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Tabu da morte

Enquanto Uruguai legaliza eutanásia, Brasil se afasta do debate

Com nova lei, o Uruguai se torna o primeiro país da América Latina a legalizar a eutanásia; no Brasil, tema segue envolto em silêncio moral e jurídico.

Da Redação

terça-feira, 21 de outubro de 2025

Atualizado às 06:59

"Qual é a sua ambição na vida? Tornar-me imortal e depois morrer." - À bout de souffle (Acossado, Jean-Luc Godard, 1960)

Antônio Cícero e Jean-Luc Godard. O que une os dois não são apenas as obras que deixaram ao mundo, mas a escolha da própria morte. Ambos recorreram a um caminho cercado de silêncio e tabu: o suicídio assistido.

A lembrança desses artistas não é vã: no último dia 15, o Senado do Uruguai aprovou projeto de lei que legaliza a eutanásia em todo o país, tornando-o o primeiro da América Latina a permitir, por via legislativa, que pacientes em fase terminal escolham antecipar a própria morte em condições seguras e controladas.

No Brasil, entretanto, o tema permanece evitado, restrito a discussões acadêmicas e raramente alcança o debate público ou legislativo.

 (Imagem: Arte Migalhas)

Eutanásia é aprovada no Uruguai. No Brasil, há um "silêncio eloquente" a respeito do tema.(Imagem: Arte Migalhas)

Aprovação legislativa

No Uruguai, a proposta batizada de "Lei da Morte Digna" e apresentada pela coalizão de esquerda Frente Ampla foi aprovada por 20 votos a 11, após mais de uma década de debates no Congresso.

O texto, que ainda aguarda regulamentação, autoriza o procedimento para pessoas maiores de idade, cidadãs ou residentes no país, mentalmente capazes e portadoras de doença incurável, ou que vivam em sofrimento físico ou psíquico insuportável, com grave comprometimento da qualidade de vida.

A solicitação deverá ser expressa, voluntária e feita por escrito, na presença de testemunhas.

Diferentemente do suicídio assistido, a eutanásia será executada por um profissional de saúde habilitado, seguindo protocolos éticos e médicos rigorosos.

 (Imagem: El País)

Conforme noticiado pela edição uruguaia do jornal "El País", Uruguai legalizou a eutanásia em votação no Senado.(Imagem: El País)

Termos e condições

Mas para compreender a dimensão do que foi decidido pelo Uruguai, é necessário distinguir com clareza os termos que cercam o debate sobre o fim da vida.

Afinal, falar de eutanásia exige reconhecer suas diferenças em relação a outras práticas, como o suicídio assistido e a ortotanásia, todas relacionadas à morte digna, porém com diferentes graus de intervenção médica e de autonomia do paciente.

eutanásia envolve uma ação direta do médico, que aplica o medicamento responsável pela morte, sempre com o consentimento expresso do paciente e com a finalidade de evitar sofrimento extremo.

Já o suicídio assistido ocorre quando a própria pessoa, em pleno uso de suas faculdades mentais, decide pôr fim à vida com o auxílio de um profissional de saúde, que fornece os meios ou a orientação necessária para a administração de substâncias letais. 

A ortotanásia, por sua vez, não busca abreviar a vida, mas permitir que o processo natural da morte siga seu curso, sem o prolongamento artificial imposto por tratamentos desproporcionais ou fúteis. Nessa situação, respeita-se a vontade do doente e o princípio da dignidade humana, evitando a obstinação terapêutica e preservando a autonomia do paciente sobre as decisões que envolvem o próprio morrer.

Além do Uruguai

Com a nova medida, o Uruguai se junta ao grupo de países que legalizaram a "escolha da morte".

Na América Latina, até então, apenas Colômbia e Equador haviam descriminalizado a eutanásia, ambas por decisão judicial e em contextos bastante restritos.

A Colômbia foi pioneira, ao descriminalizar a prática em 1997 por meio de decisão da Corte Constitucional, e o Equador seguiu caminho semelhante em 2024.

