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Julgada improcedente ação de indenização movida por Suzane Von Richthofen contra a Fazenda Pública do Estado de SP

Em 2007, a Procuradoria Geral do Estado de SP contestou duas ações de indenização por dano moral movidas por Suzane Von Richthofen contra o Estado.

Da Redação

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Atualizado às 12:13


Em primeira mão...

 

Julgada improcedente ação de indenização movida por Suzane Richthofen contra a Fazenda Pública do Estado de SP

 

Em 2007, a Procuradoria Geral do Estado de SP contestou duas ações de indenização por dano moral movidas por Suzane Von Richthofen contra o Estado.

Migalhas, em primeira mão, divulgou, na época, o inteiro teor de uma das contestações, assinada pela procuradora Mirna Cianci (clique aqui).

Suzane buscava reparação de danos morais alegando que em uma rebelião ocorrida na Penitenciária Feminina da Capital ela permaneceu por aproximadamente vinte e duas horas sob forte tensão psicológica e sem se alimentar.

Dois anos depois, o juiz da 8a vara da Fazenda Pública julgou improcedente uma das ações movida por Suzane.

E Migalhas traz, com exclusividade, a íntegra da sentença.

  • Confira abaixo :

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Vistos, etc. Trata-se de ação de rito ordinário em que a autora busca a reparação de danos morais, pois, segundo diz, no contexto de uma rebelião ocorrida na Penitenciária Feminina da Capital, a requerente teria permanecido por aproximadamente vinte e duas horas sob forte tensão psicológica, e mais, sem se alimentar.

A primeira falha apontada no sistema prisional diz respeito à superpopulação carcerária, verificando-se que o Estado, responsável pela guarda e integridade dos presos, no lugar de proteger a autora, não ofereceu local adequado para que ela se instalasse em meio à rebelião, com o que se viram violadas disposições constitucionais e normas da Lei de Execução Penal.

A segunda falha apontada residiria no fato de que a autora mesma teve de procurar um abrigo seguro, pois "sua cabeça estava a prêmio". Pleiteia o pagamento da quantia de R$ 190.000,00, a título de indenização, sustentando que o valor não se revela "escandaloso", pois, além de encontrar-se pautado na segura jurisprudência, deve-se levar em conta o sentido educador e preventivo de reparação, bem como o nível socioeconômico e cultural da vítima, tudo à vista do principio da razoabilidade. Finda por pedir a condenação da requerida ao pagamento da indenização correspondente ao valor de R$ 190.000.00 (cento e noventa mil reais), acrescido de correção monetária e incidentes juros de mora, desde a data do evento, além de custas processuais, e pagamento de honorários advocatícios na base de vinte por cento sobre o valor total da condenação, ao tempo em que pede também a decretação de segredo de justiça.

O pedido de imposição de sigilo foi indeferido, ao tempo em que se determinou a citação, feita a fls. 41. A Fazenda do Estado, contestando o feito, alegou, em síntese, que em momento algum a autora imputou ao Estado de São Paulo qualquer ato que guardasse nexo de causalidade com a rebelião descrita na inicial. O motim teve causa absolutamente diversa. No caso, a prevalecer a versão e o pedido da autora, estar-se-ia acolhendo a teoria do risco integral.

