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Direito, Política e Jurisdição constitucional

Fronteira entre Direito e Política no âmbito das Cortes Constitucionais é objeto de artigo do ministro Barroso

Ministro destaca que, na teoria, interpretar a Constituição é bem distinto de tomar decisões políticas. Na prática, porém, existem zonas de incerteza entre os espaços de atuação.

Da Redação

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Atualizado às 13:33

"Em teoria, interpretar a Constituição é bem distinto de tomar decisões políticas. Na prática, porém, existem zonas de incerteza entre o espaço de atuação dos Tribunais e do Poder Legislativo. Por isso, fronteira entre Direito e política nem sempre é nítida - e certamente não é fixa."

A complexa demarcação de fronteira entre Direito e Política no âmbito das Cortes Constitucionais é tema de ensaio escrito pelo ministro Luís Roberto Barroso, do STF.

 (Imagem: Nelson Jr./STF)

(Imagem: Nelson Jr./STF)

Em mais um de seus festejados artigos, o ministro destaca que, no modelo idealizado de separação de Poderes, juízes não criam o Direito, mas se limitam a aplicar a Constituição e as leis, que são obras de agentes políticos eleitos para esse fim. Porém, na complexidade das sociedades contemporâneas, com seu pluralismo, diversidade e velocidade das transformações, nem sempre é assim.

"Para muitas situações da vida, inexiste uma clara e prévia decisão política do constituinte ou do legislador definindo a solução a ser adotada. Quando isso ocorre, é o próprio juiz que tem que elaborá-la, o que o torna um coparticipante do processo de criação do direito."

Trata-se de texto inaugural do blog IberICONect, do International Journal of Constitutional Law para a América Latina. O texto original pode ser acessado aqui.

Leia na íntegra, em versão em português:

A fronteira móvel: Direito, Política e Jurisdição Constitucional

Luís Roberto Barroso

I. Direito e Política: a distinção essencial

Direito e política são coisas diferentes. Essa é uma distinção essencial para a democracia. A política é feita de vontade, da vontade da maioria. O direito é o domínio da razão, da razão pública, que se projeta na Constituição e nas leis. A maior parte dos países democráticos do mundo tem uma suprema corte ou uma corte constitucional, cuja principal atribuição é interpretar e aplicar a Constituição. Ao fazê-lo, cabe a elas: (i) velar pelo governo da maioria, respeitando e assegurando o respeito à vontade dos que foram legitimamente eleitos para dirigir o país; (ii) resguardar a democracia, impedindo que as maiorias políticas mudem abusivamente as regras do jogo; e (iii) proteger os direitos fundamentais de todos, inclusive os das minorias políticas e sociais1.

Em teoria, interpretar a Constituição é bem distinto de tomar decisões políticas. Na prática, porém, existem zonas de incerteza entre o espaço próprio de atuação dos tribunais e do Poder Legislativo. Por essa razão, a linha divisória entre direito e política nem sempre é nítida e certamente não é fixa2. Traçar alguns de seus contornos é o objeto desse breve ensaio.

II. A complexidade da vida contemporânea

No modelo idealizado de separação de Poderes, juízes não criam o direito, mas se limitam a aplicar a Constituição e as leis, que são obras de agentes políticos eleitos para esse fim. Porém, na complexidade das sociedades contemporâneas, com seu pluralismo, diversidade e velocidade das transformações, nem sempre é assim. Para muitas situações da vida, inexiste uma clara e prévia decisão política do constituinte ou do legislador definindo a solução a ser adotada. Quando isso ocorre, é o próprio juiz que tem que elaborá-la, o que o torna um coparticipante do processo de criação do direito3.

Vejam-se alguns exemplos emblemáticos de situações imprevistas trazidas pelos tempos modernos: a) pode um casal surdo-mudo utilizar a engenharia genética para gerar um filho surdo-mudo e, assim, habitar o mesmo universo existencial que os pais?  b) uma pessoa estava numa fila de transplantes, recebeu o órgão, mas veio a ter uma rejeição. Deve ter uma nova chance ou a fila deve andar? c) pode uma mulher pretender engravidar do marido morto, que deixou sêmen em um banco de esperma, mas não uma autorização expressa para sua utilização? d) deve o médico respeitar a vontade de um adepto da religião Testemunha de Jeová que recuse a transfusão de sangue, mesmo diante do risco de morrer?