 (Imagem: Tribuna da Imprensa/RJ)

Segundo levantamento da BMA - Associação Médica Britânica, a Suíça é o país mais conhecido por permitir o suicídio assistido, viabilizado por instituições como a Dignitas.

O Código Penal suíço, em vigor desde 1942, autoriza a assistência à morte desde que não haja motivação egoísta, como interesse financeiro ou economia de gastos médicos. A eutanásia ativa, entretanto, segue proibida.

Na Holanda e na Bélgica, leis aprovadas no início dos anos 2000 permitem tanto o suicídio assistido quanto a eutanásia, desde que o paciente esteja consciente, padeça de doença incurável e enfrente sofrimento físico ou mental intolerável.

Na Holanda, o procedimento é permitido a partir dos 12 anos, com consentimento dos pais até os 16; e a Bélgica ampliou, em 2014, a autorização para crianças e adolescentes em situação terminal.

Entre os países europeus que também avançaram, destaca-se a Espanha, que aprovou em março de 2021 sua Lei da Eutanásia, tornando-se o quinto país do mundo a regulamentar o direito à morte assistida.

A norma permite que o médico administre diretamente a substância letal ou que o paciente a autoadministre, disciplinando também o suicídio assistido.

O texto estabelece critérios rigorosos: apenas maiores de idade, espanhóis ou residentes legais há mais de um ano, plenamente conscientes e portadores de doença grave ou incurável, podem solicitar o procedimento.

A decisão deve ser reiterada por escrito em duas ocasiões, com intervalo mínimo de 15 dias, e avaliada por uma comissão de controle.

Além disso, a lei reconhece o direito de objeção de consciência dos profissionais de saúde e garante isenção penal para quem atuar dentro dos parâmetros legais.

Outros países europeus também possuem legislações semelhantes. Luxemburgo, Portugal e Espanha permitem a prática em condições restritas e com controle estatal, enquanto Alemanha e Itália flexibilizaram suas normas a partir de decisões de suas Cortes Constitucionais, que reconheceram o direito de escolha dos pacientes.

Na Espanha

Muito antes de a Espanha aprovar sua "Lei da Morte Digna", o marinheiro e escritor Ramón Sampedro já havia se tornado o símbolo mundial da luta pelo direito de morrer com dignidade.

Sua história abriu caminho para o debate que, duas décadas depois, resultaria na legalização da eutanásia e do suicídio assistido no país.

Nascido em 1943, em Porto do Son, na Galícia, Sampedro sonhava em percorrer o mundo como marinheiro.

Esse sonho foi interrompido aos 25 anos, quando, ao mergulhar no mar, bateu a cabeça em uma pedra e ficou tetraplégico. O acidente o deixou totalmente dependente, capaz apenas de mover os músculos do rosto.

 (Imagem: Reprodução/YouTube)

Na Espanha, Ramón Sampedro foi precursor na luta pelo "direito de morrer".(Imagem: Reprodução/YouTube)

Em 1994 ele iniciou uma batalha judicial para conquistar o direito de morrer assistido, alegando que sua condição física o tornava incapaz de cometer suicídio sem ajuda e que o Estado, ao negar-lhe esse direito, o condenava a uma forma de tortura.

Em suas cartas e entrevistas, Sampedro afirmava: "Viver é um direito, não uma obrigação."

Com o apoio da ativista Aurora Bau, da ADMD - Associação Direito a Morrer Dignamente (ADMD), ele reuniu laudos médicos, petições e depoimentos.

Contudo, o Código Penal espanhol à época considerava crime qualquer forma de auxílio à morte, e os tribunais rejeitaram seus pedidos.

 (Imagem: O Estado de S. Paulo)

Em 12 de janeiro de 1998, aos 55 anos, Ramón morreu por envenenamento com cianeto de potássio, com o auxílio da amiga Ramona Maneiro, que o ajudou a preparar a substância e gravou seu vídeo de despedida - uma última mensagem de serenidade e convicção.

Maneiro foi presa poucos dias depois, mas acabou absolvida por falta de provas. Anos mais tarde, com o crime prescrito, ela revelou publicamente ter participado do ato, descrevendo-o como "um gesto de amor e respeito à vontade de um amigo".