O episódio de indisciplina teve lugar em razão da rivalidade existente entre Aurinete Felix da Silva, a Netinha, mulher do presidiário César Augusto Roriz da Silva, o Cezinha, fundador do PCC, depois excluído da facção, diante da união do casal a um grupo rival, o TCC (Terceiro Comando da Capital) e a Quitéria Silva Santos, de sorte que o excesso de lotação não guarda nenhum liame com os fatos, relevando-se absolutamente ausente o nexo de causalidade entre essa alegada falha da administração carcerária e a suposta ocorrência de dano moral de que teria sido vítima a autora. Quanto a este aspecto, diga-se ainda que não há prova inequívoca do efetivo abalo à esfera íntima da presidiária, não sendo ocioso observar que Suzane Louise von Richthofen não revelou sequer capacidade para sentir dor maior, qual seja, a dor do arrependimento e da perda, sendo de todo razoável supor que não possa sentir dor moral, por conta de episódio de intensidade infinitamente menor, como o relatado da inicial. Prossegue a Fazenda do Estado dizendo que, na dependência do perfil do condenado e da natureza do crime a ele imputado, não há de se falar em honra ou dignidade pelo que não se concebe direito à reparação Pessoas desse tipo descem abaixo da condição de ser humano e, portanto, não fariam jus a qualquer compensação por danos dessa ordem. Pede, assim, o julgamento de improcedência da ação (fls. 64). Em réplica (fls.50 e 51), diz a autora que configurada está a responsabilidade do Estado, ao qual incumbe manter o sistema prisional, mesmo porque provado o nexo de causalidade, já que inexistiria o dano se o motim não tivesse ocorrido, fato que se deu em razão de falha da própria Administração, o que acarreta o dever de indenizar.

Observa ainda a autora que há flagrante contradição entres as teses defensivas, porque a Fazenda do Estado ora afirma que o motim ocorreu em razão de dissidências entre organizações criminosas rivais, ora diz que o único motivo dos fatos era levar a cabo o plano de morte de duas detentas, por razões particulares entre presidiárias. Consideradas as declarações prestadas por agentes da Administração Penitenciária, havia de fato um real perigo de morte, porque as presas ficavam perguntando onde estava Suzane. Aliás, várias detentas queriam usá-la para chamar a atenção.

Em audiência de instrução e julgamento, foram ouvidas três testemunhas indicadas pela autora (fls. 372 a 379) e quatro testemunhas arroladas pela requ erida (fls. 397 a 420), oportunidade na qual os debates foram substituídos pela juntada de memoriais (fls.480). A autora reiterou os termos da inicial, postulando julgamento de procedência ao passo que a requerida, reforçando a tese de que o motim tinha por objeto, única e exclusivamente, dar cabo de duas detentas por motivos que a elas dizem respeito, pede o julgamento de improcedência (fls.481). É o relatório. Decido Como já se consignou por ocasião do saneamento do feito, a preliminar de ilegitimidade de parte, em verdade, diz respeito ao mérito da ação e neste contexto será apreciada. A discussão em torno dos horrores da prisão nasce com o iluminismo. É de La Rochefoucauld a idéia de "colaborar com a administração pública para levar às prisões do reino todas as melhorias que a religião, a moral, a justiça e a humanidade reclamam". Em torno disto se desenvolvia o trabalho da Sociedade Real das Prisões, na França, a partir da Restauração (Cather ine Duprat, Punir e Curar em 1819, A prisão dos filantropos, trad. de Bertha Halpem Gurovitz e Maria Cristina Caponero, in Instituições, Revista Brasileira de História, SP, v.7., nº 14, março/agosto-87, SP. Ed. Marco Zero, p. 07 a 58).

Segundo La Rochefoucauld como outrora evocara Beccaria o detido tem direito à mais rigorosa justiça, "esse eterno dever dos administradores, esse direito eterno dos administrados, não importa em que Estado estejam. É dele a idéia tantas vezes repetida de que o indivíduo, na prisão, não devia perder nenhum de seus direitos essenciais" (idem, ibidem). Mais tarde Bentham, com sua visão utilitarista pretendeu "introduzir uma reforma completa nas prisões, assegurar-se da boa conduta, atual e da correção dos prisioneiros, manter a saúde, a ordem, a limpeza, a indústria, nestas habitações, até o presente infestadas de corrupção moral e física, fortalecer a segurança pública diminuindo a despesa, ao invés de aumentá-la, e tudo isto com uma simples ideia de arquitetura: a construção de um panóptico" (Jeremy, Bentham, Memorial sobre um novo princípio para construir casas de inspeção e, principalmente, prisões, in Instituições, Revista Brasileira de História, SP, v.7., n.º 14, março/agosto-87, SP, Ed. Marco Zero, p. 07 a 58, trad. Ana Edite Ribeiro Montoia). O panóptico nada mais é que uma construção circular da qual o inspetor do presídio teria condições de espiar os presos durante dia e noite, vendo a cela sem condições de ser visto. De lá, poderia advertir os presos fazendo-os sentir sua vigilância, de modo que o inspetor, ele próprio invisível, reinaria como um espírito, podendo, no entanto, quando necessário, dar prova imediata de sua presença real (idem, ibidem).