Nós vivemos em um mundo fascinante, mas complicado. Houve um caso na França que revela as perplexidades da nossa era. Uma mulher grávida submeteu-se a exame em laboratório para verificar se tinha contraído rubéola, hipótese em que pretendia interromper a gestação. Por erro de diagnóstico, a doença não foi detectada e o filho nasceu com dramáticas complicações físicas e psicológicas. Representada pelos pais, a criança entrou na justiça com pedido de indenização em face do laboratório, sob o fundamento de que tinha o direito de não ter nascido, para que não tivesse que passar pelas provações a que estava submetido. Ganhou a causa! Teve reconhecido o direito de não nascer!!4

Nenhuma dessas questões é teórica. Todas elas correspondem a casos reais, ocorridos pelo mundo afora. Somem-se a essas situações, relativamente insólitas, outras mais comuns, que envolvem colisões de direitos ou de normas constitucionais: livre iniciativa versus proteção do consumidor; liberdade de expressão versus direito de privacidade; ou desenvolvimento nacional versus proteção do meio ambiente. A característica comum a todos esses casos é a inexistência de uma resposta pré-pronta que pudesse ser colhida na legislação. A solução precisou ser construída com argumentos próprios pelo juiz da causa. Evidentemente, está ele sujeito às possibilidades semânticas dos textos normativos e às categorias próprias do Direito. Mas seria ingênuo e insincero procurar escamotear a influência da sua subjetividade pessoal no resultado.

Nesse contexto, a pré-compreensão do juiz - seus valores, seu nível de conhecimento, suas experiências de vida - fará grande diferença5. Há um episódio anedótico que retrata bem como a interpretação é condicionada pela visão de mundo de cada um. Conta-se que o grande jogador de futebol dos anos 60, Mané Garrincha, um homem simples, foi à Itália jogar com a seleção brasileira. Levado a um tour pela cidade de Roma, teria declarado na volta ao hotel: "Não sei por que falam tanto desse Coliseu. É menor do que o Maracanã e está precisando de uma reforma urgente". De fato, sem algumas informações sobre o significado daquele monumento histórico, essa poderia ser uma avaliação razoável.

III. Três papeis das Supremas Cortes

Como visto acima, as cortes supremas e cortes constitucionais zelam pelo governo da maioria, pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais. Para cumprir essas missões, elas desempenham três grandes papeis6:

(i) contramajoritário, que é o apelido que se dá no direito constitucional ao fato de que juízes não eleitos podem invalidar decisões do Congresso ou do Presidente, que foram eleitos pelo povo e, supostamente, representam a vontade da maioria7. Exemplo: no Brasil, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucionais os dispositivos legais que impediam a publicação de biografias não autorizadas;

(ii) representativo, que é o papel que as cortes exercem quando atendem a demandas sociais que tinham amparo na Constituição, mas não foram satisfeitas a tempo e a hora pela política majoritária. Exemplos: nos Estados Unidos, a Suprema Corte considerou inconstitucional lei que criminalizava o uso de pílulas anticoncepcionais quando já avançados os anos 60. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal proibiu o nepotismo, isto é, a nomeação de parentes para cargos públicos de confiança, diante da omissão do Legislativo em editar a lei demandada pela sociedade;

(iii) iluminista, que é o papel que excepcionalmente as cortes constitucionais exercem, contra a vontade do Congresso e mesmo contra a maioria popular, para proteger minorias e avançar a história. Exemplo: no Brasil e em diversos países, os julgamentos que equipararam as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Talvez o exemplo mais notório do desempenho de tal papel tenha sido a decisão da Suprema Corte norte-americana, de 1954, que proibiu a segregação racial em escolas públicas8.  