O caso ganhou repercussão internacional e inspirou o premiado filme Mar Adentro (2004), dirigido por Alejandro Amenábar e estrelado por Javier Bardem, que viveu Ramón Sampedro.

A obra, que venceu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2005, levou a milhões de espectadores a discussão sobre autonomia, sofrimento e dignidade no fim da vida. 

Duas décadas após sua morte, a Espanha tornou-se um dos primeiros países do mundo a legalizar a eutanásia, em 2021.

Na Suíça

No eixo europeu, a Suíça já havia transformado em prática o que muitos países ainda tratavam como dilema moral: o direito de decidir o próprio fim. Foi lá que, anos depois, dois artistas - Antônio Cícero e Jean-Luc Godard - encontraram a serenidade de uma partida escolhida.

O poeta e filósofo brasileiro Antônio Cícero fez essa escolha em 2024: foi ao país europeu para realizar a técnica do suicídio assistido.

Membro da Academia Brasileira de Letras, pensador e compositor de algumas das canções mais marcantes da MPB, como "Fullgás", "Para Começar" e "À Francesa". Cícero enfrentava o avanço do Alzheimer, doença que lhe roubava, pouco a pouco, as memórias e a linguagem - suas matérias-primas de criação.

Antes de partir, deixou uma carta de despedida. Nela, escreveu que sua vida se tornara insuportável e que não desejava perder a lucidez que o definia.

Leia a íntegra:

"Queridos amigos,

Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.

Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.

Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.

Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.

Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.

A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas - senão a coisa - mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.

Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.

Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.

Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!"

 (Imagem: Zô Guimarães/Folhapress)

O membro da ABL, Antônio Cícero, optou por realizar eutanásia na Suíça, em 2024.(Imagem: Zô Guimarães/Folhapress)

Seu gesto ecoa o de Jean-Luc Godard, o cineasta franco-suíço que, aos 91 anos, também escolheu morrer por suicídio assistido na Suíça, em setembro de 2022, em decorrência de "múltiplas doenças incapacitantes", segundo sua família.

Godard, um dos fundadores da Nouvelle Vague, marcou a história do cinema mundial com obras como Acossado (1960) e O Desprezo (1963).

Ao optar por encerrar a vida de forma consciente e planejada, o cineasta afirmou o mesmo princípio que guiaria, dois anos depois, a escolha de Antônio Cícero: o de que a liberdade e a lucidez também pertencem ao fim da vida.

 (Imagem: Le Monde)

Jornal francês, Le Mond, noticiou a morte de Godard, por suicídio assistido.(Imagem: Le Monde)

Situação brasileira

Enquanto outros países avançam na regulamentação da morte assistida, o Brasil mantém-se preso a um paradigma jurídico forjado em meados do século passado.

O CP tipifica a eutanásia ativa como homicídio, mesmo quando praticada por compaixão, e considera o suicídio assistido um crime contra a vida (art. 122), punindo quem induz, instiga ou auxilia alguém a tirar a própria vida com pena de dois a seis anos de prisão, podendo dobrar em casos de "motivo egoísta".

Já a ortotanásia, que consiste em permitir o curso natural da morte, sem prolongar artificialmente a vida por meio de tratamentos desproporcionais ou fúteis, é aceita pela doutrina médica e jurídica, embora ainda careça de regulamentação legal específica.

A prática é autorizada pelo CFM - Conselho Federal de Medicina desde a resolução 1.805/06, reafirmada pela resolução 1.995/12, que trata das DAVs - diretivas antecipadas de vontade (testamento vital).

Essas normas permitem que o médico suspenda ou não inicie procedimentos que apenas prolonguem o sofrimento, desde que o paciente esteja em fase terminal, tenha manifestado sua vontade de forma expressa - ou, na impossibilidade, por meio de familiares -, e que a decisão seja registrada pela equipe médica.

Atualmente, as DAVs podem ser registradas em qualquer Cartório de Notas do país - apenas no Estado de São Paulo, já existem mais de 4,8 mil registros, sendo 172 somente em 2024, conforme dados do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo (CNB/SP).