Mais tarde, caberia a Michel Foucault denunciar, em Vigiar e Punir, a repressão que uma tal ordem de coisas imporia ao encarcerado. O poder segrega, vigia, pune, criminaliza a quem se lhe opõe, não através de um único homem, o diretor do presídio, por exemplo, mas por meio de uma miríade de homens pequenos e médios. E, no limite, todos, desde o guarda do presídio, do enfermeiro ao médico, até o mais alto burocrata, compartilham do exercício daquele poder. Coube a Erving Goffman, por sua vez, no início da década de 60, o estudo dos manicômios, das prisões e conventos, como "instituições totais", de uma perspectiva funcional. Depois de passar em revista uma série de relações existentes nos presídios, suas regras institucionais e oficiosas, Goffman trata dos sistemas de mortificação e humilhação, do tratamento indigno e do sistema de privilégio, tudo a começar pelo próprio processo de admissão do preso, uma espécie de despedida do mundo exterior, marcado pela nudez, momento em que o detento é despojado de seus bens, passando a utilizar uniformes, "que têm a marca da instituição e que, em alguns casos, são recolhidos em intervalos regulares para, por assim dizer, serem desinfetados de identificações" (Erving Goffman, Manicômios, prisões e conventos, SP, Perspectiva, Coleção Debates,, 2.005, p. 28). As relações de castigos e privilégios são no dizer de Goffman "modos de organização peculiares às instituições totais, ligadas geralmente a um sistema de trabalho interno. Quem participa de tentativa de fuga ou de atividades proibidas, tais como brigas, uso de bebidas, jogos, insubordinação, homossexualidade, revoltas coletivas, vai para o castigo. De outra parte, quem se mostra mais disposto a cooperar tem privilégios, podendo ser levado de um lugar para outro. A mudança de cela ou de posto de trabalho é um recurso administrativo para dar castigo ou prêmio. "Os internos são mudados, não o sistema; uma enfermaria ou uma barraca adquirem a reputação de local de castigo para internados muito teimosos, enquanto alguns postos de guarda se tornam reconhecidos como castigo para os funcionários" (Goffman, ob. cit., p. 50 a 52). Erving Goffman termina o capítulo em que trata das instituições totais dizendo que a literatura especializada hoje existente confirmou as suas hipóteses e o modelo por ele proposto para explicar as instituições totais. Arremata dizendo que o estudo indica que há boas razões funcionais para que determinados tipos de ocorrência ou relação se vejam reproduzidos naquelas instituições. Depois de compreendê-las diz ele "penso que elogiaremos e condenaremos menos determinados superintendentes, comandantes, guardas e abades e teremos mais tendência para compreender os problemas sociais nas instituições totais através da (compreensão) da estrutura social subjacente a todas elas" (Goffman, ob. cit., p. 108). Fez-se questão de recorrer a quatro textos clássicos, no tratamento da questão carcerária, para demonstrar que a situação de Suzane Louise von Richthofen, na Penitenciária Feminina da Capital, seguia conforme o modelo vigen te em toda e qualquer instituição total existente no mundo seja ele Ocidental ou Oriental. E a mensagem final de Goffman é suficientemente realista, não deixando espaço para maniqueísmos. A despeito de ter praticado um crime hediondo segundo definição legal, que encontra apoio em previsão constitucional Suzane Louise von Richthofen era uma interna que no dizer de Goffman cumpria as "normas da casa", perfeitamente adaptada àquele "conjunto relativamente explícito e formal de prescrições e proibições que expõem as principais exigências quanto à conduta do internado" (Goffman, ob. cit., p.50). Como prêmio ainda no dizer daquele cientista social Suzane Louise gozava de alguns "privilégios claramente definidos, obtidos em troca de obediência à equipe dirigente" (idem, ibdem). Tanto assim que ela trabalhava cuidando de bebês, filhos das demais detentas, com o que poderia reduzir o cumprimento da pena, valendo-se do instituto da remição (fls. 373), previsto no artigo 126 da Lei de Execução Penal. Mas em todo e qualquer presídio do mundo, na linguagem textual de Erving Goffman, existem as chamadas "panelinhas", relações através das quais os internos passam a ser reconhecidos pelos outros como amigos ou inimigos, cabendo aos dirigentes, conforme lhes convenha para a manutenção da ordem institucional, uma dentre estas três opções: fazer vistas grossas, partir para uma estratégia de reconhecimento "semi-oficial" (tal qual se passa quando um contramestre de navio faz com que pares de amigos tenham período conjunto de guarda) ou simplesmente impedir a formação de grupos primários, quando a aglutinação daquelas pessoas se mostrar desagregadora para o sistema (Goffman, ob. cit., p. 58). Foi o que se passou com Aurinete Félix da Silva e Patrícia Rosa Boni, pessoas pertencentes a facções criminosas rivais, que acabaram se confrontando, apesar dos cuidados adotados pela direção da Penitenciária Feminina da Capita l. Consta que Aurinete Félix da Silva, recolhida provisoriamente na Penitenciária Feminina da Capital, era ligada a César Augusto Roriz Silva, o tal "Cesinha", pertencente ao grupo criminoso autointitulado Primeiro Comando da Capital, um dos ramos do originário PCC.

