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A empresa individual de responsabilidade limitada

A lacuna quanto à inexistência de um mecanismo de limitação da responsabilidade do empresário individual, até então desconhecida no Brasil, veio a ser resolvida recentemente, de forma um tanto confusa, pelo advento da lei 12.441/11, a qual, por meio de modificação do NCC criou no direito brasileiro a empresa individual de responsabilidade limitada ou EIRELI.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Atualizado em 28 de julho de 2011 15:48

A empresa individual de responsabilidade limitada

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa*

A lacuna quanto à inexistência de um mecanismo de limitação da responsabilidade do empresário individual, até então desconhecida no Brasil, veio a ser resolvida recentemente, de forma um tanto confusa, pelo advento da lei 12.441 (clique aqui), de 11/7/2011, a qual, por meio de modificação do NCC criou no direito brasileiro a empresa individual de responsabilidade limitada, que recebeu do legislador a sigla não muito feliz de EIRELI. Vejamos a sua estrutura.

Verifica-se que a lei a instituiu como uma nova modalidade de pessoa jurídica, mas declaradamente não a estabeleceu como um tipo de sociedade unipessoal, já conhecida em outros ordenamentos jurídicos1. Isto porque, ao criar um novo inciso VI no art. 44 do NCC (relação taxativa das pessoas jurídicas de direito privado), o legislador deixou-a fora do campo das sociedades, que permanecem como pessoas jurídicas no inciso II do mesmo dispositivo legal. Mas, quando tratou de seu nome empresarial no parágrafo 1º do art. 982-A do mesmo NCC, deu ao interessado a opção em favor da firma ou da razão social, esta precisamente destinada a sociedades. Significa dizer que a EIRELI já nasceu padecendo de uma crise de identidade.

Por oportuno, lembre-se que em Portugal foi criado há bastante tempo o estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada (decreto-lei 248, de 25/8/1986), tendo havido ali uma discussão, reportada na correspondente Exposição de Motivos, em torno da construção dessa empresa efetuada como pessoa jurídica, ou ter como ponto de referência a ideia de patrimônio autônomo ou de afetação especial.

Segundo a mesma Exposição de Motivos, naquele país foi preferido um expediente técnico legal que permitisse ao comerciante em nome individual destacar do seu patrimônio geral uma parte dos seus bens, para destiná-la à atividade mercantil, havendo se adotado o meio mais direto de um patrimônio separado, ao invés da sociedade unipessoal. Aliás, a sociedade unipessoal é nossa velha conhecida na forma da subsidiária integral, prevista nos artigos 251 a 253 da lei de sociedades anônimas. E no direito comparado também sua existência já se conta, entre outras fontes, desde o final da década de oitenta do século passado (12ª Diretiva do Conselho, 89/667/CEE, de 21/12/89).

No Brasil, em mais uma invenção autóctone desfocada, nós ficamos no meio do caminho entre o modelo português e o da sociedade unipessoal. A EIRELI não é uma coisa nem outra: não é uma sociedade, mas trata-se de uma pessoa jurídica atípica pertencente a um único titular e cujo patrimônio deve ser o núcleo exclusivo da responsabilidade perante credores (ao menos se espera plena eficácia em tal sentido), decorrente do exercício de sua atividade, não exclusivamente mercantil. Mas, como veremos adiante, este modelo de responsabilidade não ficou clareamento estabelecido.

Essa empresa será constituída por uma única pessoa, titular da totalidade do seu capital social, obrigatoriamente integralizado. Para tal finalidade foi estabelecido um capital mínimo não inferior a 100 (cem) vezes o valor do maior salário-mínimo vigente no país. Isto significa dizer que, na data da promulgação da lei em questão, o capital mínimo da EIRELI era de R$54.500,00 (cinquenta e quatro mil e quinhentos reais). Fazendo-se uma comparação, observe-se que o capital mínimo do estabelecimento mercantil de responsabilidade limitada do direito português foi fixado em cinco mil euros (atualmente em redor de onze mil reais), bem abaixo do similar brasileiro.

Portanto, a crítica que se faz é que o capital mínimo exigido de tal sociedade deixa à margem uma parcela substancial dos microempresários pátrios, os quais continuarão dentro do regime geral de responsabilidade patrimonial pessoal (e do risco correspondente), sem acesso ao patrimônio separado que veio a ser criado para a EIRELI, a não ser por alguma fuga para mecanismo como o da constituição de uma sociedade limitada com outro sócio, este detentor de mínima expressão do capital social. Mas tal recurso, muito utilizado, apresenta custos que o microempresário dificilmente poderá suportar.