 (Imagem: O Estado de S. Paulo)

Entretanto, como destaca o artigo "Eutanásia: Um estudo sistemático da legislação brasileira", publicado em 2022, na Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, o país ainda vive um conflito entre o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que a legislação penal permanece inalterada desde 1940.

O trabalho aponta que, apesar da aceitação crescente da ortotanásia no campo médico, a influência de valores religiosos e morais ainda é determinante para barrar o avanço legislativo em torno da eutanásia e do suicídio assistido.

Os autores ressaltam que, na ausência de norma específica, a ortotanásia surge como solução intermediária - uma forma ética e humanizada de respeitar a vontade do paciente sem violar a lei.

Para eles, a dignidade humana deve ser entendida como um direito que inclui a liberdade de decidir sobre o próprio morrer, e não apenas como obrigação de preservar a vida a qualquer custo.

No Congresso

PL 236/12, que propõe a reforma do Código Penal, incorpora parte dessa reflexão ao prever a criação de um tipo penal específico para a eutanásia e ao reconhecer explicitamente a ortotanásia como prática lícita.

O texto mantém a punição para quem provoca a morte, ainda que por piedade, mas admite a exclusão de ilicitude quando o ato for realizado com consentimento do paciente terminal e atestado médico de doença irreversível.

Apesar de o projeto ainda aguardar deliberação no Congresso Nacional, especialistas veem nele uma oportunidade de atualizar o ordenamento jurídico e reduzir a insegurança dos profissionais de saúde, alinhando o direito brasileiro às tendências bioéticas internacionais que valorizam a autonomia e o cuidado compassivo no fim da vida.

Fora do projeto de reforma do Código Penal, entretanto, não há avanços concretos no Congresso Nacional, onde as iniciativas sobre o fim da vida permanecem raras e fragmentadas.

O artigo "Práticas de fim de vida: análise bioética dos projetos do Poder Legislativo brasileiro, 1981-2020" publicado na revista "Saúde e Sociedade" analisou quatro décadas de proposições legislativas sobre eutanásia e suicídio assistido no Brasil.

O levantamento abrange o período de 1981 a 2020 e revela que, apesar de tentativas pontuais de regulamentação, prevalece no Congresso uma postura contrária à autonomia do paciente no fim da vida.

A pesquisa, conduzida por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina, examinou 193 documentos disponíveis nos portais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Desses, 15 projetos de lei tratam diretamente de práticas de fim de vida - como a eutanásia voluntária ativa (EVA), o suicídio assistido (SA) e a ortotanásia.

Entre os primeiros, está o PL 4.662/81, que permitiria o desligamento de aparelhos em pacientes em coma terminal, apresentado pelo então deputado Inocêncio Oliveira.

Desde então, as propostas têm oscilado entre tentativas de regulamentação médica e iniciativas para endurecer a punição, chegando a propor a classificação da eutanásia como crime hediondo.

O estudo identifica uma constante: o predomínio de interpretações que tratam a "inviolabilidade da vida" (art. 5º da CF) como princípio absoluto, em detrimento da dignidade da pessoa humana.

Essa leitura, sustentada por bancadas religiosas e setores moralmente conservadores, tem servido de base para bloquear avanços legislativos e impedir consultas públicas sobre o tema.

Para os autores, o cenário brasileiro "expõe o paradoxo entre o direito à vida e o direito de morrer com dignidade".

Eles defendem que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido não imporia obrigações, mas garantiria liberdade de escolha e amparo estatal, reconhecendo o direito à morte digna como extensão do direito à vida.

O artigo conclui que o Congresso tem sido dominado por forças políticas que buscam preservar valores religiosos e morais, muitas vezes afastando o tema do debate público.

Segundo os autores, qualquer avanço dependerá da abertura democrática e do reconhecimento da autonomia individual como núcleo da dignidade humana - o que ainda encontra forte resistência nas instâncias legislativas.

Um levantamento complementar realizado pelo Migalhas nos sites do Senado e da Câmara confirma que são raros os projetos de lei sobre eutanásia, suicídio assistido ou ortotanásia ainda em tramitação no Congresso Nacional.