Com a dissidência, parte daquela organização criminosa deu lugar ao grupo de "Cesinha", mas Patrícia Rosa Boni, que também estava em trânsito, na Penitenciária Feminina da Capital, continuou vinculada ao núcleo do PCC (fls. 373 e 374; 376 e 377). Foi precisamente a passagem de Patrícia Rosa Boni pela Penitenciária Feminina o pretexto para a rebelião. Tratava-se de uma detenta com atitude desagregadora, causadora de confusão, razão por que, quando transferida pelo Coordenador dos Estabelecimentos Penitenciários do Estado de São Paulo, já se encontrava em regime disciplinar mais severo (fls. 381 e 382). Relata Edneuza Bastos Guimarães, Agente de Segurança Penitenciária com dezessete anos de e xperiência no sistema carcerário, que "ninguém quer um preso deste tipo na sua unidade prisional" (referindo-se à conduta e personalidade de Patrícia Rosa Boni), razão por que Patrícia "vivia em trânsito". Quando chegou à Penitenciária Feminina da Capital, como já se sabia da sua má fama, foi colocada "no castigo", mesmo porque, como já se disse, já vinha de um regime disciplinar mais severo por conta do seu mau comportamento (fls. 382). Prossegue Edneuza Bastos Guimarães dizendo que a movimentação de detentas no sistema é uma equação de várias incógnitas, difícil de compor, pois são apenas três penitenciárias femininas no Estado, cada uma delas com cerca de 600 a 700 reclusas, "o que gera uma combinação difícil de alternativas para que reclusas que tenham problemas, umas em relação a outras, fiquem a uma distância segura" (fls. 382). Ainda segundo relato da Agente Penitenciária, Patrícia Rosa Boni, ao saber que Aurinete Félix da Silva tamb ém estava naquele presídio, incitou as demais presidiárias ao levante (fls. 382). No relato da experiente Diretora de Presídio, Maria da Penha Risola Dias (que começou sua carreira como guarda de presídio, há quase quarenta anos atrás, assumindo as funções de Professora, Chefe de Educação, diretora de diversos departamentos, até chegar a Diretora Geral em três presídios femininos), não havia, na rebelião ocorrida em 24/08/04, uma trama urdida, uma tragédia anunciada. Tudo se deu de uma hora para outra. Reproduzindo o relato de sua subordinada, Edneuza, conta a Diretora Geral que Aurinete Félix da Silva e Patrícia Rosa Boni, pertencentes a grupos rivais, estavam em trânsito, ambas isoladas (fls. 368). Chegou a sugerir ao Coordenador dos Estabelecimentos Penitenciários, sabedora da rivalidade existente entre as detentas, que Patrícia Rosa Boni não fosse transferida, nem mesmo em trânsito, para a Penitenciária Feminina da Capital, mesmo porque se cogitava da permanência de Aurinete Félix da Silva, que a princípio também estava de passagem. Antes que a decisão viesse, eclodiu a "rebelião", ocorrência que o próprio Secretário dos Assuntos Penitenciários tratava como "movimento de indisciplina", e não propriamente como "rebelião" pois não havia reivindicações (idem). Importante dizer, a esta altura, que o Estado, representado, naquela unidade prisional, pela Diretora do Presídio, fez-se presente o tempo todo. Primeiramente, é importante frisar que tanto Aurinete Félix da Silva quanto Patrícia Rosa Boni encontravam-se isoladas da população carcerária, como relatam a Agente de Segurança Penitenciária, Aparecida Inácio Lenhardt, e a Diretora mesma.