IV. Limites legítimos da atuação das Supremas Cortes

Embora o material jurídico tenha papel decisivo e limitador das possibilidades de solução, é preciso reconhecer que no mundo do direito inexistem objetividade e neutralidade plenas. Fatores ideológicos têm o seu papel: não em termos de preferências partidárias pessoais, mas porque todo intérprete terá a sua própria compreensão do que seja certo, justo e legítimo. E há, também, fatores institucionais, como a relação com outros Poderes, a interação com a sociedade e a opinião pública, bem como a própria exequibilidade da decisão. Há vasta literatura estadunidense sobre o tema9.

À vista de um caso difícil, para o qual não exista solução inequívoca pré-pronta, a solução precisará ser construída racional e argumentativamente. Isso deverá ser feito à luz dos parâmetros fornecidos pelo sistema jurídico, dos elementos do caso concreto, dos princípios e valores éticos relevantes10 e do espírito do tempo11. Na minha experiência de sete anos como juiz constitucional, tenho um itinerário mental para a solução de casos difíceis, que compartilho aqui:

(i) identificar as normas jurídicas constitucionais e legais que devem influenciar a decisão, avaliando os seus sentidos possíveis (dimensão normativa da decisão);

(ii) verificar se há algum direito fundamental ou bem jurídico constitucional que mereça primazia na solução da questão em julgamento (dimensão deontológica da decisão); e

(iii) ultrapassadas as duas fases anteriores, identificar a solução que melhor realize o interesse público, com a consideração devida a ser dada ao sentimento social (dimensão pragmática da decisão).

Gosto de relembrar que numa democracia todo o poder é representativo. Vale dizer: ninguém exerce poder em nome próprio. Ele deve ser exercido em nome e no interesse da sociedade. E, portanto, o sentimento social pode e deve ser levado em conta, desde que adequadamente filtrado pela Constituição.

V. Palavras finais

No mundo, ninguém deve presumir demais de si mesmo. Nem tampouco ficar aquém do papel que lhe cabe. Há um equilíbrio entre prudências e ousadias que dá legitimidade à atuação dos tribunais. Nem sempre é fácil encontrar esse caminho do meio. Gosto de exemplificar essa busca com uma pequena parábola. Todo mundo na vida está sempre se equilibrando. Vale para pessoas e para instituições, para gente famosa e para gente anônima. Viver é equilibrar-se em uma corda bamba, fazendo escolhas a cada passo. Por vezes, alguém na plateia pode achar que o equilibrista está voando. Não há muito problema nisso, pois a vida é feita de certas ilusões. Mas o equilibrista tem de saber que está se equilibrando. Porque se achar que está voando, ele vai cair. E na vida real não tem rede.

Pois a jurisdição constitucional deve ser prestada do mesmo modo que a vida deve ser vivida: com valores, com determinação, com a leveza possível e com humildade.

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1 John Hart Ely, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, 1981, p. 135 e segs.
2 V. Barry Friedman, The politics of judicial review, Texas Law Review 84:257, 2005, p. 267-269.
3 Aharon Barak, The judge in a democracy. Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 306.
4 França, Corte de Cassação. Acórdão 457, julgado em 17 nov. 2000.
5 Konrad Hesse, Escritos de derecho constitucional. Madrid: Centro de Estudos Constitucionales, 1983, p. 45.
6 Luís Roberto Barroso, Countermajoritarian, Representative, and Enlightened: The Roles of Constitutional Courts in a Democracy. American Journal of Comparative Law 67:109, 2019.
7 Alexander Bickel, The least dangerous branch, 1986, p. 16-23.
8 Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954).
9 V. Jeffrey A. Segal e Harold J. Spaeth, The Supreme Court and the attitudinal model revisited. Cambridge, Cambridge University Press, 2002; Lee Epstein e Jack Knight, The choices justices make. Washington: CQ Press, 1998; Richard Posner, How judges think? Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 19-56. No Brasil, v. Patrícia Perrone Campos Mello, Nos bastidores do Supremo. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
10 Ronald Dworkin, Freedom's law: The moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996, p. 1-12.
11 Paulo Barrozo, The great alliance: history, reason, and will in modern law, Law and Contemporary Problems 78:235, 2015, p. 257-258.
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*Luís Roberto Barroso é ministro do STF do Brasil. Professor Catedrático da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Senior Fellow na Harvard Kennedy School.

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