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Feminismo

Mulheres na liderança: a feminização da carreira jurídica

Rita Cortez, presidente eleita do IAB, e Ana Cláudia Mendes, juíza da 1ª vara Criminal de Brasília, comentam os desafios da profissão.

Da Redação

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Atualizado em 24 de abril de 2018 10:33

O Brasil ainda é um país que está longe de ter mulheres em posição de liderança. É o que mostra o último levantamento do IBGE, em que apenas 37,8% dos cargos de chefia no Brasil são ocupados por mulheres. A direção é para poucas.

Na carreira jurídica o cenário não é muito diferente, muito em virtude da própria história da advocacia e da magistratura em que foram os homens que iniciaram e dominaram essas profissões.

Mas o quadro tem mudado. A ascensão das mulheres na carreira jurídica tem feito a sociedade repensar que o lugar delas também é nos tribunais, nos escritórios, nas audiências e onde mais quiserem.

A mudança do cenário masculinizado se mostra em números: dados da OAB revelam que quase metade dos advogados do país são mulheres. Já com relação à magistratura, o número é menor, pois elas representam 37,3% dos magistrados em atividade em todo o país, conforme aponta pesquisa do CNJ.

"Quando se diz respeito às mulheres na carreira jurídica, tudo tem de ser conquistado e batalhado", é o que Rita Cortez, 1ª vice presidente do IAB -Instituto dos Advogados Brasileiros e 2ª mulher a ocupar a presidência do instituto quando tomar posse no dia 9 de maio, afirmou em entrevista à Tv Migalhas.

Assista ao vídeo e confira o que a advogada tem a dizer sobre o tema:

Quando o assunto é a magistratura, os desafios não diminuem. A juíza titular da 1ª vara Criminal de Brasília, Ana Cláudia Loiola de Morais Mendes, elencou inúmeros deles: desde a conciliação da vida pessoal, enquanto mãe e esposa, com a profissional, em que a presença feminina nas salas de audiência muitas vezes é minoria.

Para a juíza, atuar em uma profissão historicamente masculina é um desafio diário. Ela cita como exemplo as inúmeras vezes em que, nas audiências, os homens interrompem as mulheres durante as respectivas falas.

"Por diversas vezes tive que suspender a gravação para esclarecer o quão importante era termos educação para respeitar o momento de fala de cada um. Mas ficou perceptível o hábito de interromper o discurso e fazer valer à vontade sobre o interlocutor, muito comum quando vemos uma discussão entre homens e mulheres, em que os primeiros acabam ganhando no grito."

Ana Cláudia também comentou sobre o machismo institucional, que pode permear, inclusive, as decisões proferidas pelos magistrados. A juíza exemplificou que uma vítima de abuso sexual pode ser considerada de uma forma se estiver diante de uma julgadora, ou de outra, diante de um julgador, que tenha padrões de conduta norteados por uma ideologia mais conservadora, ou mesmo machista.

Confira a íntegra da entrevista com a magistrada.

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Quais são os desafios que uma mulher juíza enfrenta na sua rotina de trabalho?

A mulher, já de início, enfrenta desafios diferentes do homem, na rotina de trabalho. Na magistratura, como em outras tantas profissões, essa diferença também existe. No meu caso particular, a dificuldade iniciava em conciliar a rotina de mãe, dona de casa e esposa com o árduo exercício da magistratura. Não raro levamos trabalho para casa, que acaba se acumulando com as diversas funções que desempenhamos... Para se ter um exemplo, quando eu fui promovida, titularizei em Planaltina, que estava com um volume muito grande de processos acumulados. Mesmo em licença-maternidade, e claro, contando com valioso apoio de um colega substituto durante minha licença, não deixei de decidir e despachar centenas de processos.

Isso sem contar com o desafio que é, em uma profissão essencialmente masculina, ter que demonstrar firmeza sem se masculinizar, ser firme e decidida, sem rigorismo exacerbado, ou seja, buscando o que no final das contas se deve buscar na profissão, ou seja, o equilíbrio. Acredito que a sociedade espera de uma mulher juíza uma postura muito mais rigorosa do que espera de um juiz, até mesmo no comportamento fora dos tribunais.

Como a senhora sente que a sociedade enxerga as mulheres em posição de liderança nos tribunais?