De fato, o relato de Aparecida Inácio Lenhardt, que prestou depoimento sob compromisso de dizer a verdade, tal como as demais testemunhas, desautoriza a versão segundo a qual Patrícia Rosa Boni "estivesse no convívio com as demais reclusas" (fls. 376), re lato este inicialmente apresentado pela Agente de Segurança Penitenciária Marisol Nunes Ortega, em depoimento francamente parcial, que deixa entrever clara intenção de distorcer a verdade dos fatos. Assim é que Marisol Nunes Ortega, fazendo críticas aos dirigentes da Penitenciária Feminina, diz que a Diretora Geral, o Diretor de Disciplina e o Coordenador de Remoções servidores cuja longa experiência profissional não pôde deixar de reconhecer permitiram que Patrícia Rosa Boni passasse a conviver com as demais detentas, o que, na sua interpretação, teria sido a causa da rebelião (fls. 374).

O magistrado, impressionado com a parcialidade da testemunha (era ela incumbida de vigiar Suzane Louise no berçário da Penitenciária) tratou de determinar que aguardasse no átrio do fórum, sem antecipar o real propósito daquela ordem, que era precisamente proceder a eventual acareação. E não foi de outra forma, pois a Agente de Segurança Penitenciária, Aparecida Inácio Lenhardt, que foi quem levou a notícia da rebelião em curso a Marisol Nunes Gomes, segundo esta admitiu, ouvida logo depois pelo magistrado, tratou de colocar a verdade nos trilhos, dizendo que Patrícia Rosa Boni estivera isolada durante todo o tempo (fls. 376), tal qual sucedeu com Aurinete Félix da Silva, conforme relato de Edneuza Bastos Guimarães (fls. 381) e da Diretora Geral (fls. 386).

