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Resolução de demandas e recursos repetitivos no novo CPC

A ideia é boa e necessária para tentar minimizar as agruras por que passam partes e julgadores dos mais de 93 milhões de processos que tramitam perante o Judiciário Brasileiro.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Atualizado em 2 de dezembro de 2014 15:42

Prestes a virar realidade, o novo Código de Processo Civil é fonte de júbilo e de inquietações. De um lado, traz a certeza de que um tratamento minimamente sistemático, qualquer que seja, será melhor do que a continuidade da utilização do Código atual, completamente desfigurado pela pletora de alterações por que passou ao longo dos últimos vinte anos, na tentativa de adequá-lo à nova e complexa sociedade de massas e às novas ondas de acesso à justiça, estimuladas pela Constituição de 1988. De outro lado, traz inquietações que podem fazer-nos raiar à bipolaridade. Primeiro, porque o Código nasce parcialmente velho, como se fosse um amontoado de artigos que apenas placitam a jurisprudência vigente, tornando direito positivo aquilo que era apenas construção do pretor moderno (não dá maior atenção, por exemplo, ao processo eletrônico). Segundo, porque traz novidades (algumas nem tão novas assim) capazes de despertar, nos que fazem do Direito aplicado o seu dia a dia, aquela sensação de misoneísmo, de horror ao novo, de fazer prevalecer o et non quieta movere.

Qualquer que seja o polo em que se insira o estudioso, não se deve crer que a nova lei processual será panaceia para todos os males da prestação jurisdicional brasileira, sabidamente morosa, ineficiente, em todos os graus de jurisdição (exceção feita à Justiça do Trabalho que, nas instâncias ordinárias, consegue dar uma resposta ao cidadão em prazo razoável).

Para dizer de outro modo, não serão solucionados, por essa via, os problemas relativos à falta de estrutura do Poder Judiciário (relação número de processos/juiz), à ausência de competência na gestão administrativa da prestação jurisdicional (um bom juiz não pressupõe um bom administrador), ao treinamento de pessoal de Secretaria, aos critérios e ao processo de seleção de magistrados, etc.

Sem embargo disso e ferindo direto o ponto, a versão trazida a lume apresenta a vocação de perseguir um máximo de sistematicidade e efetividade e cuida de explicitar, no art. 522 (versão da Câmara dos Deputados), que o julgamento de casos repetitivos ocorre por meio decisão proferida em (i) incidente de resolução de demandas repetitivas ou em (ii) recursos especial ou extraordinário repetitivos.

O Livro, III, Título I, Capítulo VII, cuida do incidente de resolução de demandas repetitivas, admitindo-a quando presente o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, desde que haja a repetição de processos que contenham a mesma controvérsia sobre questão de direito, material ou processual. A competência para julgamento será dos tribunais ordinários e o incidente somente será suscitado se estiver em curso, naquele momento, uma causa de competência daqueles órgãos. Não, cabe, entretanto suscitar o incidente quando o tema de direito já houver sido objeto de afetação por um dos tribunais superiores, para julgamento pela técnica de recursos repetitivos.

O incidente de resolução de demandas repetitivas, IRDR, é supostamente inspirado no musterverfahren do direito alemão, mas dele se afastou, tanto na vigência material, como no procedimento, quanto nas consequências, não sendo adequado, hoje, assimilar os dois institutos. É certo, porém, que O IRDR tem o claro objetivo de atender às demandas da sociedade de massas. Deve-se dar-lhe ampla divulgação, de sorte que seja abrangido pela decisão o maior número de causas, cuja tramitação deverá ser suspensa no âmbito da competência territorial do Tribunal a quem couber a apreciação.

A decisão proferida no incidente possui efeito vinculante em relação aos órgãos de jurisdição subordinados ao tribunal que decidiu a matéria, tanto no atinente aos processos em curso e que estejam sobrestados, quanto em relação aos casos futuros que versem idêntica questão de direito.

No que concerne ao recurso extraordinário e ao recurso especial repetitivo, não se trata de nenhuma novidade. De fato, os arts. 1.049 e 1.050 do Código projetado trazem a regência que se encontra, hoje, nos arts. 543-A, B e C, do Código de Processo Civil de 1973. É certo, entretanto, que a nova regência é mais completa e detalhada, porquanto se aproveita da experiência desses anos de prática com o procedimento perante STF e STJ, especialmente no pertinente ao sobrestamento dos recursos aviados na jurisdição ordinária e na suspensão dos processos em curso no Estado ou Região.

Ademais, a eliminação, pelo art. 1.043 do Código projetado, do juízo de admissibilidade exercido nos tribunais ordinários (com exceção das hipóteses de intempestividade), provocou a necessidade de maior regulação da matéria, até com bem-vindas previsões de superação de vícios formais e de admissão parcial de fungibilidade. De outra banda, como não se prevê a competência de órgão do tribunal de origem para permitir ou negar trânsito aos recursos excepcionais, não cabe, mais, cogitar do recurso de agravo para hostilizar a decisão de negativa de seguimento.

Sem embargo disso, cogita-se da criação de um novo recurso, Agravo Extraordinário, mas para finalidades diversas daquelas hoje atendidas pelo agravo do art. 544.

A concepção normativa do incidente de resolução de demandas repetitivas e dos recursos excepcionais repetitivos, de que cuidamos aqui, está em consonância com uma ideia central de fortalecimento, diria mesmo, de criação de um sistema de precedentes (o projeto criou um capítulo próprio para cuidar desse sistema). Tanto no âmbito interno dos órgãos colegiados, quanto na verticalidade da jurisdição nacional, deve haver vinculação dos membros do Judiciário, a propiciar ao cidadão maior previsibilidade sobre o que será decidido, em homenagem maior aos princípios da isonomia, da duração razoável do processo e da segurança jurídica (aí incluída a proteção da confiança), apanágio do Estado Democrático de Direito.

A ideia é boa e necessária para tentar minimizar as agruras por que passam partes e julgadores dos mais de noventa e três milhões de processos que tramitam perante o Judiciário Brasileiro. Calha, entretanto, a advertência de que a existência de um fármaco de boa qualidade não implica a cura da doença. É preciso que sua aplicação, pelo especialista da área, seja feita na forma adequada e na dosagem certa, de acordo com a necessidade de cada paciente.

É que, lembrando Jean Cruet, já se viu uma sociedade mudar uma lei; mais difícil é ver uma lei mudar a sociedade. Não obstante, se houver bons advogados a suscitar, bons juízes aptos a comprar a ideia e boa fiscalização do Ministério Público, é possível crer que vai dar certo!

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*Jorge Amaury Maia Nunes é ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e doutor em Direito pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.

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