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Trabalhos modernos | TJ/SP

Relator critica Uber e identifica relações servis: "escravos de ganho"

TJ/SP analisou caso de um motorista que afirmou ter sido bloqueado da plataforma sem direito de defesa. Para o relator, auferir ganhos sem assumir responsabilidades remonta "relações servis".

Da Redação

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Atualizado às 19:27

A 27ª câmara de Direito Privado do TJ/SP deu prazo para que o app Uber reative a conta de um motorista que afirmou ter sido bloqueado sem qualquer comunicação ou justificativa. O relator do caso, desembargador Alfredo Attié, critica as relações modernas que retiram garantias da Constituição: "relações servis, os chamados 'escravos de ganho', no meio ambiente urbano".

 (Imagem: Freepik)

Relator critica Uber e identifica relações servis: "escravos de ganho".(Imagem: Freepik)

Na origem, um motorista acionou a Justiça contra o app Uber alegando que, sem qualquer comunicação ou justificativa, teve o acesso à plataforma bloqueado, passando por diversas dificuldades financeiras, pois ficou impedido de trabalhar. Na ação, ele pediu a reparação por danos morais e materiais e, ainda, o seu restabelecimento na plataforma.

O juízo de 1º grau negou os pedidos do motorista sob o fundamento de que o Uber provou que existiu reclamação de passageiro contra o motorista; a abertura de mais de uma conta, o que era vedado, "de modo que fica evidente o mau uso do aplicativo por ele, portanto, a rescisão contratual se deu por culpa exclusiva deste (autor)", disse o magistrado da 4ª vara Cível de Bauru/SP.

Desta decisão, o motorista recorreu ao TJ/SP. No recurso, ele afirmou que era bem avaliado pelos passageiros e que não houve oportunidade para se defender das acusações a ele dirigidas pelo Uber, após o bloqueio de seu cadastro junto ao aplicativo.

Relações servis: "escravos de ganho"

A insatisfação do motorista foi acolhida pelo desembargador Alfredo Attié, relator do caso. O magistrado registrou que as plataformas de transporte devem, antes da decisão definitiva, e sem prejuízo da manutenção da suspensão determinada inicialmente, viabilizar o direito de defesa ao motorista, "com direito a recurso, independentemente da existência de previsão regulamentar, considerada a eficácia horizontal das normas de direitos fundamentais".

Para o magistrado, pretender auferir ganhos sem assumir responsabilidades, relegando-a ao prestador de serviço em relação subordinada de trabalho, remete não aos padrões contemporâneos de civilização, "mas ao passado triste de relações servis, de que foram exemplo, em nossa história, os chamados 'escravos de ganho', no meio ambiente urbano".

Na decisão, o desembargador explica o termo:

"Escravo de ganho era o nome dado, no Brasil, aos escravos urbanos que exerciam um trabalho e repassavam parte de seus ganhos a seus donos, que estipulavam uma cota mínima desses ganhos a lhes ser entregue pelos escravos. Se o montante não fosse alcançado, o escravo podia ser castigado. Havia diversas atividades que podiam ser exercidas, dependendo da habilidade do escravo, dentre as quais se incluía a de 'carregador de cadeirinhas de arruar', transportando pessoas livres pela cidade. Para exercer esse trabalho, o escravo gozava de certa autonomia e liberdade de locomoção, podendo residir em uma casa qualquer na cidade e só ir à casa do senhor para pagar a diária ou a remuneração semanal estabelecida."

O desembargador diz que tem observado esse tipo de relação atualmente, com a aparência de "modernidade", mas retirando garantias postas na Constituição e devolvendo a mão de obra a estado de dependência relativa, sob a capa do "moderno empreendedorismo". "Desfazer tais ilusões e restaurar a dignidade das relações humanas é função precípua do processo civilizatório do direito", registrou.

Por fim, o relator determinou que o Uber restabeleça a conta do motorista, em 45 dias, e conceda o seu direito de defesa, com direito a recurso, podendo aplicar outra medida mais brandas, especialmente reparadora.

O voto do relator foi acompanhado por todos os desembargadores da 27ª Câmara de Direito Privado do TJ/SP.

Leia a decisão.

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