Pois bem, pilhada na inverdade, durante a acareação com Aparecida Inácio Lenhardt, Marisol Nunes Ortega ainda tentou ficar com um pé no que dissera, ao afirmar que embora Aurinete Félix da Silva e Patrícia Rosa Boni estivessem isoladas fisicamente, era possível ver entre as grades, ao que Lenhardt esclareceu que não havia grades, mas sim um alambrado, uma tela bem resistente, o que "impede aquele que está no castigo de ver as detentas que estão no pátio". Lenhardt ainda acrescentou que naquelas circunstâncias estava Patrícia Rosa Boni, com o que acabou concorda ndo integralmente Marisol Nunes Ortega (fls. 379), ainda em tempo de livrar-se de um processo por falso testemunho. Enfim, todo o problema ocorreu, naquele vinte e quatro de agosto de 2004, não por superlotação carcerária, mas por questões circunstanciais. É possível mesmo que houvesse detentas em número superior à capacidade do Presídio Feminino, mas esta não foi a causa do movimento de indisciplina, mesmo porque a transferência de trinta presas, reivindicação noticiada pela imprensa (fls. 18), em nada aliviaria o excesso existente, que era de duzentas presas.

Aliás, o próprio noticiário da época informava que o motim começara "após o plano de matar duas detentas fracassar" (fls. 18). A causa do motim também foi assim reproduzida por outros órgãos da imprensa, conforme documentos juntados pela própria autora (fls. 20, 25 e 27). Diga-se mais, durante todo o motim, no qual uma das detentas, Quitéria Silva Santos, foi vítima de golpes de faca (fls. 18 a 27), Suzane Louise permaneceu isolada, livre de qualquer ameaça ou perigo. Conta Marisol Nunes Ortega que tratou de proteger a autora, escondendo-a no pátio, isolado por um portão provido de resistente cadeado (tanto assim que os bombeiros, findo o conflito, tiveram de rompê-lo com um grande alicate). Marisol conta que as presas a fizeram refém, quando tratou de despistá-las dando a entender que Suzane fora liberada juntamente com as mães dos bebês (fls. 374 e 375).

Finalmente, Aparecida Inácio Lenhardt, narra que Suzane Louise, a princípio, foi escondida na sala de consultas médicas e, depois, trancafiada em local inacessível, pois deram um jeito de esconder também as chaves daquele robusto cadeado. No local em que a autora permaneceu, uma área superior a trinta metros quadrados, onde as presas comumente tomavam banho de sol, havia condições para pernoite, vale dizer, tratava-se de local coberto, provido de banheiro com pia e vaso sanitário, (fls. 377). Relata Aparecida Inácio Lenhardt que Suzane, já finda a rebelião, "quis abraçar a depoente, num gesto de agradecimento, o que (...) não consentiu que fizesse, pois há uma distância entre funcionário e o preso" (fls. 377). Afirma, é certo, a amiga de Suzane Louise, ouvida a fls. 397 e 398, que, segundo relato da autora, tempos depois do ocorrido, ela própria teria buscado abrigo, apavorada que estava (fls. 397). Mas não se está tratando de testemunha do fato, de sorte que seu depoimento, que tem em conta apenas a versão da detenta, não é suficiente para infirmar o que disseram não só as agentes penitenciárias como também a Diretora Geral. Diz Marisol Nunes Ortega que os diretores sabiam do que estava prestes a ocorrer, "porque toda cadeia tem seu informante" (fls. 375 sic).

