trânsito em julgado da decisão não impede a prisão do réu. O direito do condenado permanecer em liberdade termina com o julgamento dos recursos ordinários. Os recursos de natureza extraordinária não têm efeito suspensivo (artigo 27 - § 2º da Lei 8.038/90). A jurisprudência do STF não vê incompatibilidade entre o que diz a lei e o disposto no artigo 5º - LVII da Constituição Federal."

Princípio constitucional

Ao proferir seu voto, o ministro Marco Aurélio categoricamente sustentou no plenário da turma a primazia do princípio constante no art. 5º da CF.

S. Exa. lembrou o fato de que nem mesmo na esfera patrimonial subsistia a execução definitiva antes do trânsito em julgado da sentença:

"Os atos de força correspondentes à execução esbarram na garantia do juízo pela penhora, não sofrendo o devedor, tal como reconhecido no título executivo judicial, diminuição patrimonial."

O eminente magistrado sustentou que a prisão antes do trânsito em julgado deve estar assentada em decisão fundamentada, que priorize os "interesses da sociedade".

"Admito que o sentenciado possa perder a liberdade, ainda que não tenha ocorrido o trânsito em julgado da sentença. Todavia, é preciso que conste da sentença fundamentação no sentido de que esse recolhimento precoce, antecipado, faz-se no campo acautelador, tenho em vista os interesses da sociedade."

Nessa senda, ponderou Marco Aurélio Mello, se o colegiado que confirmou a sentença considerou que seria pernicioso manter o paciente em liberdade, deveria ter consignado fundamentos que evidenciassem ter sido decretada uma prisão preventiva.

"Está no rol das garantias constitucionais que somente fica assentada a culpa de um cidadão após o trânsito em julgado da sentença condenatória contra ele proferida."

Vencedora

A tese do ministro Marco Aurélio saiu-se vencedora 14 anos após aquele julgado de 1995. De fato, no julgamento do HC 84.078, em 2009, por maioria, o STF - e agora uma posição do pleno - afirmou que a prisão somente ocorre após o trânsito em julgado da decisão condenatória e uma prisão anterior seria cautelar, devendo pois ser demonstrada sua necessidade.

No caso, o paciente era um fazendeiro condenado por homicídio duplamente qualificado. Nesta ocasião, os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie ficaram vencidos, enquanto Gilmar Mendes (presidente), Eros Grau (relator), Celso de Mello, Marco Aurélio, Cezar Peluso, Carlos Britto e Leweandowski aderiram à corrente externada em 1995.

Na ementa deste julgado, fixou-se a tese abaixo:

"A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por isso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão."

Neste julgado, o ministro Marco Aurélio tornou a destacar a relevância do tema ao dizer em plenário:

"Indago: presente a liberdade de ir e vir, perdida a liberdade de ir e vir, vindo o título condenatório a ser alterado mediante recurso, há como se devolver ao condenado a liberdade perdida? Não. Ter-se-á, a meu ver, campo para acionar-se garantia constitucional a revelar caber indenização no caso de prisão à margem da ordem jurídica. (...) Nessas horas em que se busca com afinco a persecução criminal, para não se descambar para o justiçamento, há de haver o apego às franquias constitucionais e legais, geralmente acionadas por aqueles que, ante as vicissitudes da vida, cometeram um desvio de conduta."

Na ocasião, Marco Aurélio inclusive lembrou que tal posicionamento era sustentado há muito nos julgados da turma, segundo o qual não cabe confundir princípios a ponto de "ter-se o embaralhamento, na discussão, da eficácia do recurso com a execução - imprópria no campo penal - de sentença ou decisão/gênero ainda passível de reforma mediante recurso, contrariando-se, a mais não poder, para mim, o princípio da não-culpabilidade".

A questão levantada por S. Exa. no voto é de suma importância e atualidade: no corrente contexto de falência do sistema carcerário brasileiro, associado à lentidão da Justiça e ao sentimento geral de impunidade, a questão da prisão antes do trânsito em julgado está em discussão.

Diante de problemáticas dessa envergadura, e que colocam em risco a sociedade, uma corrente de juristas aventa a necessidade de mitigar o princípio da liberdade do indivíduo, em prol de um princípio de interesse a uma coletividade, qual seja, a execução mais célere de uma sentença condenatória.

Ao mesmo tempo, não há como deixar de citar recentíssima manifestação do ministro Marco Aurélio em julgamento na 1ª turma (junho/2015): "O número de habeas corpus versando a prisão provisória é fruto de a população carcerária provisória nas penitenciárias ter chegado praticamente ao mesmo patamar da população em prisão definitiva." É uma problemática séria e preocupante: de um lado, centenas de presos provisórios por anos a fio sem julgamento definitivo; de outro, condenados que postergam indefinidamente a prisão pela interposição de recursos.

  • Confira a íntegra da decisão no RHC 71.959.
  • Confira a íntegra da decisão no HC 84.078.

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