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A arbitragem, a probidade e a boa-fé objetiva

A natureza jurídica complexa da arbitragem encerra, entre outros, o aspecto contratual, no qual se configuram probidade e a boa-fé objetiva, institutos obrigatoriamente presentes desde as mais tenras tratativas que deram origem ao contrato, passando pela sua celebração do ponto de vista do conteúdo negocial, enveredando pelo ajuste da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral e, finalmente, terminando pela instauração de uma eventual arbitragem destinada à solução de conflitos que tenham surgido.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Atualizado em 23 de setembro de 2010 14:58


A arbitragem, a probidade e a boa-fé objetiva

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa*

A natureza jurídica complexa da arbitragem encerra, entre outros, o aspecto contratual, no qual se configuram probidade e a boa-fé objetiva, institutos obrigatoriamente presentes desde as mais tenras tratativas que deram origem ao contrato, passando pela sua celebração do ponto de vista do conteúdo negocial, enveredando pelo ajuste da cláusula compromissória ou do compromisso arbitral e, finalmente, terminando pela instauração de uma eventual arbitragem destinada à solução de conflitos que tenham surgido.

O art. 422 do Código Civil de 2002 (clique aqui) cuidou de estabelecer que os contratantes estão obrigados a guardar, tanto na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios acima mencionados, probidade e boa-fé. Como já nos foi possível afirmar em outro lugar, a referência feita pelo legislador apenas aos momentos da conclusão e da execução do contrato como relacionados aos institutos sob exame é incompleta e não condiz com sua natureza jurídica, pois abrange toda a cadeia que se inicia nas tratativas até o momento em que as partes se envolvem em um eventual litígio, que pode ser resolvido por sua escolha, como se disse acima, mediante o recurso à arbitragem. É a conclusão a que se chega inevitavelmente a partir de uma análise feita no plano da teoria geral do contrato (Contratos Mercantis e a Teoria Geral dos Contratos - O Código Civil de 2002 e a Crise do Contrato, Ed. Quartier Latin, 2010, pp. 101 e segs).

A probidade consiste na honestidade de que as partes devem revestir-se ao entrarem em negociações objetivando contratar. Tal probidade pode ser tomada em seu sentido genérico, mas também sob um ângulo específico, ou seja, aquela honestidade que diz respeito a determinados campos da atividade empresarial, nos quais se denota a existência de comportamentos determinados, tal como ocorre, por exemplo, em operações nas Bolsas de Valores. Nestas, quando se pensa na responsabilidade do corretor pelo cumprimento de uma ordem verbal de um cliente para compra ou venda de títulos, verifica-se que está presente um nível de probidade e de boa-fé muito mais intenso do que em uma compra e venda comum de qualquer mercadoria.

A boa-fé referida no art. 422 do Código Civil corresponde à sua modalidade objetiva, ou seja, coerente com um modelo de comportamento objetivo, construída como uma regra de conduta, correlacionando-se com a honestidade, a retidão, a lealdade e o respeito ao interesse da contraparte, no caso concreto.

Não se deve perder de vista que o instituto do contrato, reconhecido e agasalhado pelo legislador, se em alguma época foi visto como um instrumento tão somente ligado ao exercício da autonomia privada (em cujo seio era ampla a liberdade egoística da defesa do interesse pessoal em detrimento de outros quaisquer), este período há muito tempo foi passado para trás e desde então o contrato tem-se revestido da qualidade de programa econômico resguardado pelo legislador para o exercício de uma liberdade segundo o interesse social e os objetivos econômicos buscados pela sociedade, conforme se percebe pela relação dos princípios econômicos gerais presentes na tutela da Ordem Econômica, nos termos do art. 170 da CF (clique aqui).

As partes devem estar imbuídas de boa-fé, portanto, desde o momento em que dão os primeiros passos objetivando a celebração de um futuro contrato. Se uma delas ou ambas, desde o início, guardam em sua convicção e em seu comportamento (geralmente tácito) o intuito de se aproveitar da outra parte utilizando-se de alguma condição de prevalência, então certamente o resultado final (se a ele chegar-se efetivamente) será desequilibrado, gerando desconforto para a parte prejudicada e permitindo o surgimento de um animus rixoso, que certamente gerará um litígio cheio de controvérsias amarguradas.

Se assim vier a acontecer, o melhor é nem sequer contratar, pois os custos de transação presentes e futuros voltados para o estabelecimento de uma relação econômica equilibrada certamente prejudicarão ou poderão eliminar os benefícios também econômicos buscados na operação.

Contratar, portanto, é mandatoriamente contratar de boa-fé e isto dos dois lados, devendo buscar cada uma das partes a revelação à outra dos seus objetivos, meios e elementos de que dispõe ou pretende dispor. Assim sendo, a transparência deve fazer-se presente, devendo ser transmitidas entre si todas as informações relevantes para o negócio em tela.

Isto não significa que uma parte deva abrir mão de certos elementos estratégicos vinculados à razão pela qual escolheu contratar, ou de conhecimentos específicos que a outra deva ter a respeito do seu próprio campo profissional de atuação. Se alguém vende a planta de uma fábrica dentro de certo ramo da indústria, não se quebra a probidade e a boa-fé ao deixar de alertar a outra parte a respeito da possibilidade que chegou ao seu conhecimento de que aquele mercado poderá sofrer uma queda significativa no volume de negócios nos próximos meses ou anos. Trata-se de dado de conhecimento que o comprador deve dominar, se já atua naquele ramo ou se nele pretende se integrar. Neste sentido, já têm dito sabiamente os portugueses há muito tempo que quem não tem competência, não se estabeleça.

De outro lado, não pode o vendedor esconder do comprador que existem certos esqueletos no armário, ou seja, por exemplo, a possibilidade de serem ajuizadas ações judiciais no futuro em relação a alguns negócios anteriormente realizados com terceiros, os quais deixaram pendências potenciais não tornadas claramente visíveis.

O que se busca em atendimento aos princípios da probidade e da boa-fé é que seja permitido às partes contratarem em condições realmente equitativas e que sejam construídos mecanismos de busca da verdade nos casos em que um negócio complexo e de longa duração possa apresentar no futuro certos desvios que as partes não poderiam ter avaliado adequadamente, nem que deles tivessem conhecimento, ou que sobre eles houvessem feito uma determinada avaliação sobre os seus efeitos econômicos. É neste patamar que opera a teoria dos contratos incompletos, que tem chegado até nós do direito norte-americano.

Ultrapassada a fase de tratativas, celebrado o contrato, inserida a cláusula compromissória, o surgimento futuro de uma pendência determinada abrirá caminho para a arbitragem que, igualmente, deverá ser desenvolvida segundo aqueles mesmos princípios de probidade e de boa-fé. E aí começa um momento que comporta outras considerações, a serem feitas em nova oportunidade.

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*Consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados, Livre-docente e Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP

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