No Senado, não há atualmente nenhuma proposta ativa sobre o tema. O último projeto identificado foi apresentado em 1996 pelo então senador Gilvam Borges, mas foi arquivado ao término da legislatura, sem chegar a ser debatido.

Na Câmara dos Deputados, apenas dois projetos (PL 6.715/09 e PL 3.002/08) tratam diretamente da ortotanásia, com o objetivo de regulamentar a prática e garantir segurança jurídica a médicos e pacientes. Ambos aguardam designação de relator na CFT- Comissão de Finanças e Tributação.

Outros três projetos apenas tocam indiretamente na discussão sobre o fim da vida.

Entre eles, destaca-se o PL 5.008/09, que proíbe a suspensão de cuidados a pacientes em estado vegetativo, afastando a possibilidade de ortotanásia. Os demais tratam de direitos de pacientes em fase terminal e de regras para o consentimento informado, sem abordar de forma expressa a eutanásia.

Em busca do direito de escolha

Entre os brasileiros que trouxeram o debate sobre o direito de morrer com dignidade ao centro da discussão pública está a jovem Carolina Arruda, de 27 anos, portadora de neuralgia do trigêmeo bilateral - uma condição neurológica rara, frequentemente descrita como "a pior dor do mundo".

A neuralgia do trigêmeo é caracterizada por descargas elétricas súbitas e intensas no rosto, comparadas a facadas ou choques. No caso de Carolina, a forma bilateral e refratária da doença - que afeta ambos os lados e resiste a qualquer tratamento convencional - torna a condição particularmente rara e incapacitante.

Impossibilitada de levar uma vida cotidiana e sem perspectivas de cura, Carolina passou a representar um símbolo do debate brasileiro sobre o direito de escolha no fim da vida.

Em 2024, a jovem ganhou notoriedade ao lançar uma campanha de financiamento coletivo para custear o suicídio assistido na Suíça.

Em seu perfil no Instagram, a biografia em destaque, ressalta a luta:

"Minha escolha é minha autonomia. Minha autonomia é meu direito. Busco e luto pelo direito à morte assistida no Brasil."

 (Imagem: Reprodução/Instagram)

Carolina Arruda, que convive com a "pior dor do mundo", luta pelo direito à eutanásia.(Imagem: Reprodução/Instagram)

Após a mobilização pública, a Santa Casa de Alfenas/MG se ofereceu para tratá-la, promovendo uma série de intervenções experimentais - entre elas, a crioablação do nervo trigêmeo, o implante de neuroestimuladores e de uma bomba intratecal que libera analgésicos diretamente no sistema nervoso central.

As tentativas foram invasivas, caras e fisicamente exaustivas. Ainda assim, a dor permaneceu.

Em agosto de 2025, Carolina passou por mais uma série de procedimentos para tentar controlar as crises de dor que há mais de uma década ditam o ritmo de sua vida.

Foram cirurgias, infusões de cetamina, reposicionamento de dispositivos implantados e até períodos de sedação profunda. Nenhuma das intervenções, porém, trouxe alívio duradouro. "Tudo igual", disse ela, em vídeo publicado nas redes sociais.

Segundo o médico Carlos Marcelo de Barros, responsável pelo tratamento, não há novas alternativas terapêuticas.

A equipe decidiu manter apenas os tratamentos já implantados - como a bomba de fármacos, os eletrodos cerebrais e o acompanhamento psicológico, realizando apenas ajustes pontuais para controle da dor.

"Foram muitas cirurgias, foram muitas tentativas. Já não adianta mais, o nervo está lesionado, então, intervenção cirúrgica a gente não vai mais fazer. Isso não quer dizer que eu vou parar o tratamento. Eu vou continuar do mesmo jeito que eu estou hoje", disse Carolina.

E completou: "E sobre a eutanásia? Eu tô conversando com a minha advogada, as coisas estão caminhando como devem ser, eu ainda preciso de muito laudo, muito detalhe médico, muita tradução de documento, então é um processo demorado".