Tenha-se em conta que a expressão capital social foi mal utilizada, pois, como vimos acima, não cuidou o legislador de criar uma sociedade, mas um patrimônio de afetação ao qual dotou de personalidade jurídica.

O nome empresarial dessa empresa deverá ser formado pela inclusão da expressão "EIRELI" após a firma ou a denominação social da empresa individual de responsabilidade limitada.

Está presente na lei uma limitação ao recurso a este instituto, considerando-se que a pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade.

A empresa individual de responsabilidade limitada também poderá resultar da concentração das quotas de outra modalidade societária num único sócio, independentemente das razões que motivaram tal concentração. Lembre-se que, de acordo com o art. 1.053, IV do NCC uma das causas de liquidação das sociedades empresárias é a existência de um único sócio (por motivo de falecimento do outro único sócio, por exemplo), que não seja reconduzida ao número mínimo de dois sócios dentro de cento e oitenta dias.

Não se aplica a possibilidade acima no caso em que o sócio remanescente, inclusive na hipótese de concentração de todas as cotas da sociedade sob sua titularidade, requeira, no Registro Público de Empresas Mercantis, a transformação do registro da sociedade para empresário individual ou para empresa individual de responsabilidade limitada, observado, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115 do NCC, voltados para o tratamento da transformação da sociedade. A hipótese deverá ser marginalmente utilizada, pois ela implicaria na perda da limitação patrimonial da sociedade limitada. Desta forma, na prática, o sócio remanescente destinará algumas quotas a terceiro, o conhecido testa-de-ferro ou laranja, com as consequências jurídicas cabíveis.

A essa empresa, quando constituída para o fim da prestação de serviços de qualquer natureza, poderá ser atribuída a remuneração decorrente da cessão de direitos patrimoniais de autor ou de imagem, nome, marca ou voz de que seja detentor o titular da pessoa jurídica, vinculados à atividade profissional. Nenhuma novidade, na medida em que passam a existir duas pessoas de direito (uma delas a EIRELI), distintas sob o ponto de vista formal, do que resulta que uma delas pode ceder direitos em benefício da outra.

De acordo com a lei sob análise, aplicam-se à empresa individual de responsabilidade limitada, no que couber, as regras previstas para as sociedades limitadas. Este no que couber é bastante relativo, pela significativa incompatibilidade entre um modelo societário e uma empresa individual. Além disto, como se sabe, o NCC cuidou muito mal da sociedade limitada, tendo-a remetido, por sua vez, para o regime das sociedades simples diante das lacunas do seu próprio regramento2.

A lei em questão teve sua vigência determinada para 180 (cento e oitenta) dias após a data de sua publicação, ou seja, a mesma de sua promulgação.

Conhecido, principalmente, o viés do Direito Trabalhista e do Direito Tributário na perseguição do patrimônio pessoal dos sócios, responsabilizando-os por dívidas daquela natureza, faltou no caso presente uma referência expressa à responsabilidade exclusiva do patrimônio da EIRELI pelas obrigações em questão e por aqueles resultantes de sua atividade regular, não se permitindo avançar sobre o restante do patrimônio do titular dessa empresa, sob pena de esvaziar-se completamente o seu objetivo, que é, no fundo, o de limitar a responsabilidade do empresário individual3.

A preocupação não é gratuita, considerando as razões do veto presidencial ao parágrafo 4º do art. 980-A, cuja redação original era a seguinte:

"§ 4º Somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, confirme descrito em sua declaração anual de bens entregue ao órgão competente".

Ora, as razões do veto foram baseadas, justamente, na referência ao art. 50 do Código Civil de 2002 (clique aqui), alegando-se que as limitações do dispositivo acima poderiam gerar divergências quanto à desconsideração da personalidade jurídica da EIRELI. Nada a ver. Caso as premissas do art. 50 viessem a se configurar, o instituto da desconsideração do patrimônio separado em questão poderia ser feita sem qualquer óbice e o desaparecido parágrafo 4º deveria ter sido obviamente mantido. Assim sendo, tais razões têm toda a cara de uma confissão invertida, isto é, feita antes da prática do crime.

Em conclusão verifica-se que, mais uma vez, um importante assunto relacionado aos interesses dos comerciantes é tratado de forma superficial e defeituosa pelo legislador, entre tantos outros exemplos.

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1 Na Alemanha, pela GMBH-Novelle de 1980 e em França pela Lei 185-697, de 11/7/1985.

2 Veja-se a este respeito o item 5.2 do Vol. 2 do meu Curso de Direito Comercial.

3 Sobre o assunto da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades, vide o item 1.8.3 da mesma obra.

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*Consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados e professor de Direito Comercial da USP











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