A versão, no entanto, é desautorizada pelo depoimento da Diretora Geral, a quem o magistrado indagou a respeito. Segundo aquela servidora, "no presídio feminino não existe a figura d o faxina, que é, em muitas unidades prisionais, o informante dos dirigentes" (fls. 385). Por questões que já ficaram claras, entre o depoimento daquela experiente Diretora e a versão de Marisol Nunes Ortega, tem-se de ficar com o primeiro, quanto mais quando se vê que a Agente de Segurança Penitenciária, indagada sobre o fato de não ter apresentado o relato que trouxe a juízo na via administrativa, tergiversou, dizendo que, quando foi ouvida, dois dias depois da rebelião, estava sob efeito de remédios, pelo que nem se lembra do que falou (fls. 375). As testemunhas arroladas pela autora, que prestaram depoimento independentemente do compromisso de dizer a verdade, nada trouxeram de útil, revelando apenas o assédio da imprensa em relação a Suzane Louise, questão esta objeto de outro processo judicial. Quanto ao fato de a presidiária ser ou não bem quista pelas outras detentas, é bem de ver que se aplicam aqui as considerações de Erving Goffman no que conce rne à formação de pequenos grupos dentro de todo e qualquer presídio. Angela Maria de Araújo Lopes, testemunha arrolada pela autora, informa que havia agentes penitenciários que gostavam de Suzane Louise, assim como outras detentas (fls.418 e 421), ao passo que Marisol Nunes Ortega revela a existência de presas que não gostavam da autora (fls. 374 e 375). É uma questão de afinidade. O importante é reconhecer que tudo não passou de fato episódico, tanto assim que Suzane Louise, no relato de sua amiga, Angela Maria de Araujo Lopes, jamais ficou sem se alimentar no presídio, onde era obrigada a comer até o que não gostava, na expressão da testemunha (fls. 421). Diga-se mais, a personalidade da autora, descrita pela Diretora Geral como uma pessoa introvertida, com dificuldade de se relacionar com outras pessoas (fls. 386), inspirava cuidados, sobretudo diante da sua trajetória de vida, da natureza e repercussão dos crimes cometidos, tema de outra obra de Miche l Foucault, inclusive (Eu, Pierre Rivierè, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault, RJ, Graal, 1977).

Diante disto tudo, pode-se dizer que Suzane Louise recebia cuidados especiais, trabalhando em local específico, numa condição diferenciada, longe do restante da população carcerária. Tamanha era a preocupação com a detenta que, quando começaram os atos de indisciplina, as agentes penitenciárias trataram logo de acolhê-la, colocando-a a salvo de qualquer perigo, como se demonstrou. Em poucas palavras, não se nega o caos existente no sistema penitenciário brasileiro. Mas há três aspectos que têm de ser considerados. Primeiramente, tem-se de se convir em que o sistema prisional não é um estorno das relações sociais, refletindo a própria anomia existente na sociedade humana. Em segundo lugar, a desordem do sistema prisional brasileiro é a face aparente da falência da própria p ena privativa da liberdade, como apontada pelos modelos abolicionistas no mundo todo (a propósito, v. Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal, RJ, Ed. Revan, 1991). Por último, o movimento de indisciplina que teve lugar no dia 24/08/04, deu-se em circunstâncias bastante específicas, como já relatado, tratando as funcionárias do presídio de instalar a autora em local seguro, de onde saiu sem um único arranhão, de sorte que não se pode falar em violação da regra do artigo 5º, XLIX, da Constituição Federal, tampouco de qualquer tratado ou convenção sobre direitos humanos a que o País, nos termos artigo 5º, § 3º, da Constituição Federal, tivesse se obrigado, pelo menos no que diz respeito à autora, que é o que está sob exame do juízo. Na fixação dos honorários haver-se-á de levar em conta a realização da prova em outra Comarca, o que implicou até mesmo o deslocamento da Procuradora do Estado responsável pelo acompanhamento do feito para aquela localidade.

Isto posto, julgo IMPROCEDENTE a presente ação ordinária que SUZANE LOUISE VON RICHTHOFEN, move contra a FAZENDA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, condenando a requerente ao pagamento de custas e despesas processuais, bem como ao pagamento de honorários advocatícios, estes fixados em R$ 5.000,00, na forma do artigo 20, § 4º, da Constituição Federal, mas observada a regra do artigo 12 da Lei Federal n.º 1.060/50. P.R.I.

Nota de cartório: valor da causa - R$ 190.000,00; valor corrigido - R$ 214.726,96; valor do preparo - R$ 4.294,53 - em caso de eventual interposição de recurso de apelação recolher porte de remessa e retorno no valor de R$ 20,96 por volume, exceto os beneficiários de gratuidade processual.

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