A arte se antecipa à vida

No último mês, o cinema, antecipou-se à realidade ao tratar daquilo que o Direito nacional ainda hesita em nomear.

O filme Sonhar com Leões, coprodução entre Brasil, Portugal e Espanha, dirigido por Paolo Marinou-Blanco e estrelado por Denise Fraga, traz à tela o delicado tema da morte assistida.

A trama acompanha Gilda, uma imigrante brasileira que vive em Lisboa e, ao descobrir um câncer cerebral inoperável, decide que quer morrer enquanto ainda reconhece a si mesma. Em meio à dor e à lucidez, ela se aproxima de uma organização clandestina que auxilia pacientes terminais a planejar o próprio fim.

Com sutileza e humor, o filme evita o discurso moral e mergulha na humanidade das escolhas difíceis, mostrando que o desejo de partir também pode ser um gesto de amor-próprio e de liberdade.

Mais do que uma ficção, Sonhar com Leões funciona como espelho das inquietações contemporâneas - um lembrete de que a arte segue abrindo espaço para as perguntas que o Legislativo brasileiro ainda evita enfrentar: é possível morrer com dignidade?

Silêncio eloquente

Além de tabu, a relação dos seres humanos com a morte é, antes de tudo, paradoxal. Não basta viver - é preciso viver bem, com autonomia e dignidade.

Portanto, o debate da eutanásia não deve se concentrar apenas no desejo de viver, mas também no direito de partir.

As histórias de Antônio Cícero, Jean-Luc Godard, Ramón Sampedro e Carolina Arruda não pertencem à ficção: são narrativas reais de pessoas que reivindicaram o controle sobre o próprio fim.

Todas revelam uma mesma inquietação - a busca por liberdade diante do sofrimento e o desejo de transformar o morrer em um ato de consciência, não de desespero.

Nesse contexto, o Direito brasileiro ainda observa o tema a uma distância "segura", hesitante diante da pergunta essencial: até que ponto o Estado pode - ou deve - interferir na decisão individual de não mais sofrer?

Enquanto o Uruguai se torna o primeiro país da América Latina a legalizar a eutanásia por via legislativa, o Brasil segue atado a uma estrutura penal de 1940, na qual a vida é tratada como valor absoluto e inquestionável, mesmo diante da dor insuportável.

Mas em uma era em que a medicina é capaz de prolongar a existência para além do que a dignidade suporta, cresce a percepção de que viver não é apenas permanecer, e que proteger a vida também significa respeitar a vontade de quem a vive.

Entre o impulso de preservar a vida e o dever de respeitar a liberdade, o Brasil continua no limiar do silêncio - observando, talvez com receio, o avanço dos que ousam discutir o direito de morrer com dignidade.

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Referências

EICH, Melisse; VERDI, Marta; FINKLER, Mirelle; MARTINS, Pedro Paulo Scremin. Práticas de fim de vida: análise bioética dos projetos do Poder Legislativo brasileiro, 1981-2020. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 33, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902024220871pt. Acesso em: 20 out. 2025.

OLIVEIRA, Adriana; ROBERTO, Cláudio; HENRIQUES, Diogo; ASSUMPÇÃO, Emily; GOMES, Fábio; MOTA, Fernanda; BARROSO, Maximiliam; MACEDO, Verônica. A ortotanásia sob a luz do sistema jurídico e social brasileiro. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, Belo Horizonte, v. 2, n. 21, p. 336-344, 2013. Disponível em: https://bdjur.stj.jus.br/entities/publication/ed15a7b4-f986-4bbb-b26f-4dbd34f42a6b. Acesso em: 20 out. 2025. 

SANTOS, Alfredo Pimentel Silva; SILVA, Camila de Sousa da; ALMEIDA, Mayara Yule Martins; VERNECK, Marcos Nunes Silva. Eutanásia: Um estudo sistemático da legislação brasileira. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação, [S. l.], v. 8, n. 6, p. 1098-1113, 2022. DOI: 10.51891/rease.v8i6.6040. Disponível em: https://periodicorease.pro.br/rease/article/view/6040. Acesso em: 20 out. 2025.

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