Com relação à segunda pergunta, é difícil responder. Não temos muitas mulheres em posição de liderança nos tribunais. Aqui no TJ/DF, contamos com a Primeira e Segunda Vice-Presidências ocupadas por mulheres, o que já constitui um grande avanço. Todavia, não verificamos na Justiça tantos cargos de liderança ocupados por mulheres. Com relação à magistratura, a forma de ingresso na carreira já nos traz uma garantia de que seremos tratadas igualmente, pois o concurso público, em regra, já nos garante uma posição de igualdade de competição. Todavia, quando entramos na carreira percebemos que existe uma diferença de tratamento entre homens e mulheres.

Nós mesmas fomos criadas com a mentalidade de que a mulher não sabe se relacionar no ambiente de trabalho, que mistura questões pessoais com profissionais. Eu mesma tive essa formação, e lutei para livrar-me dela, para compreender que pessoas são capazes de trazer consigo qualidades e defeitos, independente do sexo, e mais ainda, do gênero. Sendo assim, essa percepção, por algumas mulheres - o que é algo preocupante, ainda mais nos tempos em que vivemos, de busca por igualdade de tratamento - acaba reforçando antigos estereótipos. Então, muitas vezes somos obrigadas a ser mais duras, mais rígidas com determinados comportamentos, para fazer valer nossa autoridade, decorrente do próprio exercício da função.

Como é atuar em uma profissão que, desde a origem, foi muito masculina?

Atuar em uma profissão desde a origem masculina é um desafio diário. Por exemplo, já tive experiências em sala de audiência em que só havia eu, a secretária de audiência e uma ou duas advogadas, e os advogados presentes e o promotor insistiam em não nos deixar falar (eu ou as advogadas) durante as falas respectivas.

Por diversas vezes tive que suspender a gravação para esclarecer o quão importante era termos educação para respeitar o momento de fala de cada um. Mas ficou perceptível o hábito de interromper o discurso e fazer valer à vontade sobre o interlocutor, muito comum quando vemos uma discussão entre homens e mulheres, em que os primeiros acabam ganhando no grito. Então é uma constante que nós, mulheres, tenhamos, na magistratura, que firmar nossa posição e a importância de nossa fala, de nosso discurso, e não deixarmos que nos cortem ou nos atrapalhem no que estamos desempenhando naquele momento. Isso é bastante desgastante, porque é um movimento diário, cotidiano. A luta é constante, mesmo. Imperceptível para algumas, que já estão acostumadas com esse tipo de comportamento. Mas quando percebemos que essa não deve ser a ordem natural das coisas, passamos a nos ligar em comportamentos discriminatórios e diminutivos da figura feminina, passamos também a travar diariamente combates com relação a essas posturas.

Como a senhora avalia o machismo institucional nos tribunais? O peso de uma decisão proferida por um homem tem um olhar diferente de uma proferida por mulher?

O machismo institucional existe, todavia ele é sub-reptício. Vem escondido em diversas condutas praticadas, que são vistas com naturalidade no ambiente, especialmente no ambiente judiciário, mais conservador, no qual mulheres só passaram a ter assento efetivo há algumas décadas. Talvez o peso de uma decisão proferida por uma mulher tenha o mesmo peso que a de um homem, não acredito que, neste ponto, haja discriminação, pelo menos não consegui visualizar no discurso judicial, nos votos proferidos, nenhum indício de que isso possa acontecer.

Todavia, o olhar que a mulher tem sobre determinadas questões que chegam a julgamento é muito diferente do olhar masculino sobre essas mesmas questões, ainda mais quando nós tratamos sobre questões relacionadas a gênero, onde a relação de poder é dominante na apreciação dos fatos. Neste ponto é importante ressaltar que em alguns momentos a palavra de uma vítima de abuso sexual pode ser considerada de uma forma se estiver diante de uma julgadora, ou diante de um julgador que tenha padrões de conduta norteados por uma ideologia mais conservadora, ou mesmo machista.

Outro ponto que queira acrescentar.

Queria acrescentar que, apesar dessas questões aqui levantadas, é importante destacar que grande parte das juízas do DF, principalmente, já tem consciência das diferenças e vem trabalhando diariamente para acabar com a diferença de tratamento entre os gêneros. Acredito que em alguns anos já possamos ter um quadro bem diferente do que vemos atualmente.

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